3. Estratégias Discursivas da Criação Literária

[...] ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis, algumas são altamente proibidas − diferenciadas e diferenciantes −, enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (Michel Foucault)

Uma vez estabelecidas as discussões acerca das características do discurso histórico e suas variantes, sobre os quais se analisa a busca empreendida no sentido de utilizar expedientes que contribuem em favor da manutenção de interesses da classe dominante, é chegada a hora de proceder a um desvio do foco e incidi-lo na direção dos textos literários. No espaço literário serão mapeadas e analisadas, em detalhe, algumas atitudes discursivas utilizadas com considerável frequência, merecendo destaque, os casos em que, a presença delas viabiliza o entrecruzamento de textos literários com produções não-estéticas, sobretudo, as históricas.

Visando robustecer ainda mais a consistência das questões levantadas pelas abordagens até aqui efetuadas, o alvo a partir de agora é o investimento feito na direção de um conservadorismo, cuja presença nos autoriza a eleger os textos literários como objetos de distinção. Na estrutura deles, será considerado o viés sociológico, próprio de linhas de raciocínio e desenvolvimento, comumente empregadas nos tratados acerca de temáticas que, de forma mais ou menos incisiva, focalizam aspectos das relações do cotidiano, com prioridade para as que se dão no plano sócio-histórico.

Evidentemente, que a referência a textos que têm como fio condutor a representação dessa realidade social, toma por base o tratamento que eles dispensam à presença e à participação do negro dentro do arcabouço social. Da mesma maneira, a referência recai, também, sobre as fôrmas que esse processo usa para modelar o negro, independente das linhas de ação que o artefato estético produzido lhe confere, quer este comportamento literário lhe proporcione um papel relevante, quer lhe proporcione um papel secundário. É preciso esclarecer, ainda, que a noção considerada de viés sociológico diz respeito a uma dimensão desses textos à qual o olhar crítico quase nunca dispensa atenção devida, mesmo porque, em grande parte das vezes, a construção dessa dimensão se processa por meio de componentes dissimulados. A despeito disso, o viés que receberá tratamento prioritário não será marcado por qualquer pretensão em fazer dele, um mecanismo de elucidação ou de deslindamento da obra. O objetivo visa, sim, valorizar, nele, imperativos relevantes da sua condição de elemento englobante, assumida na constituição de uma estrutura estética, tanto em nível de fomento, quanto de implicações que impregnam a conformação de textos, possibilitando comprovar influências que se pretende demonstrar. A execução desta proposta requer investigar na tessitura textual, a presença de componentes que, embora de natureza não--estética na sua gênese, uma vez ali empregados, incorporam, na plenitude, o estatuto de literários. À medida que dessa forma agem, vão para além do eminentemente estético e provocam no campo extraliterário, − e de maneira específica, no social −, a possibilidade da formação e construção de perfis do negro, plasmando-o, sempre, segundo circunstâncias que mantêm vigentes, a moldura social, historicamente hegemônica.

A partir do momento em que tais recursos deixam de ser exclusividade de abordagens de predominância não-estética, apresentando-se, também, nos textos de proeminência literária, eles funcionam como pontos de harmonia em diálogos entre textos de naturezas distintas. Neste caso, independentemente do domínio ao qual o texto pertença, torna-se necessário relacionar sua tessitura com a forma e a essência do arcabouço social que o abriga, considerando que é nessa direção que todas as discussões tendem a convergir. É inegável que é o tecido social − por seus dispositivos de análise e mesmo de juízos de valor − que traduz opiniões e legitima comportamentos dos diferentes segmentos que o compõem.

Priorizando o teor sociológico como ponto de partida de uma discussão que se amplia num momento posterior, e em função do leque de alternativas que essa circunstância nos oferece, uma vez direcionado o foco para o locus literário, as possibilidades de demonstrar alguns nós do texto vão se ampliando, a partir da eleição da crítica sociológica como caminho a ser percorrido. A opção de percorrer esse terreno encontra justificativa na sua capacidade em atender a uma proposta que visa destacar aspectos determinantes da configuração do texto. Nesse particular, a referência ocorre de forma mais objetiva, pela presença de aspectos externos que se fazem internos,85 a ponto de possibilitar discussões sobre as marcas de determinados fenômenos literários. O que, entretanto, necessita ser ressaltado é que a análise sociológica do discurso literário vai estabelecer como fatores externos, propósitos sociais utilizados com fins ideológicos, que se tornam internos à medida que migram para a topografia textual e nela atuam como elementos estéticos, participantes da elaboração de significações implícitas.

Convém salientar que, do ponto de vista da conquista de resultados ideológicos, os elementos externos ao texto não são os únicos a satisfazer esse tipo de exigência. Nessas circunstâncias, também se recorre a elementos intrínsecos à tessitura literária, como, por exemplo, aqueles dotados de funções estéticas semelhantes às empregadas nas técnicas de redação, que, no curso da narrativa, expressam pensamentos de outrem, que não o narrador, e são conhecidas como estilo ou discurso direto, indireto e indireto livre. Veremos adiante, que embora sejam ferramentas de consistência técnica, ainda assim, nas narrativas que contemplam a presença de personagens negros, os diferentes estilos são largamente utilizados com fins ideológicos, inclusive e principalmente, o discurso direto.

Retomando as linhas de raciocínio baseadas no viés sociológico, nota-se que o horizonte que começa a delinear-se como centro das discussões, inicialmente é caracterizado por uma proposta de abordagem que se configura a partir do exame da organização do edifício social, no que tange às diferentes classes que o compõem. Dentro delas, por sua vez, requer observância a hegemonia de um segmento dominante, cuja presença implica na necessidade de priorizar uma função de dominação que perpassa toda essa estrutura. Essas questões sociais se processam na expressão de comportamentos e formas de pensar, cujas raízes, plantadas no Brasil-colônia, consolidaram-se nos tempos subsequentes, muito em função dos desdobramentos possibilitados por aquele período histórico, no que diz respeito à maneira que, nele, dominantes e dominados se relacionavam muito estreitamente.

Considerando que as estratégias discursivas têm como função precípua, manter o personagem negro nas mesmas condições sociais, políticas e históricas encontradas nos textos não-estéticos, e, sobretudo, no imaginário vigente, impõe-se o compromisso de demonstrar os porquês e as formas pelas quais, as práticas em questão tornam-se imperativas na tessitura literária. O apelo às práticas discursivas utilizadas encontra razão de ser em ditames próprios de segmentos dominantes do campo social. Nessa perspectiva, o imperioso é manter aspectos de comportamentos sociais, aparentemente constituintes de uma ordem natural, e ao mesmo tempo, dissimular alternâncias reveladoras de sua essência, advindo daí, o caráter estratégico do seu emprego continuado.

Um fato de grande repercussão histórica, emblemático das condições que ora se destaca é a Abolição e suas consequências, pelo seu caráter, a um só tempo, intestino ao plano social e de dimensão fundante de propostas discursivas, retratado no investimento que a criação literária faz na sua organização interna, visando estabelecer formas de pensar e padrões de comportamento, nas relações da vida cotidiana. Como sabemos, a promulgação de uma lei é competente para anular a legalidade de ações práticas que contrariem princípios morais, religiosos, políticos ou sociais, mas não o é para modificar sentimentos. Em semelhante intensidade, também não neutraliza formas de pensar impostas com base em concepções arraigadas pelo hábito, secularmente construído ao longo dos tempos, perpassando gerações e gerações, a ponto de fazer da lei promulgada, disposições anódinas que contrariam o que ela mesma preceituou como ilegal. Dependendo do grau do investimento feito no sentido de contar com mecanismos que contribuam para que a conjuntura social não sofra alteração em sua performance, o sucesso desse expediente depende muito das contribuições prestadas por elementos extrínsecos aos fatos relatados, como ocorre, por exemplo, com a linguagem empregada em sua reprodução, como sói acontecer nos planos histórico e literário. Dessa forma, pode-se chegar a visões de mundo sobre as quais se vai estruturar a linguagem que as reproduzirá, isto é, uma linguagem que estabelece como limite, os limites do mundo ao qual ela está a serviço. Em razão dessa perspectiva, a linguagem tende a ser controlada e controladora, oportunista, contida e apropriada como ocorre na Literatura brasileira, sempre que esta tem por meta o atendimento de interesses dominantes.

A produção textual que apresenta essa feição, naturalmente disponibiliza ao leitor, elementos que lhe permitem fazer ilações quanto ao teor subliminar do discurso utilizado. O que mais concretamente sustenta as possibilidades de se fazer inferências e fortalece as impressões de que desdobramentos do texto são exatamente os pretendidos é o desinteresse e a dificuldade que a classe dominante sempre tem, nas ocasiões em que é chamada a compreender e a assimilar o ethos da gente negra, fora dos parâmetros, fora dos conceitos e fora da noção de cultura dominantes.

Em se tratando de vida cotidiana é bom que se diga que sua realidade não se resume a que o senso comum absorve dos eventos, de forma imediata, de maneira a resultar, somente, em ações defectivas. Também são atingidas, esferas de acontecimentos que vão além do aqui e agora, e quando tais situações ocorrem, estamos diante do fenômeno que Berger e Luckmann denominam de “zonas distantes”, em cuja direção se quer postular uma caminhada. Ao se referirem a elas, a dupla de autores as define como parte da realidade da vida cotidiana, caracterizadas como sendo

zonas que não me são acessíveis [...]. Mas, ou não tenho interesse pragmático nessas zonas ou meu interesse nelas é indireto, na medida em que podem ser potencialmente zonas manipuláveis por mim. Tipicamente meu interesse nas zonas distantes é menos intenso e certamente menos urgente. Estou intensamente interessado no aglomerado de objetos implicados em minha ocupação diária, por exemplo, o mundo da garage se sou mecânico.86 [grifos meus]

Providencialmente, Berger e Luckmann complementam, concluindo, que de uma maneira geral o nosso

conhecimento da vida cotidiana estrutura-se em termos de conveniências. Meus interesses pragmáticos imediatos determinam algumas destas, enquanto outras são determinadas por minha situação geral na sociedade. É coisa que não tem importância para mim saber como minha mulher se arranja para cozinhar meu ensopado preferido, enquanto este for feito da maneira que me agrada. Não tem importância para mim o fato de algumas ações estarem caindo se não possuo tais ações, ou de que os católicos estão modernizando a sua doutrina se sou ateu, ou que é possível voar sem escalas até a África se não desejo ir lá.87 [grifos meus]

Portanto, a partir do momento que as zonas distantes têm possibilidades de ser manipuladas pelo homem, elas caracterizam situações em que a Literatura é chamada a intervir, tendo em vista sua capacidade em levar o homem a enxergar além do imediato, do tangível, e a valorizar ações que se devem imprimir sobre o mundo, pois só dessa forma ela produz significações dialéticas. Entretanto, em que pese toda essa capacidade, a Literatura abdica do acesso a uma linguagem pluralista e polissêmica e demonstra preferência por atitudes estéticas que priorizam a produção de visões de mundo limitadas às circunstancialidades próprias do sistema dominante.

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3.1 - Perspectivas ideológicas

A discussão empreendida a partir de agora está condicionada à adoção de linhas de raciocínio que incidem de forma direta, sobre elementos englobantes de uma conjuntura construída pela valorização de comprometimentos hierárquicos, da organização social. Nessa conjuntura, deparamos com um entrave que, naturalmente, se nos apresenta: a impossibilidade de se poder contar com a contribuição de um lugar não-ideológico, de onde poderia emergir toda e qualquer referência discursiva. Por conseguinte, pensar a existência de um lugar axiologicamente neutro é, na mesma proporção, pensar numa condição inexequível, e ipso facto, pode-se afirmar que, dentro dessa perspectiva, a faculdade de expressão humana está sempre ocultando ou dissimulando o exercício da dominação, assim como o da própria violência. À proporção que esses comportamentos se concretizam, a realidade da vida cotidiana se metamorfoseia, adequando-se a situações que designo como sendo representações parasitárias que a Literatura imprime sobre o real, tendo em vista o recurso que ela empreende na direção da tomada de atitudes ideológicas que, uma vez adotadas, mascaram a realidade e se submetem ao engajamento de comportamentos estéreis. Como consequência, pelo feitio a ser traçado, cumpre conferir ao termo ideologia, condições segundo as quais ele será explorado de maneira a atender propostas conjunturais específicas. Só a partir de então, a ele recorreremos como elemento primordial da predileção pela análise crítico-sociológica.

Do ponto de vista etimológico o termo ideologia, por si só, possui múltiplas e amplas acepções, condição que o eleva à categoria de elemento controverso. Todos sabemos das exigências que a expressão, pela sua própria abrangência, por vezes impõe, que se a traduza de forma precisa; a despeito disso, não há interesse em tratá-la neste nível, e muito menos em estabelecer um debate que trace uma trajetória dos seus primórdios à mais recente possibilidade de interpretação. São merecedores de respeito, os mais diferentes significados atribuídos à noção de ideologia aos quais estamos acostumados a lidar no cotidiano; contudo, para uma consistente adequação aos ditames deste livro, eles serão apreciados como elementos englobantes de uma discussão muito mais ampla, não apenas por tudo o que a expressão em si encerra, mas, sobretudo, pelas implicações que causam no terreno da pragmática. Ademais, assim será feito, também pela pluralidade de situações nas quais o negro é envolvido nas circunstâncias próprias das relações sociais, resultante que será explicitada de maneira oportuna e pontuada ao longo do tratamento dispensado às diferentes noções, com as quais as noções de ideologia se permitem harmonizar.

Sem pretender polemizar e muito menos abdicar da inevitabilidade de buscar uma forma de pensar e adotar o termo de maneira compatível com os contornos do quadro proposto a ser descrito, opto como entendimento primeiro por sua associação, não a um significado singular, mas a uma concepção, a uma compreensão, a um espectro que o capacite a revelar, de formas múltiplas, comportamentos sociais cotidianos marcados pela diversificação. Embora sejam partes de uma realidade, esses comportamentos refletem e retratam uma outra realidade, podendo, por vezes, distorcê-la, ser-lhe fiel ou apreendê-la a partir de um ponto de vista específico, advindo daí a opção por uma proposta de se aplicar à apreensão do termo, num primeiro momento, uma noção marcada pela multifuncionalidade. No que concerne à perspectiva ideológica, o acolhimento da ideia de que, para os horizontes deste livro é muito mais conveniente considerar uma pluralidade de significados do termo, do que privilegiar uma significação unívoca, encontra sustentação, também, no grau de dilatação e alcance das ocorrências nas quais o negro se vê envolvido na realidade de seu cotidiano, considerando a dimensão de suas inter-ações e de suas relações com o branco, como dito anteriormente.

Mesmo nas oportunidades em que as práticas sociais apresentam algum tipo de limitação à sua capacidade de produzir efeitos objetivos de proporções consideráveis, − no que diz respeito à não-assimilação da presença do negro no tecido social por parte dos componentes brancos da sociedade −, sempre há uma ou outra maneira de expressar sentimentos de rejeição discriminadores. Em alguma medida, tais procedimentos também traduzem posturas comportamentais ideológicas. Ao tratar de limitação, refiro-me a dispositivos legais, e, por vezes, até jurídicos, capazes de obstaculizar ações mais contundentes, apesar de não serem tão abrangentes a ponto de atingir esferas emocionais. Portanto, proposições dessa natureza revelam o quanto é um autêntico leito de Procusto, o modus vivendi do negro no interior da engrenagem social, tendo em vista sua relação com a classe dominante. Se ações contrárias a sua não-aceitação, eventualmente, são impedidas por mecanismos legais, nada o preserva, de forma cabal, de algum tipo de agressão, pois, na impossibilidade de ações explícitas, restam as dissimuladas: atuantes, incisivas, e não-mensuráveis materialmente.

Com base nesses princípios, pode-se demonstrar que, por ser muito matizada, a realidade vivida pelo negro no cotidiano necessita do auxílio de mecanismos capazes de aproximá-la da realidade factual, para se fazer representar literariamente. Para isto, torna-se uma exigência, o acesso a artifícios discursivos que sejam dotados do mesmo teor performático que caracteriza os mecanismos aos quais a realidade recorre. Em sendo assim, não há porque dispensar à ideologia, como circunstância, uma visão reducionista, mesmo porque, embora seja muito simples adotar um significado de manual, a natureza das discussões estabelecidas, mais do que de uma perfeita definição do termo, exige que o olhar direcionado sobre ele seja mais depurado, mais amplo, de forma a preencher pressupostos, acima de tudo, transetimológicos.

Quando pesquiso o tema, sinto que uma diversidade de significados coloca-se-me à disposição. É amplo o leque das formas possíveis de percepção do termo, a ponto de me remeter, inclusive, a conceitos que associam ideologia a planos distintos como o metafísico, o material, o social, o psicológico, entre outros. Uma consulta cuidadosa sobre o tema apresenta como resultado mais corriqueiro, e nem por isso de menor valor, a noção imediata de que ideologia, em princípio, é aquilo que se funda em ideias. A partir de então o conceito começa a evoluir pelo fato de agregar para si elementos de índole filosófica, cultural, religiosa e outras que contribuirão para que cada vez menos possamos reduzi-lo a um conceito monovalente, e cada vez mais devamos perceber sua forma multifacetada.

Um dos primeiros sintomas da evolução do conceito de ideologia manifesta-se no surgimento de uma dicotomia ao nível do sentido, ou seja, ela começa a ser entendida em vista da atribuição que se lhe confere um sentido positivo e outro de sentido negativo.

Observando o que dizem alguns dos inúmeros especialistas e estudiosos do assunto, percebo o quanto eles diversificam os conceitos, da mesma forma que, às vezes, os aproximam, à medida que agregam ou mantêm aspectos inerentes à essência do tema. A começar por Marilena Chaui, − sem que esta escolha como ponto de partida signifique qualquer tipo de organização cronológica −, se pudesse fazer uma síntese de seu trabalho, diria que, em tese, ela vê ideologia como sendo

[...] um fato “social” justamente porque é produzida pelas relações sociais, possui razões muito determinadas para surgir e se conservar, não sendo um amontoado de ideias falsas que prejudicam a ciência, mas uma certa maneira da produção de ideias pela sociedade, ou melhor, por formas históricas determinadas das relações sociais.88

Já Carlos Vogt, por sua vez, prefere dispensar pela ideologia um raciocínio que designa

tanto os sistemas de ideias-representação sociais (ideologias no sentido restrito) como os sistemas de atitudes e comportamentos sociais (os costumes) e não necessariamente como sinônimo de “má consciência” ou “mentira piedosa”, embora possa se dar o caso de que esta última acepção se aplique ao que vamos apresentar.89

A parte conclusiva da citação de Carlos Vogt corrobora minha opção por explorar o termo dentro de uma certa diversificação, muito embora, entre minha proposta de trabalho e a dele, não haja a menor relação de conformidade entre si. Nota-se que se evidencia em suas palavras, uma preocupação em não priorizar uma designação reducionista, na medida em que, embora de certa forma designando, ele deixa alternativas para se recorrer a outras possibilidades de interpretação, caso ao longo de seu trabalho essa necessidade venha a se configurar.

Avançando um pouco mais na tentativa de encontrar mais elementos pertencentes às linhas de raciocínio às quais me refiro, deparamos com conceitos universalmente conhecidos e reconhecidos, a exemplo dos formulados por Marx e Engels.90

Embora Marx não sistematize de forma delimitada a sua concepção sobre o tema, defrontamos constantemente com a presença dessa questão em sua obra, condição que nos autoriza a interpretar a visão marxista como uma proposta que, em tese, embasa a noção de ideologia no entendimento das relações sociais, vistas, predominantemente, como relações de produção. É a partir dessa consideração que Marx se posiciona, ora estabelecendo ideologia como sendo a propagação das ideias dominantes em uma época, ora como sinônimo de falsa consciência, sendo que, na primeira perspectiva, as ideias são consideradas como a tradução das ideias da classe dominante. Subjacente à concepção marxista de ideologia, como elemento representativo de ideias provindas da tradição, está a demonstração de que, nessa medida, ela atua como um empecilho para a transformação social.

Quanto a Engels, copartícipe da obra, seu entendimento de ideologia traduz-se como sendo uma maneira especial de pensar, como uma falsa consciência em que os motivos determinantes permanecem inconscientes, apesar de demonstrar, também, que esse inconsciente, por vezes, não é tão inconsciente assim. Tal definição coloca Engels numa rota divergente quanto à visão de Carlos Vogt, mas, além de uma possibilidade não inviabilizar outra, ainda confere maior consistência ao objetivo de demonstrar que nessa discussão, a eficácia será maior sempre que se puder contar com uma diversidade de significações.

Outra interessante noção de ideologia que devo considerar, tendo em vista sua capacidade de ir ao encontro do que proponho apresentar, é encontrada na ótica de Antonio Candido, na medida em que sua forma de ver está associada de maneira objetiva à estrutura do locus literário. Para Candido, a ideologia pode ser “um desígnio consciente, que pode ser formulado como ideia, mas que muitas vezes é uma ilusão do autor, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu,”91 muito embora, geralmente a “função ideológica se torne mais clara nos casos de objetivo político, religioso ou filosófico”.92

Como de certa forma já venho pontuando, juntamente com as abordagens mais objetivas sobre as diferentes possibilidades de conceituar ideologia, a determinação em considerá-la, inicialmente, a partir de uma pluralidade de sentidos, apresenta também, como razão de ser, aspectos retirados dos estudos desenvolvidos por Louis Althusser.93 Nele, valorizo o que diz respeito à visão desenvolvida sobre os aparelhos de Estado, quer sejam eles repressivos − governo, polícia, exército, tribunais, administração e prisões, entre outros −, quer sejam eles, eminentemente ideológicos, como Igrejas, escolas, sindicatos, imprensa, família e demais instituições presentes na sociedade civil. Embora na perspectiva althusseriana, os aparelhos repressivos funcionem, predominantemente, através da violência, em minha maneira de entender, o que dá sentido à repressão é a sua capacidade de se organizar a partir da necessidade em estabelecer, como referência, interesses e princípios ideológicos, antes de se entregar à obtenção de efeitos práticos. Portanto, pensar nos aparelhos de Estado, repressivos ou ideológicos como faz Althusser, significa, também, pensar em diversidade de ações ideológicas. Baseados na presença dessa diversificação conjuntural é que também se diversificam os interesses ideológicos, razão pela qual estou partindo, em princípio, de uma linha de raciocínio mais ampla. Notadamente, os interesses ideológicos nos quais se sustenta um aparelho como a imprensa, por exemplo, tendem a ser muito diferenciados dos interesses de uma instituição prisional. O que pretendo dizer com uma abordagem dessa natureza é que, interesses específicos estabelecem específicas formas de agir, porque também estabelecem formas específicas de pensar, ideologicamente. É pelas ações dessas perspectivas que entendo o tratamento dispensado ao negro no âmago do tecido social, nas relações do cotidiano, como uma conjuntura multifacetada, muito embora suas partes componentes estejam todas consubstanciadas numa mesma proposta de discriminar e pré-conceituar.

As situações até aqui mapeadas acerca das possibilidades múltiplas de leituras que o termo ideologia sugere, de certa maneira, colocam-me diante de armadilhas que só poderão ser desfeitas a partir da adoção, não de uma marca que o identifique com base em determinantes formais, mas, de um, entre tantos traços por ele apresentados. Depois de consideráveis observações, chego a uma situação que me posiciona ante uma inevitável necessidade de definir, ou mesmo, de fazer um recorte epistemológico que traduza com maior adequação, uma noção capaz de exprimir ideologia. Como não pretendo ser reducionista, estou estabelecendo como âncora o recurso a mecanismos ideológicos atuantes, não somente no que diz respeito aos interesses de uma classe, mas, fundamentalmente, duma classe dominante. Por isso, minha preferência pela definição de ideologia tem como escopo, ir ao encontro de uma análise baseada em termos de classes sociais, e dentro dessa perspectiva, das ações imprimidas pela classe dominante, procurando chegar, dessa forma, a um conceito que corresponda a essa ótica. Dentro dessa linha de pensamento, convém valorizar aqueles aspectos mais inclinados a demonstrar de quais formas a Literatura articula a visão e o entendimento de uma conjuntura social, tomando por base a presença, na estrutura dela, de mecanismos ideológicos, considerando como conditio sine qua non, nessa perspectiva, a imperiosidade de se mediatizar a interesses de natureza dominantes, a noção de ideologia a ser adotada. Em sendo assim, a concepção de ideologia que mais contribuições presta à atividade literária em seu papel de recompor e reinterpretar nossas heranças culturais e transmitir uma visão da história e do mundo, é aquela da qual a Literatura se vale, tomando por base, a capacidade da ideologia em desempenhar funções básicas de simulação pela ocultação, a partir da utilização de discursos representativos das relações entre diferentes classes sociais. É por esses motivos, que esses pressupostos teóricos são razões fundantes das abordagens de cunho ideológico a serem desenvolvidas. É este o requisito que capacita a Literatura a erigir acontecimentos que constroem situações de aparências universais e eternas, e porque assim se configuram, são interpretadas por determinações históricas com aspectos de evidências empíricas resultantes de impressões de sentido único e verdadeiro. Portanto, no atendimento dessa perspectiva, o sentido de ideologia que se ajusta de forma mais emblemática é o de propagação de ideias dominantes em uma determinada época, associada ao de falsa consciência da realidade, − estando automaticamente embutida nesta forma de ver, a função de representante das ideias da classe dominante. Porque esta é a acepção mais favorável à estrutura literária para ela caracterizar como natural, o que em grande medida é produzido pela História.

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3.2 - O silêncio como condição

Colocando um pouco à margem as questões relativas à ideologia, mas, nem por isso, delas buscando afastamento por completo, trago para apreciação no terreno das discussões propostas, outro elemento muito explorado pela criação literária, como expediente estético ou como estratégia discursiva: o silêncio.

Sem dúvida, o que mais chama a atenção entre as características encontradas no silêncio é sua curiosa capacidade em atuar de forma impactante, sem se pronunciar. Contribuindo com a composição de uma conjuntura, a literária, em que as impressões mais incisivas se configuram, justamente pelo seu poder de articulação, o silêncio nela transita como um ente que não se expressa, mas, um ente que significa, sendo, portanto, indispensável à significação, que é o ato de sua dimensão fundante. Não há como mensurá-lo a não ser por seus efeitos retóricos, políticos, interpretativos ou ainda pelos muitos modos apresentados, sempre sob a custódia da elipse e do implícito que ele utiliza para construir suas significações. Quando a matéria em pauta é o silêncio, não dispomos de marcas evidentes, mas apenas de sintomas, de sinais ou de pistas. Na tessitura literária, atua sempre de maneira a ser um dos responsáveis pela formação de um conjunto de circunstâncias que justificam as afirmações de Orlandi, em cuja compreensão manifestada, evidenciam-se as potencialidades desse elemento em se comportar como um ente estético, que mesmo sem existir, vai existindo como um nada que consegue ser tudo:

O silêncio não é diretamente observável, e, no entanto, ele não é o vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós o sentimos, ele está “lá” (no sorriso da Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas grandes extensões, nas pausas). Para torná-lo visível, é preciso observá-lo indiretamente por métodos (discursivos) históricos, críticos, des-construtivistas.94

Demonstrando a intenção em ampliar suas impressões sobre a capacidade do silêncio em se auto(re)velar, Orlandi ainda acrescenta que é por fissuras, rupturas e falhas que ele se mostra, fugazmente.95 [grifo meu]

Em linhas gerais, o silêncio aparece como um objeto de reflexão de diversas teorias, e em qualquer uma delas, nos coloca diante da dicotomia dizível/indizível, provocada pelo emprego de suas várias formas, capazes de produzir seus diferentes sentidos, e, pelas ações desses atributos, ele contribui para a criação de variadas formas de representações do mundo. É devido a essa capacidade congênita que ele se credencia como uma fonte a ser explorada como componente de um repositório de mecanismos encontrados na tessitura literária. Nessa conjuntura, o silêncio atua de dissimuladas maneiras, por meio das quais o artefato produzido pela Literatura assume feições controversas como as tratadas na oportunidade, abrindo espaço para uma análise de predominância crítica.

As referências às formas do silêncio querem dizer que, semelhantemente à ideologia, o silêncio também tem matizes, também tem dimensões. Igualmente, o silêncio manifesta-se de formas diferenciadas, e a forma de silêncio que mais interessa é aquela ligada a sua dimensão política, isto é, a dimensão do silenciamento em que se encontra toda a problemática de cercear a palavra, de tirar a palavra, de conduzir a palavra, a partir dos atos de obrigar a dizer, de fazer calar, da interdição de dizer, enfim, de silenciar ambígua e intencionalmente. É esta a dimensão do silêncio que melhor dá sentido à linha crítica proposta, pois, uma vez atendendo aos desígnios da dominação, converge para aquela situação que Kovladoff interpreta como o “silêncio da oclusão,”96 uma forma que, a meu ver, também se apresenta impregnada de teor ideológico e que, ainda segundo o pensamento de Kovladoff, com o qual comungo,

constitui um corte interpretativo no campo total do inteligível. Pode nomear algo de certo modo, somente com a condição de que silencie alguma coisa, também de certo modo. Na linguagem do hábito jaz − justamente silenciada − uma dimensão de sentido do real que, como matiz, é decisiva para a compreensão do valor da existência.97

É esta a conformação do silêncio que entendo estar evidente nas narrativas que trazem a presença do personagem negro, estabelecendo como referência básica as condições de atuação desse personagem, já tratadas ao longo das abordagens anteriormente efetuadas. Um silêncio que não se faz mais ou menos atuante, apenas pela presença das palavras, mas, também, pela omissão delas. Um silêncio que erige uma condição em que a prescindência de palavras que “provêm, usualmente, da garganta do hábito, do dogma e do preconceito − três manifestações de uma mesma e angustiante necessidade”−,98 permite que o discurso, lugar teórico catalisador do encontro da materialidade da linguagem com a materialidade da história, construa o imaginário necessário na produção dos sentidos, sobretudo, por contar com o valor expressivo da ideologia. Esse silêncio não é apenas a representação de uma ausência ou de um vazio; mais do que isso, é o reflexo da rejeição e do velamento de um discurso possível, porém, estrategicamente evitado, “como se disse, pelo medo, pelo hábito ou pelo preconceito”.99 Um discurso que não tem por objetivo apenas calar, mas que, acima de tudo, visa fazer dizer uma coisa para impedir que outras sejam ditas. Ele se apresenta com o objetivo de encobrir o real, ocultando ou negando situações que, em princípio, poderiam ser explicitadas, como “a mentira, o delito, o não sabido, o tácito, o que se abriga na simulação e, ainda, o que talvez com demasiada leviandade costumamos chamar de inconsciente”.100 [grifo meu] A citação de Kovladoff, com muita propriedade confere ao vocábulo silêncio uma configuração que passa a requerer que se lhe dispense um tratamento apropriado a elementos de natureza eminentemente ideológica, sendo esta a razão pela qual sua exploração se justifica como componente da discussão que aqui se desenvolve.

Abrindo mão de enunciados que poderiam ser proferidos e renunciando ideias que poderiam ser problematizadas, o silêncio da oclusão encobre situações e emudece vozes. Agindo assim, muito provavelmente, ele também contraria suas próprias pretensões, porque, visto por outras óticas, percebe-se que suas ações inquietam, incomodam e desestabilizam um leitor norteado por várias formas de leitura. É justamente acerca da quase inexistência de outras possibilidades de leitura que o raciocínio se desenvolve, com o intuito de demonstrar que elas se fragilizam, a partir da presença marcante, no texto, do investimento às mais variadas propostas ideológicas.

Enfim, o silêncio a ser explorado neste trabalho não se trata daquele de que o texto se nutre para se expressar, para se ajustar ou para se realizar como objeto estético representante de uma realidade exterior. Trata-se do silêncio que, prioritariamente, visa atender a pressupostos ideológicos dominantes, do silêncio que quer engendrar um silenciado a ponto de lhe conferir uma condição de subalternidade que, em certa medida consegue, porque este silêncio, mais do que funcionar como um ente literário, funciona como uma eficaz ferramenta ideológica.

Esse mecanismo é encontrado de maneira recorrente nos textos literários onde a presença de personagens negros se faz notar, e por isso, em situações como essas, a condição de subalternidade corresponde à condição do silêncio. Encontrado quase sempre submetido a artifícios discursivos que o amordaçam − em especial por ter obstaculizados os acessos ao discurso direto − o personagem negro passa a carecer necessariamente de quem o represente como silenciado. Em consequência, esta situação o transforma num objeto nas mãos do seu representante, condição que o impede de se subjetivar por completo. Seu contorno e sua estatura, a partir de então, passam a ser delineados e legitimados por outra pessoa que assume o seu lugar no espaço público, essencializando-o como o lugar genérico do outro do poder. Visto por esta ótica, o texto literário associa-se de maneira bastante harmoniosa ao texto histórico, com ele dialoga e imiscui-se pacificamente, e por meio dos apelos ideológicos presentes, tanto num quanto noutro, contribui para a construção de uma moldura que mantém o negro numa esfera de dimensões, excessivamente limitadas.

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3.3 - O mito e suas repercussões

Certamente, não são muitos os termos que, em quantidade expressiva, comportam na sua constituição, significações inerentes a planos distintos como o cultural, o filosófico, o histórico, o literário e outros, com capacidade semelhante à do mito. Por esse aspecto, o apelo ao termo sempre exige definição, considerando que o recurso a ele pode ir da referência a feitos heroicos ao desdobramento de uma narrativa, só para citar duas das muitas acepções que o mito assimila.

Para o entendimento das discussões a serem desenvolvidas neste tópico, não há necessidade em raciocinar com uma variedade de significações do termo, mesmo porque, uma pesquisa sobre ele mostra que somente um número reduzido delas se ajusta de maneira harmoniosa à vertente das questões postas para exame. Pelos mesmos motivos, também é igualmente irrelevante, empreender uma vasta discussão sobre o assunto.

O objetivo é, tão somente, tratar o tema a partir das causas e dos efeitos provocados pela sua utilização, quando se quer demonstrar o quanto o discurso que o utiliza, − seja de natureza literária ou não −, elabora perfis do negro, tomando por base sua condição de escravo, ainda que esta condição represente uma realidade pretérita. Em consequência, o cumprimento dessa proposta dedica ao negro, no edifício social, uma posição que, no imaginário do senso comum, continua a ser referência de uma noção que não se distancia muito daquela que ele ocupava nos idos tempos de Brasil-colônia.

Dentre as questões mapeadas como partes constitutivas de um discurso que se credencia como responsável pelo atendimento de circunstâncias que traduzem e mantêm interesses dominantes, a presença da criação de mitos é de suma importância. Em grande medida, a elaboração dos perfis aos quais me refiro configurou- -se, ao longo da história, por meio da exploração de mitos, quer pela via das ações práticas na colônia, quer pela via das formas que os diferentes autores, tanto da historiografia quanto da própria Literatura, utilizaram e continuam a fazê-lo na formatação de seus textos.

Antes, porém, de tecer qualquer comentário sobre o mito em si, convém ressaltar que, na perspectiva considerada, a noção mais adequada às premissas em pauta é a de Gilbert Durand, que concebe o mito como uma “representação simbólica que expressa pensamentos, culturas e visões de mundo, projetando o imaginário coletivo no simbólico e vice-versa”.101

No espaço colonial, a responsabilidade pela manutenção do negro nos patamares de inferioridade que nos acostumamos a ver era da competência exclusiva de uma minoria dominante, que, não satisfeita em escravizá-lo, se encarregou de inferiorizá-lo, através da criação de toda sorte de mitos sobre ele. Uma das evidências objetivas que exprimem o modus operandi da sociedade colonialista escravocrata, traduz-se na sua capacidade de atribuir ao escravo, idiossincrasias que se sabe que ele não tinha, como um pendor ao trabalho extenuante, inferioridade intelectual, propensão à preguiça ou a estapafúrdia acusação de ser ele desprovido de alma. Dessa maneira, a sociedade da época construía em torno do escravo negro, uma aura que mantinha intactas, tanto a situação dele, quanto a dela. Talvez o mais cruel de todos os mitos construídos em torno do escravo negro tenha sido aquele relacionado com os jovens recém-iniciados na vida sexual − obviamente que me refiro a jovens brancos e do sexo masculino −, quando se viam contagiados por doenças venéreas. Quanto a esse episódio, consta que se propalava na colônia que uma eficaz forma de cura dava-se pela simples ejaculação do contaminado numa menina escrava, e como os jovens certamente acreditavam, é de se supor que eles faziam daquela crença, uma prática. No que diz respeito a esse aspecto, convém não deixar de levar em consideração que os primeiros passos daqueles jovens no campo da sexualidade, na sua maioria, eram dados também com as escravas, e nessa medida, podemos supor em que proporções aquelas relações sexuais configuravam um ato de troca, e em que proporções eram, predominantemente, relações de poder.

Esses e uma infinidade de outros tipos de mito surgiram no seio de um complexo escravocrata que extrapolou em muito o exercício da exploração servil. As ações práticas efetuadas no cotidiano colonial encarregaram-se de revelar a eficácia do investimento feito pela classe dominante, na criação de mitos sobre o escravo, demonstrando, também, que o empreendimento por ela executado surtiu efeito imediato e se prolongou através dos tempos.

Perpassando séculos, a certa altura dos acontecimentos a versão prática da classe dominante passou a contar com textos que concretizavam os ideais dos homens da colônia. Se, no que diz respeito a questões coloniais, a criação de mitos visava atender propostas de caráter histórico, resultantes de ações práticas realizadas no cotidiano, de forma a acomodar condições extratextuais despidas de quaisquer preocupações em revelar a contundência que pode ser explorada por um investimento estético, o mesmo não se pode dizer quanto ao que acontece no espaço literário. O que se revela a partir dessa premissa é o sentido de valorizar resultados pertinentes a uma visão mais detalhada, sobre empregos estratégicos que procuram atender a necessidades que só os misteres do organismo literário, por via de regra, costumam requerer, consideradas significações específicas do termo.

Certamente, o reflexo no texto, da forma predominante de tratar o assunto, contribui para o fato de, ainda hoje, termos de lidar com uma frequência considerável, com situações que denunciam que não estamos, de todo, livres de substâncias que quanto mais perduram, mais convencem de serem congênitas à índole de nosso povo. Infere-se, portanto, que o poder de penetração que essas tendências possuem nos mais diferentes segmentos sociais, deve- -se, também, às contribuições prestadas pelos variados tipos de texto que fazem abordagens sobre o negro, ao longo dos anos que eles, cada um a seu modo, descrevem a história do Brasil.

A criação de mitos em torno da figura do negro começa a ganhar força, justamente pela perseguição que o fazer literário empreende, no sentido de empregar artifícios narrativos necessários à preservação de interesses hegemônicos. Engendrados, tanto pela construção de um imaginário estruturado sobre um natural processo de conscientização, quanto pela configuração dos textos atinentes aos negros, é pela via da indução que essa componente estratégica deriva para correntes de pensamento que contribuem para a consagração de ideias operadas num cotidiano marcado por linhas de raciocínio, de bases ainda coloniais.

No que concerne à Abolição, ganha pertinência a associação do conceito a pressupostos ideológicos, e nessa medida, ganham destaques, mitos que exaltam pseudossentimentos de nobreza da sociedade dominante, como a comiseração, a solidariedade e o humanitarismo. Nessa perspectiva, os mitos se consolidam e são difundidos como elementos responsáveis pelo êxito do processo abolicionista, de forma muito mais concreta e determinante do que o foi, por exemplo, o Bill Aberdeen.102 Ao longo do processo de formação de nosso conhecimento, nos habituamos a ouvir e a acreditar, devido a imposições de métodos oficializadores da historiografia, que o êxito da Abolição é mediato à índole bondosa da princesa Isabel, aliada ao senso humanitário de abolicionistas, homens, não raro, integrantes da elite, e em número expressivo até, possuidores de terras e de escravos. Uma análise dos textos que tratam do assunto dá conta de que, esta intenção marca presença nas abordagens sobre o escravo negro, caracterizando um lugar- -comum, pois, em linhas gerais, sempre deparamos com ela atuando como elemento formador do imaginário popular, confirmando a função do imaginário de ser “motivada não pelas coisas, mas por uma maneira de carregar universalmente as coisas como um sentido segundo, como um sentido que seria a coisa do mundo mais universalmente partilhado”.103

Mesmo nos casos em que se dispensam ao negro, manifestações, aparentemente desprovidas de conotações dissimuladas, é possível perceber o teor mítico que as envolve, sobretudo quando essas manifestações são de cunho literário. Normalmente, esses comportamentos se expressam pela via do elogio gratuito e extemporâneo, em passagens que ressaltam o vigor físico do negro como razão de sua escravização. Os textos que assim atuam, em tese, estão tentando dizer ao leitor que só alguém fisicamente forte como o negro preenchia os requisitos necessários para ser escravizado ou, o que é pior, tentam convencer que o negro foi escravizado pelo seu vigor físico, denotando razões que revelam a natureza mítica dos argumentos utilizados. É pela presença de elementos dessa natureza que esses textos acabam por ostentar, em suas tessituras, aspectos capazes de contribuir para a manutenção da hegemonia da classe dominante.

O interesse em examinar o mito e suas repercussões, consoante a expectativas concernentes à topografia literária, impõe a conveniência de valorizar uma concepção capaz de interagir com especificidades estéticas, próprias do campo da Literatura. Pensando dessa maneira, acrescento à noção de Gilbert Durand, anteriormente referenciada,104 outra forma de ver e pensar o mito, considerando o fato de que a concepção, ora apresentada, possui como principal característica, um estreito vínculo com uma dimensão antropológica, no que diz respeito à qualificação de valores físicos. É exatamente nessa variante que reside a condição que justifica o seu chamamento para participar nas observações a serem verificadas.

A concepção de mito à qual me refiro, num certo sentido se afasta da concepção proposta por Durand, tendo em vista a concentração, em si, de elementos que a especificam. Apesar disso, ela preserva de forma preponderante, suas afinidades com o nível imaginário daquela, fator importante numa estrutura que tem como dimensão fundante o seu viés antropológico. A opção por ela como referência de compreensão propícia para associar-se à concepção anterior é uma forma encontrada para conferir maior consistência às ideias que procuro defender. Tal opção encontra razão de ser no fato de, neste caso, apesar de mantidas certas identidades, provocar uma ampliação de seu sentido, fenômeno responsável por sua retirada de um espaço circunscrito a uma noção de base metafísica, aumentando dessa forma as possibilidades para que o mito não seja prioritariamente reconhecido apenas a partir de um sentido monofacetado. O que se busca, assim, é a oportunidade para que se lhe permita ser reconhecido e interpretado, não apenas como algo prioritariamente metafísico, mas, também em função de sua capacidade em comportar um sentido antropológico, e nessa medida, possibilitar que determinadas narrativas se configurem como “a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade”.105 [grifos meus]

Conforme enfatizado há pouco, os objetos estéticos produzidos pela Literatura, que apresentam entre as suas diversas dimensões, pelo menos uma, que se mostre comprometida com uma proposta de contemplar conteúdos mediatizados pelo desdobramento de inações de personagens negros, são, ipso facto, tributários de ocorrências de situações que postulam sentidos. Esta estratégia não é percebida com facilidade, tendo em vista o tratamento que comumente esse tipo de produção lhes dispensa, tanto no que diz respeito às possibilidades proporcionadas pelo plano da história,106 quanto no que diz respeito às proporcionadas pelo plano do discurso.107

Ora, como consequência natural do processo de criação, a condição de postulante de sentidos presente nos artefatos literários que primam por esse comportamento elabora um importante nível dos textos, que é o da complexidade, e como essa postulação não se manifesta com a clareza a que estamos acostumados a encontrar nas evidências objetivas, ela vai se manifestar, então, sob os auspícios da etiqueta tácita. Para que esta condição seja observada e apreendida em sua plenitude é indispensável atender aos ditames de uma peremptória exigência gerada por tal complexidade, o que implica a imposição de se desenvolver, sobre o artefato literário, uma leitura que seja resultante de ações norteadas por uma predisposição, só encontrada em alguém que se propuser a fazer do ato da leitura, um ato de démarche. Caso contrário, a tendência é que a leitura não ultrapasse os níveis do imediato e do tangível, articulados pela preponderância de sentidos que, de certa maneira, são delineados já no ato da criação.

O sentido antropológico apresentado, que reivindica reconhecimento na concepção de mito, não exclui nem minimiza a importância da componente imaginária que lhe é inerente, quando, na estrutura em que esta concepção se encontra, o convite ao imaginário também pode atuar como contributo de deslindamentos de conteúdos literários. Da mesma forma, a presença do imaginário não exclui o sentido antropológico, sucedendo, entretanto, que o realce conferido ao predomínio dessa vertente acaba credenciando-a como um meio capaz de problematizar e mediar pontos de vista, criados sobre efeitos práticos distinguidos pelo discurso. Esses efeitos, por sua vez, acontecem como resultado da ocorrência de situações muito especiais, a exemplo daquelas que só uma dimensão antropológica tem capacidade de articular com a realidade social, muito embora, nesse processo articulante, a realidade social demonstre ser incapaz de resolver tensões, conflitos e contradições engendrados no decorrer do cotidiano. E para mascarar tal incapacidade e apresentar respostas compatíveis com os interesses da classe dominante, a Literatura, nesses casos, deixa-se nortear pelos ditames do imaginário. Por esses métodos, faz do imaginário a saída para resolver questões nascidas no âmago das malhas das relações sociais cotidianas, que, por serem profundamente alicerçadas em predisposições de origem biotipológicas, como expressa a própria concepção de mito ora sob enfoque, o mais coerente seria que a Literatura dispensasse por essas circunstâncias, um tratamento caracterizado por contornos diferenciados dos que normalmente são os por ela adotados.

O que se espera de relações marcadas pela tensão, pelo conflito e pelas contradições é que elas sejam apanágio de uma conjuntura, preponderantemente fundada em atitudes comportamentais práticas, e, não, imaginárias, e como tais, fundantes de resoluções objetivas que mais bem irão se adequar a tomadas de decisões, sustentadas por semelhantes formas de pensar os acontecimentos.

Em condições normais, a vida é tensa, a convivência diária é conflituosa, o mundo é contraditório e caótico, o que configura marcas que implicam em relações de dominação e resistência, assim como em adaptação ou resistência a hierarquizações. É esse conjunto de elementos que se responsabiliza por gerar situações que tendem a tornar-se muito mais incisivas nas ocasiões em que as relações interpessoais se estreitam de maneira acirrada, em vista da colisão imposta pela disputa natural de interesses e de espaços comuns. Portanto, com base nessas evidências, percebemos que só mesmo medidas frontais são capazes de apontar para soluções ou de aparar arestas engendradas por situações dessa natureza. Acontece, porém, que um conjunto de ações que persegue a verdadeira solução de problemas dessa ordem, ou seja, de grande complexidade social, ao mesmo tempo procura preservar interesses, e, em se tratando de priorizar preservação de interesses, a solução adotada, quase sempre é aquela que, de fato não resolve, mas, dá ares de aparente harmonia, à associação de substâncias que, naturalmente, não se coadunam. Esse tipo de solução prevalece, invariavelmente, tendo em vista a utilização de processos míticos, que têm por finalidade, preservar situações de interesse da classe dominante.

Na discussão sobre a posição ocupada pelo negro no tecido social, quer no período colonial, quer nos séculos subsequentes, ao tomar por base a inserção de elementos, que de maneira recorrente são omitidos pelos textos, começa-se a bem perceber, o porquê do apelo sistemático feito por eles, à presença de elementos estruturantes do imaginário vigente. Os mitos, assim como os estereótipos, desempenham papéis de criadores de pseudorrealidades que repercutem como realidades indubitáveis, e se beneficiam por construírem situações que, na sua essência, deixam de ser atendidas pela historiografia oficial.

Dessa forma, a pretensão não é no sentido de querer demonstrar que o simbólico e o imaginário são incapazes de atuar de maneira eficaz na formação da mundividência do leitor na sua relação com o artefato literário; muito pelo contrário, até porque, na mais ampla medida, ambos, simbólico e imaginário, são entidades congênitas ao fazer literário. Assim sendo, as noções de simbolismo e de representação imaginária a que me refiro são aquelas que se encontram embutidas na conjuntura mítica. O que se pretende, portanto, é demonstrar o quanto, numa tessitura literária, o apelo a esses elementos míticos, quando valorizados a partir de uma dada preponderância, minimizam a capacidade decisória de personagens, neutralizam ações de referências tácitas, bloqueiam o poder impactante de uma dimensão crítica do texto e repercutem falsas ideias no cotidiano. Uma vez considerado em sua plenitude, o sentido antropológico reivindicado pela concepção de mito que se agrega à noção apresentada por Gilbert Durand transforma em ativos, desdobramentos de recepções normalmente adeptas de certa passividade, e amplia as possibilidades de visão que se pode construir sobre a realidade exposta pelo objeto estético literário, à proporção que se constitui como um aspecto capaz de conferir, aos fatos relatados, um pouco mais de visibilidade e uma porção maior de realismo, proporcionando, dessa forma, muito mais possibilidades de reflexão.

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3.4 - A modelação pelo estereótipo

A figura que na sequência apresento como mais uma representante das estratégias empregadas pelo discurso literário, no seu empreendimento para desdobrar conteúdos e técnicas formais pela utilização de métodos que lhe possibilitem disseminar ideias produzidas pelas criações que contribuem para a manutenção do establishment, trata-se do estereótipo.

No que diz respeito à utilização desse mecanismo, como recurso intencionalmente empregado com o objetivo de modelar a figura do negro, convém lembrar que, embora sua elaboração, em grande medida, também dependa de ações práticas, as condições em que ele se desenvolve de maneira mais percuciente correspondem exatamente àquelas que lhe são proporcionadas pelo espaço da topografia textual.

Tendo em vista que sua função básica é deformar uma dada realidade, para se instituir em sua plenitude, o estereótipo necessita contar com razões preexistentes, às quais ele imprime novas inflexões. Centradas todas em ideias preconcebidas, as novas inflexões sobrevivem devido à aliança que naturalmente se dá, entre desconhecimento e intenção de deformar algo que não se conhece plenamente, em benefício de interesses que precisam ser preservados.

Num certo sentido, as circunstâncias em que o estereótipo se manifesta são contrárias às do mito, considerando que este, por ser de índole formadora, para se consagrar como tal, depende muito da prática de uma tradição oral.

Para o estereótipo, a topografia literária acaba caracterizando--se como um, entre os espaços ideais para a difusão de discursos estereotipados. Tal propriedade se efetua satisfatoriamente, tendo em vista a própria índole da estereotipia, cuja essência é produto do desdobramento de um processo semelhante ao trabalho do filigranador, o que, no entanto, não significa dizer que os discursos míticos, ao utilizarem os textos como veículos de expressão, nele também não sejam desenvolvidos com a eficiência que seus adeptos esperam.

O estereótipo é um ente de caráter social, e por assim ser, relaciona-se com uma quantidade expressiva de contingências próprias das variantes desse arcabouço, como a ideologia, o preconceito ou a noção de alteridade, só para citar uns poucos exemplos de sua capacidade de interagir com outros dispositivos sociológicos.

Muito embora, nas conjunturas em que aparece, − literárias ou não −, o estereótipo se apresente sempre na companhia de um dos elementos citados ou de outros de natureza equivalente, como estratégia discursiva o sentido que satisfaz é restrito. Nessa perspectiva, o mais adequado trata-se daquele resultante de uma aliança espontânea e harmoniosa que o estereótipo faz com circunstâncias que, a rigor, nunca se lhes dispensam o devido tratamento, no âmbito das discussões que norteiam as relações sociais, quer sejam as que vigoravam em tempos de Brasil-colônia, quer sejam as vigentes no dia a dia dos tempos subsequentes.

Uma das circunstâncias diz respeito ao indeclinável empreendimento que deve ser feito no sentido de procurar descrever com a maior abrangência e profundidade possíveis, uma análise que resulte numa fotografia que seja, na verdade, uma reprodução fiel do sujeito que apela para o uso do estereótipo. A outra consiste em fazer com que desse comportamento analítico seja possível extrair os mais diferentes interesses que esse mesmo sujeito pode vir a ter, dentro de uma conjuntura social qualquer, e que o estimulam ao recurso de tal artifício. Ao mesmo tempo, deve-se valorizar de forma peremptória na análise dos fatos, tanto uma quanto outra situação percebidas.

Assim sendo, essas circunstâncias passam a ganhar importância pela capacidade que têm de participar da constituição de um processo de conhecimento, à medida que passam a fazer parte, também, das linhas de raciocínio empregadas no processo analítico desenvolvido sobre artefatos literários. Para isto, é preciso que, na análise desenvolvida, tais circunstâncias recebam a adequada valoração, a ponto de contribuir para a diversificação de interpretações, lançando por terra a fixidez presente nas formas de ver e pensar acontecimentos sociais, preponderantes nas oportunidades em que a ausência delas, pela sua própria exclusão, proporciona ao estereótipo, condições necessárias à consecução de seus objetivos.

No momento em que as circunstâncias referidas passam a integrar o conjunto de requisitos indispensáveis a uma compreensão mais consistente dos acontecimentos, o estereótipo se credencia a ser percebido como uma estratégia discursiva que, no caso da Literatura brasileira, visa estigmatizar elementos oriundos da memória cultural africana, apagando deliberadamente da História, a história dos vencidos, pelo modo construído e não--essencialista com que ela traz à luz as identidades culturais dos afrodescendentes. Dessa forma, prevalece uma inclinação que surge a engendrar uma “forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido,”108 para, dessa maneira, construir, também ao nível das ideologias, o conceito de alteridade que lhe interessa sobre o sujeito que, no caso em questão, trata--se do personagem negro. Por ser providencial, a valorização das citadas circunstâncias inibe as ações do estereótipo e impede que se lhe confira uma capacidade decisória, possível de reduzir a essência dos acontecimentos a um nível que, premeditadamente, quer atender aos mais variados interesses de grupos ou instituições dominantes.

Com o intuito de explicitar de forma mais precisa de que maneira explorar as ações dessas circunstâncias, torna-se interessante relacionar com elas uma condicionante que assume papel significativo dentro desse processo de avaliação, qual seja, uma entidade chamada senso comum, bem como os modos por meio dos quais o senso comum apreende a realidade do cotidiano.

A capacidade do estereótipo em atingir com maior ou menor contundência, um número maior ou menor de pessoas, depende da forma como ele é absorvido pelo senso comum. A razão de ser do estereótipo é o senso comum; é para ir ao encontro dele que o estereótipo é criado, e só em função dele, o estereótipo consegue ter existência real.

Já o senso comum, por sua vez, tem a consistência de seu arcabouço condicionada ao conhecimento que ele, senso comum, julga ter da realidade do cotidiano. Portanto, estereótipo e senso comum estabelecem entre si, alianças que, uma vez conjugadas, funcionam como relações de dependência que costuram um entrelaçamento em favor do resultado final alcançado pelas ações impactantes do estereótipo.

Além de se constituírem como fontes de conhecimento, − e justamente por esse motivo − , os textos marcados pelas formas de construção até aqui expostas, também influenciam no aspecto da perspectiva que o senso comum constrói sobre a realidade do cotidiano. Assim se dão os desdobramentos, na medida em que a construção teórica e as ideias dos intelectuais autores, neles contidas, corroboram o que Berger e Luckmann asseveram sobre aspectos latentes a uma predisposição tão autotélica de se formular o mundo que temos ao nosso redor, e do qual somos parte integrante:

... o mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada do sentido que imprimem as suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real para eles.109

E são ainda os mesmos Berger e Luckmann que destacam que “o senso comum contém inumeráveis interpretações pré-científicas e quase científicas sobre a realidade cotidiana, que admite como certas”.110 Em consequência, podemos perceber que as exigências deste estatuto são atendidas com bastante propriedade nos casos em que o sujeito da investigação é o negro, devido à associação que essas premissas estabelecem com um construtivismo − ora cientificista, ora espontâneo − nascido do hábito de observar o tratamento que a classe dominante, costumeiramente, dispensou ao negro ao longo da história.

Uma condição que presta expressivo contributo para que o estereótipo obtenha sucesso em sua atividade de disseminar padrões fixos encontra sustentação na forma semelhante que empregamos no ato da apreensão da realidade da vida de todo dia, visto que, no geral, todos apresentamos uma certa inclinação pela prática da padronização. Quanto ao exposto por esse ponto de vista, novamente observam Berger e Luckmann:

... apreendo a realidade da vida diária como uma realidade ordenada. Seus fenômenos acham-se previamente dispostos em padrões que parecem ser independentes da apreensão que deles tenho e que se impõem a minha apreensão. A realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes da minha entrada em cena.111

Acostumado a apreender a realidade a partir das rotinas do dia-a-dia, enquanto esse processo não sofre interrupção, o senso comum apreende-a como rotinas não-problemáticas, portanto, como acontecimentos normais. A condição determinante para a ocorrência desse desempenho é exatamente aquela com a qual ele já se habituou a conviver, em consequência da presença constante de situações que se configuram pela repetitividade, e que são representadas pela manutenção de rotinas que, por sua vez, se dão pelo interesse em impedir o surgimento de fatos novos ou, em alguns casos, até pela tentativa de inibir as ações desses fatos.

A interrupção desse processo ocorre em virtude do surgimento de fatos novos que alteram o panorama habitual, quase sempre provocado por um choque oriundo da ruptura de uma linearidade. Os resultados trazidos por essa interrupção acabam exigindo a adesão e a adoção de redimensionamentos, de redefinições comportamentais e de pensamentos, que, não necessariamente, vão ao encontro dos interesses dos membros ordinários da sociedade, − dos quais o senso comum é objeto de referência −, mas, inevitavelmente, os colocam diante de um mundo novo, que exatamente por assim ser, é, também, problemático. A partir do momento em que esta nova perspectiva não atende aos interesses desses membros, a reação normal é que eles também não atendam às exigências, naturalmente colocadas por esta nova situação, atitude que resulta na construção de uma relação de antagonismo com a nova situação que agora se lhes depara.

Em termos pragmáticos, a rotina não-problemática, por vezes assim se apresenta, exatamente em vista do apelo que faz às ações dos estereótipos, e tanto a relação antagônica que se verifica entre a interrupção e o surgimento de um mundo problemático, quanto os casos em que se dá a manutenção de condições que impliquem na continuidade de um panorama não-problemático constituem expedientes que mantêm o status quo.

É pela utilização de expedientes da natureza dos que até aqui foram expostos que se constroem prejulgamentos e se formulam generalizações que prevalecem, em virtude do apelo a estereótipos que têm como razão de ser, a função de manter situações que se coadunem com as noções de não-ruptura e de não-problematização de uma ordem social dada e instituída. Proveniente da valorização de padrões fixos elaborados a partir do investimento em ideias preconcebidas, este processo procura construir ideias que atendem seus interesses, e por isso, formulam-nas por caminhos transversos. É dessa forma que se consagra a possibilidade de classificar pessoas ou eventos sobre os quais se propagam informações deformadas, em virtude da falta de conhecimento da constituição do assunto, do formato do objeto ou da essência do sujeito que estiver sob seu enfoque, por parte daqueles para quem a visão estereotipada prevalece.

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3.5 - Discurso direto, indireto e indireto livre

Os elementos representantes de expedientes estratégico-discursivos que sinalizam para a existência de uma delimitação de ações de personagens negros constituem apenas parte de uma questão mais ampla. A afirmação de que tudo se configura por meio de mecanismos que não são exclusividade da topografia literária, mas nela se associam na formação de um sistema produtor de determinantes estéticos, começa a exigir, em termos pragmáticos, esclarecimentos sobre as maneiras como tudo se verifica. A exigência maior é no sentido de demonstrar de que forma, razões teóricas e determinantes estéticas elaboram uma conjuntura narrativa, caracterizada pelas ações de elementos que se comportam de modo a reservar, ao personagem negro, um espaço identificado com uma invisibilidade, uma inação e uma passividade fundadas num olhar estrábico.

A grande pergunta que se faz, então, é, aonde, quando e de que maneira, ideologia, silêncio, mito, estereótipo e outros dispositivos de arcabouços semelhantes são empregados como estratégias responsáveis por ações de procedimentos literários que justificam uma discussão como a que ora se propõe. Por tudo que se tratou até agora, a resposta se torna evidente, inevitável e imediata: na linguagem e pelo desdobramento dela. Na exploração de uma linguagem que não se desenvolve apenas de per se, mas, que, em seu desdobramento, também valoriza nuances predominantemente ideológicas, possibilitando que artifícios discursivos estruturem uma perspectiva que produz representações mediatizadas a concepções ideológicas.

Pelo exposto é possível, então, que o leitor sintonizado com os pormenores do fazer literário sinta-se impelido a questionar, se um objeto estético já não está invariavelmente associado a uma proposta ideológica plena, ou se a linguagem literária, por si só, já não é um fenômeno ideológico por excelência, assim como qualquer modalidade de linguagem? Digo que sim; entretanto, é preciso dizer também, que tão importante quanto estar sintonizado com o desempenho de uma função ideológica espontânea, congênita, naturalmente embutida numa composição escrita, sobretudo na literária, é dispensar atenções semelhantes aos casos em que deparamos com ela utilizada intencionalmente, visando objetivos estéticos ou conservadores.

Nas oportunidades em que esta situação irrompe com clarividência, convém estabelecer como parâmetro a essência do produto das relações sociais do cotidiano, latente às abordagens desenvolvidas. Esse olhar deve considerar os diferentes aspectos da moldura que cerca essas relações, e transcendê-las de forma a inibir resultados imediatistas. Nesses casos, a referência incide, justamente, sobre os resultados alcançados como consequência do apelo a mecanismos mencionados como estratégico-discursivos, a partir dos quais se consegue atender a propostas ideológicas. É pela relevância atribuída a essa conjuntura que, na topografia literária, o assunto em tela demonstra a extensão dos interesses hegemônicos a preservar. Adotando uma linha de ação que os preserva, a Literatura está contribuindo para a manutenção do establishment, em razão de seu poder de penetração nos mais diferentes segmentos sociais e da consistência dessa vertente ideológica.

Partindo do princípio que o fazer literário é, por natureza, um fazer ideológico pleno, as marcas dos pressupostos ideológicos que lhe são congênitos, encontrados nos textos, devem ser notadas, sim, mas é preciso que se diga que essa dimensão do texto não confere a essas marcas, o estatuto de fenômeno. O que possibilita determinados matizes ideológicos serem vistos por esse aspecto são exatamente as pretensões embutidas neles, no sentido de serem utilizados para construir ou possibilitar a formação de mundividências que se configurem, tendo por base, a noção de dominância como uma condição indispensável. A partir dessa perspectiva, começa a se consagrar como peremptória a presença de uma derivação da ideologia dominante comumente empregada, sobretudo como integrante decisiva no desdobramento de um processo criativo. Apresentando-se quase sempre em estado latente, da mesma forma que os demais apelos ideológicos encontrados nas construções literárias, o que distingue essa variante ideológica das demais é a intenção acentuada no sentido de preservar valores de natureza dominante. Nos casos em que a referência recai sobre o que se considera como presença espontânea e congênita da ideologia na Literatura, percebe-se que ela também quer convencer, quer persuadir e quer advertir, mas, não necessariamente, apresenta qualquer tipo de comprometimento com o quesito dominância, que é a marca distintiva entre esta e aquela forma de apelo ideológico. É pela presença da dominância e em função dela, que a utilização de estratégias discursivas torna--se imprescindível, na missão de atingir metas de interesse da classe com a qual elas se identificam.

Um exemplo sintomático dessa predisposição encontra-se na providencial observação feita por Mikhail Bakhtin, na qual ele afirma que, “o signo é, por natureza, vivo e móvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em torná-lo monovalente”.112 [grifos meus] À sua propositura, eu acrescento que o objetivo da classe dominante em torná-lo monovalente encontra razão no sentido de poder contar com uma limitação que resulte na tradução de uma visão reducionista, que permita o desenvolvimento de uma leitura única e perspectivista. Visão que possibilita erigir um critério de valoração único, preferencial e essencialista, que prioriza, sobre o alvo, um olhar centrado em parâmetros pré-estabelecidos. Dessa forma, a classe dominante persegue o atendimento de seus interesses, proporcionando a si mesma, maneiras de reforçar e manter seu poder dominador. Portanto, os artifícios eminentemente ideológicos, bem como o recurso ao silêncio, ao mito e aos estereótipos como conteúdos estéticos impregnados de densidade ideológica, constituem o arcabouço da linguagem, por meio da qual é produzido um artefato literário, pontuado, em sua plenitude, por um intuito ideológico dominante. Observadas essas particularidades, imergimos numa variante da representação literária pouco valorizada, mesmo porque, quer me parecer que esses aspectos não são fortuitos, considerando que esta feição do texto, assim se pronuncia, justamente por se estabelecer como meta a ser alcançada por uma conjuntura sociopolítica, histórica, econômica ou de consistência correspondente que se pretende imperecível.

Em virtude do investimento feito pelo texto no sentido de atender aos pressupostos dessa dimensão, o leitor se vê diante de imperativos de uma linguagem que se impõe de forma a criar um canal de cerceamento de possibilidades humanas. Através da utilização de métodos que contam com contribuições prestadas por conteúdos ideológicos, constroem-se sobre o personagem negro, situações que lhe atribuem invisibilidade e atuações pouco relevantes, como resultado da elaboração dessa mesma linguagem. Como consequência natural, essa linguagem passa a fazer uso de entes de eminência teórico-literária que, pela forma como são explorados, também se revestem de pregnância ideológica, tanto quanto os demais elementos citados como referências de estratégias discursivas. Dessa maneira e por meio desses expedientes, o texto plasma seus personagens e dá a impressão de que seu autor, pretensiosamente lida com alguém que conhece em profundidade, justamente por ele ser o principal responsável por tal ação modeladora.

Todos os efeitos práticos dessa linguagem se configuram na e pela construção de situações que envolvem personagens negros. Nelas, pode-se perceber com clarividência que esses personagens, apesar da presença amiúde em tais composições, por via de regra são confinados numa espécie de gueto literário que nada difere do gueto social. Esta prática literária corrobora e dá prosseguimento a uma prática do cotidiano em que a esfera dominante das relações sociais está habituada a ver e a identificar os negros como elementos com poder de trânsito, circunscrito apenas, a espaços marginalizados ou de pouca expressão. Esses espaços se opõem aos espaços públicos, que são locais em que todos podem ser vistos e ouvidos por todos, de forma a garantir a realidade do mundo e de nós mesmos, e se opõem, também, a espaços privados.

Por fazer desses locais e dessas posições, algo que, naturalmente lhes pertence, e pela força do hábito dessa visão prática, a linguagem, como ferramenta de dominação que é, demonstra toda sua capacidade para forjar a predisposição essencialista dispensada ao personagem negro, na medida em que constrói situações para que a voz dele seja sempre silenciada, e quando não, que seja a voz de outrem. Na mesma proporção, a linguagem faz por onde a ação dele, quando houver e se houver, que seja a mais anódina possível.

O principal ente teórico-literário que a linguagem utiliza com fins ideológicos na sua predisposição de plasmar o personagem negro, segundo objetivos já destacados, é o discurso ou estilo. Quer seja direto, indireto ou indireto livre, o discurso que a Literatura brasileira confere ao personagem negro − ou por vezes deixa de conferir, como no caso do discurso direto − é sempre o reflexo da antecipação de uma expressão ideológica a uma expressão estética. Tal situação prevalece, mesmo nos casos em que o texto, para se pronunciar em toda a sua dimensão, depende da atuação desse personagem, sobretudo pelo fato de ser ele expressiva parte integrante dos contributos que precisam ser considerados, num processo de valoração da obra que a contemple em sua plenitude.

A mais importante consequência contida na proposta de, preferencialmente, conferir ao personagem negro os discursos indireto e indireto livre, traduz-se na pregnância ideológica que nesse processo produtivo reveste esses entes, que são na sua origem, de eminência teórica. Dessa forma, amplia-se o conjunto de estratégias discursivas adotadas, à medida que eles são colocados em igualdade de condições com o mito, o estereótipo, o silêncio e com toda sorte de conteúdos ideológicos que, de fato, representam a função que todos eles, estrategicamente, desempenham na produção de artefatos literários que se propõem a abordar o negro, tendo como pano de fundo uma arena chamada Brasil.

Em qualquer discussão sobre as formas do discurso conferido ao personagem, o normal é que o raciocínio siga uma sequência lógica, naturalmente estabelecida, que compreende o discurso direto, o indireto e o indireto livre. No entanto, para efeito de explorar por último o fenômeno de maior impacto, o discurso direto será trabalhado como coroamento das discussões.

Tanto o discurso indireto quanto o indireto livre se configuram como formas estratégicas e ideológicas de silenciar o personagem negro e torná-lo invisível, porque a voz, os anseios e as ações desse personagem, sobretudo no que diz respeito ao primeiro caso, não são transpostos, literalmente, para a estrutura desse discurso, porque, nela, esses elementos não se revelam nos conteúdos, mas, sim, nas formas da enunciação, que são formas, também, indiretas. À medida que são indiretas, essas formas são, também, passíveis de questionamentos, porque evidenciam a imposição de um discurso que visa atender a conveniências ideológicas, em detrimento da valorização de pressupostos estéticos. Nesse desdobramento, essas formas chegam mesmo a revelar uma representação a contrapelo, porque formulam um discurso que, não obrigatoriamente, é o proferido pelo personagem. Por equivaler ao discurso de outrem, ele é visto “como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de uma construção completa, e situada fora do contexto narrativo,”113 merecendo destaque, o fato de que esta outra pessoa integra outro contexto social e nessa conjuntura, postula a continuidade dessa feição.

Já no que se refere ao discurso indireto livre, a situação é semelhante quanto a questões relacionadas a aspectos estratégicos e ideológicos. Apesar dessa condição, seu grau de percuciência aumenta consideravelmente, tendo em vista que uma topografia literária que reserva esse discurso a um personagem de forma premeditada, intencional e recorrente, faz com que a condição de personagem cerceado em suas básicas possibilidades de agir e expressar, cheguem ao máximo. Esta técnica demonstra a existência de uma manobra significativa que leva esse tipo de objeto estético a contribuir com a manutenção do sistema político, cultural e socioeconômico que norteia a sociedade.

O discurso indireto livre é o expediente mais sutil e mais versátil que o autor tem a sua disposição, para impingir infiltrações de réplicas e de comentários que acabam por desfigurar a essência de conteúdos pretensamente manifestados pelo personagem. Por esses motivos, ele se caracteriza como a apreensão do discurso de outrem por excelência, porque, em tese, ele não se interessa em impactar em profundidade o intelecto do leitor, mas, quer com prioridade, causar impacto sobre sua imaginação, que, conforme todo um processo de construção e representação, busca seu estímulo pela via das conveniências ideológicas.

Se bem observado, podemos perceber que, de certa forma, o recurso impositivo aos discursos indireto e indireto livre pressupõe uma incoerência, pelo fato de serem conferidos a personagens que têm presença expressiva dentro da tessitura literária da qual fazem parte, e, na medida em que são contemplados com presença física e espacial expressivas, é de se esperar que o sejam, também, com possibilidades compatíveis de ação e expressão. Esta posição não significa, de forma alguma, qualquer pretensão de convencimento no sentido de se pensar como inviável, personagens terem sua trajetória marcada pelo discurso indireto ou pelo indireto livre; muito menos se quer sugerir que essas modalidades de discurso tenham, sempre, capacidade para minimizar a estatura de um personagem. Sucede, porém, que o comportamento natural, − especialmente em narrativas estruturadas sobre uma construção em abismo −, é que personagens com essas potencialidades, em princípio, sejam, também, providos de discurso direto. Quando assim não acontecer, entendo ser mais pertinente às narrativas das quais eles fazem parte, − em vez do narrador em 3ª pessoa onisciente intruso, tão propenso a manipular personagens e até leitores −, um foco narrativo em 1ª pessoa ou em 3ª pessoa neutro, justamente para que essas razões teóricas deem existência a uma relação de coerência marcada por uma proporcionalidade entre presença e atuação.

Facilmente podemos demonstrar, por comparação, o quanto é orientada a disposição em conferir a personagens negros, os discursos indireto e indireto livre, lançando mão de inúmeras obras da Literatura brasileira, especialmente romances, que também apresentam personagens de perfis semelhantes ao do negro, no entanto, sem o apelo a tal orientação. Senão vejamos: qualquer uma delas, estruturada de forma a não proporcionar a um personagem, possibilidades compatíveis com presença e atuação, é sempre uma narrativa desenvolvida numa conjuntura textual reduzida ou sobre uma estrutura próxima à monocêntrica. Nessa dimensão, o foco narrativo é sempre em 3ª pessoa onisciente intruso, e a imposição ao personagem, dos discursos indireto e indireto livre, não o minimiza nem cerceia suas expressões, porque esse narrador adota posturas ideológicas interessadas em revelar aspectos que não são de natureza dominante, e é por esse mesmo narrador que conhecemos facetas interessantes de personagens que, teoricamente, são portadores de alguma marca que, em algum aspecto estigmatiza sua imagem. Percebemos que o mesmo não se dá com o tratamento que a Literatura brasileira, por via de recorrência, dispensa ao personagem negro, por priorizar, no tratamento deste, sempre o atendimento de disposições estratégicas e de conveniências ideológicas dominantes, contrárias às empregadas em casos análogos.

Tão evidente e tão estratégica quanto a adoção de tais métodos é a disposição em abdicar da possibilidade de conferir discurso direto ao personagem negro. Ora, se por um lado o discurso direto implica na capacidade do personagem em agir e expressar por si mesmo seus sentimentos e suas emoções, − ambas, implicações de natureza social − , por outro lado, o discurso indireto quer significar exatamente o contrário, embora em muito menor dimensão que o discurso indireto livre. Em se tratando de criação literária, esta componente obedece a uma lógica que resulta, se não na total impossibilidade, pelo menos na minimização da possibilidade de o personagem negro vir a ser conduzido, segundo influências do narrador, e por que não dizer, do próprio autor.

Na discussão a respeito do discurso direto, penso que é indispensável destacar o quanto a questão ideológica que o cerca é decisiva para que o desdobramento da linguagem utilizada com esses propósitos atinja suas metas. Igualmente importante que perceber a concessão repetitiva de discursos indireto e indireto livre é perceber, também como intencional, a quase absoluta ausência de discurso direto conferido ao personagem negro, assim como perceber o caráter estratégico que se evidencia nas pouquíssimas vezes em que seu emprego ocorre.

Em algumas passagens de algumas obras literárias eleitas como objetos de análise, sobretudo em As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão e em Menino de Engenho, percebemos que o discurso direto, artifício técnico tão postulado como forma de expressão autônoma, sempre é conferido ao personagem negro com a nítida função de plasmá-lo de forma pejorativa. O que é muito mais grave nesses casos é que esta situação se realiza nas palavras proferidas pelo próprio personagem negro, o que configura outra vertente ideológica, na medida em que é o próprio personagem negro o agente que constrói o seu estereótipo e dá consistência a mitos criados sobre si mesmo.114

E dessa forma, a linguagem literária segue uma trilha na qual desenvolve seus desideratos de conferir sentido à vida e às coisas, fazendo com que, pelos caminhos das relações entre Literatura e sociedade, o recurso individual ou associado a conteúdos ideológicos, ao mito, ao silêncio, aos estereótipos, às modalidades de discurso adotadas e a toda e qualquer possibilidade de estratégia discursiva provida de pregnância ideológica, constitua-se como canais por onde a linguagem possa fluir. É nesse processo de fluência, como sói acontecer com esta linguagem, que ela obtém consectários muito mais pela prática do que pelas ideias. Nesse desdobramento associativo, convém ressaltar que não podemos perder de vista o fato de que a qualquer um desses elementos discursivos, cabe como função precípua, o mister de conferir contornos quase mântricos a conteúdos que, embora se apresentem como uma sucessão de fatos já definidos, são, na verdade, partes constitutivas de acontecimentos que, na sua essência, postulam sentidos.

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3.6 - Entrecruzamentos textuais

Uma vez organizada a questão sobre os elementos discursivos, estrategicamente utilizados na topografia literária, bem como tratadas as implicações advindas de sua utilização, é chegado o momento de retomar a discussão acerca da análise do diálogo efetuado entre textos de densidades díspares, mas que, a despeito disso, executam empréstimos mútuos. Eles se penetram reciprocamente, e, de certa forma, transformam-se uns nos outros, de maneira a apresentar como consectários dessa interação, artefatos cujo processo de elaboração de um, em importante medida, apresenta e mantém convenções e conveniências impostas pelas relações sociais cotidianas, e por isso, hegemônicas, presentes na conformação do outro.

Como vimos, o mapeamento nos textos de natureza histórica já foi desenvolvido, e neles se demonstrou, os pressupostos utilizados na descrição da trajetória traçada pelo negro. À imersão nos textos literários cabe construir condições que viabilizem verificar, como esta estrutura produtiva se vale, para, numa esfera da expressão humana de eminência estética, reverberar razões técnicas semelhantes às que estruturam textos históricos. Este envolvimento se dá, em função de tratamentos, também semelhantes, que ambos − texto histórico e texto literário − dispensam de maneira prioritária, à presença do negro nas suas abordagens.

Por ser histórica e tradicionalmente construída com base em informações indigentes e simplistas, a imagem do negro enfrenta, como consequência imediata, o fato de quase nunca ter a realidade de seu cotidiano considerada em toda sua dimensão, quando ele se posiciona no centro de discussões efetuadas, quer no dia a dia, quer nas esferas das expressões humanas, estéticas ou não. Esse tipo de proposta limita, em muito, qualquer linha de raciocínio interpretativo que se queira desenvolver sobre questões das quais ele é parte considerável, principalmente se observarmos que, em se tratando de Brasil, as questões às quais ele integra são sempre polêmicas e mal resolvidas, quando a preferência não recai sobre o interesse em evitar qualquer discussão sobre elas.

À medida que as circunstâncias que envolvem o dia a dia do negro deixam de ser valorizadas em sua inteireza, o quadro resultante desse desdobramento, espontaneamente, passa a exigir, então, que o seu observador tenha acesso a outras contingências da atividade humana. Consciente delas, ele conta com elementos e informações que o auxiliam a formar, sobre o contexto no qual o negro se insere, uma concepção capaz de traduzir uma realidade do cotidiano que não tenha sua essência mutilada. Como estamos habituados a ver, a causa dessa mutilação é, via de regra, a ausência de dados imprescindíveis ao processo de formação de ideias, quando se tem por objetivo, representar comportamentos, formas de pensar ou ações de alguém.

Geralmente, o que é muito valorizado numa atividade crítica de natureza social é o resultado imediato, aparente, consequente de uma demasiada valorização de efeitos práticos, visto que as atenções, pouco ou quase nada se concentram na essência das causas que dão origem aos episódios sob julgamento. Se não por total desconhecimento, para evitar polêmica; se não pelo interesse em manter inalterável o mundo ao redor, por simples comodismo, pois é muito menos complicado, menos trabalhoso e mais cômodo dispensarmos aos fatos sociais proeminentes,− já consagrados segundo uma tradição −, um tratamento que não problematize suas razões, do que neles mapear condições que possam revelar outras facetas. A opção por essas atitudes prevalece, principalmente, porque, nas teias das relações sociais, quanto mais se contribui para o continuísmo, menos se é cobrado, menos se é questionado. E tendo-se em vista que esse processo analítico se desenvolve largamente a partir de propostas que permitem chegar a uma representação, pela disposição em supervalorizar o que é fachada, tornam-se sintomáticas as observações de Moscovici, para quem

o status dos fenômenos da representação social é o de um status simbólico: estabelecendo um vínculo, construindo uma imagem, evocando, dizendo e fazendo com que se fale, partilhando um significado através de algumas proposições transmissíveis e, no melhor dos casos, sintetizando um clichê que se torna um emblema.115

As ideias embutidas nas assertivas de Serge Moscovici atestam que a consistência das representações sociais, que possibilitam chegar a conceitos terminantes como os que são elaborados sobre o negro, estrutura-se sobre concepções fundadas em substâncias prontas, acabadas, e à medida que se constroem a partir desses componentes, aumenta o grau de limitação da performance do sujeito exposto. Prescindindo de dados próprios de expressivos segmentos do saber, de abordagens multifacetadas que estimulam outras formas de visão e de análise, e priorizando os mesmos vieses e os mesmos interesses, o resultado obtido tende a ser sempre o mesmo: representações que são autênticas “crônicas de uma morte anunciada”. Apesar da prescindência dessas premissas e da inconsistência de seu teor, as impressões concebidas instalam-se como axiomas, fazem-se respeitar como tais e adquirem a capacidade de reservar ou mesmo de preservar espaços e significações sociais, negando ou conferindo acessos, segundo interesses em atender a propostas hegemônicas. Portanto, para que o olhar sobre o negro seja desferido de forma a obter respostas que traduzam com veracidade, os fatos que o envolvem, é preciso que esse olhar se faça valer de olhares paralelos que procurem considerar outros elementos que circulam ao redor de situações que, em princípio, são tratadas de formas circunspectas, cunhadas que são no imaginário popular, pela via da tradição oral ou por factoides lançados ao longo de séculos de dominação. Nesse processo de interpretação é preciso, sobretudo, dimensionar e valorizar o lugar de onde se fala, de onde se olha e o que se vê.

Os conceitos que o discurso não-literário propõe, e por vezes, impõe sobre o negro, são, de fato, formas de traduzir uma concepção que o senso comum está habituado a construir sobre ele no interior do panorama sócio-histórico. Eles se consolidam e encontram ressonância na Literatura, quando para lá migram e se manifestam atuando na ocupação de espaços, na definição de enredos e na elaboração de temas, colaborando para a conformação da estrutura estética que agora integram. Uma vez instalados no locus literário é, especialmente, a partir da performance dos personagens, que esses conceitos são difundidos, a exemplo do que podemos constatar nas intenções embutidas nas palavras de Mário, personagem criado por José de Alencar, segundo o qual “a miséria nas classes pobres da Europa é tal, que o escravo no Brasil deve considerar-se abastado”.116

A presença no universo ficcional de episódios dessa natureza convence que o discurso literário, conjugado com o não-literário, seja ele histórico, político, antropológico, sociológico ou de conteúdo análogo, contribui, sobretudo, para gerar uma “situação circular” que, como tudo que tem essa forma, traz como principal característica a obscuridade que assinala tanto sua origem quanto seu fim. Na mesma proporção, presente no cotidiano das pessoas de modo tão percuciente, não sabemos, de fato, onde este estado de coisas começa e onde termina; se ele se desloca da Literatura para o cotidiano ou do cotidiano para a Literatura. Também não se tem como meta proceder a um inventário que detecte o ponto de encetamento dessa proposta discursiva, porque o mais importante não é o sentido que ela adota para si. Inevitável é não perder de vista a contribuição que o discurso literário presta às formas de discurso com os quais dialoga, corroborando ideias e até teorias que esses textos tendem a disseminar, bem como a contribuição que presta para a formação de mundividências viciadas, quando, em casos como este, decide pela adoção de comportamentos estéticos, semelhantes aos adotados pelos textos de natureza não-estética. Como se vê, a visão de Mário, um personagem ficcional da Literatura brasileira do século XIX, em toda sua dimensão é uma fotografia fiel que revela com nitidez, o pensamento da classe dominante da época, de presença tão incisiva nas produções sócio-históricas daquele tempo, e o que é mais importante, de tendências atuais. Neste particular, o texto alencariano tem como envoltório, as mesmas pretensões dos textos de natureza histórica: um acentuado teor ideológico, grandes interesses em manter a hegemonia da classe dominante e a intenção em convencer a todos de que eram boas as condições de vida dos escravos.

Para tratar dessa situação com propriedade, o melhor caminho a enveredar é o da crítica sociológica. Uma vez eleita essa modalidade de análise crítica, os textos-objeto, considerados, são aqueles estruturados sobre fatos históricos e sociais. Além de priorizar aspectos englobantes de outros segmentos do saber ou de outros setores da atividade humana, vinculados aos tópicos que os estruturam, eles tratam de fatores que, do ponto de vista discursivo, são referências de assimilação, de cruzamento e de trocas mais imediatas. É pela via da imersão no discurso literário, que são adquiridas as possibilidades para se demonstrar, em que medida, fatores externos dos mais diversificados matizes integram este discurso. A primazia pelo texto literário encontra razão de ser, fundamentalmente, numa exigência que lhe é congênita e pela competência com que ele preenche este requisito, ao se configurar como “campo minado de tensões”,117 legitimado pelo fato de trazer embutido em si, um repertório de efeitos produzidos pelas estruturas sociais.

Campo minado de tensões! É justamente a presença dessa perspectiva de formatação do texto, imprescindível à sua condição de literário, que julgo encontrar-se distorcida em determinados casos e até ausente em situações não raras − é lógico que, exclusivamente nas obras que trazem o personagem negro −, a ponto de eliminar possibilidades de algumas formas de apreensão da criação literária. Tal prejuízo acontece a partir do momento em que se configuram como dominantes, os efeitos produzidos pelas estruturas sociais que esses textos priorizam. Em sendo assim, o prejuízo maior recai sobre o próprio artefato literário, que se torna menos opulento quanto mais a construção de sua categoria de ação transformadora sobre o mundo recebe investimento apenas parcial.

Em função de especificidades que minimizam seu grau de literariedade, mas que se impõem pelo poder de preencher lacunas criadas e de fazer com que outras fiquem abertas, o texto literário se vê posicionado diante de uma situação que exige olhares diligentes. Assim feito, dimensionam-se essas marcas, tendo em vista que ele não mais se desenvolve impulsionado apenas por elementos próprios de sua tessitura estética, mas o faz, em grande medida, ancorado em significações sociais ideológicas, e como já devidamente destacado, de caráteres dominantes.

Entendo que a condição de campo minado de tensões, − básica numa criação literária por conferir a ela diferentes possibilidades de apreciação −, nem sempre é levada a efeito como deveria, de modo a viabilizar discussões mais diversificadas, numa leitura e numa análise mais aprofundadas. O fator que mais contribui para neutralizar a presença desse quesito no texto literário, assim como nos textos de teor não-estético, embora estes não tenham necessidade imperiosa de assim agir, é exatamente a prevalência de seu teor ideológico, que se manifesta também a partir dos mais variados elementos discursivos, e nunca é demais ressaltar, ideológico sempre ao nível da dominância.

A partir da minimização e até da ausência de tão decisiva componente, começa a haver entre textos pertencentes a diferentes topografias, um diálogo que, na maioria das vezes, encontra resultados práticos na capacidade que o texto literário tem em reverberar propostas ideológicas oriundas de outras instâncias.

Raízes do Brasil reproduz a insatisfação do autor diante das transformações que o país começa a empreender, mas, reproduz, sobretudo, a insatisfação de uma classe dominante. Casa-Grande e Senzala representa a visão de Gilberto Freyre lançada sobre uma topografia sócio-histórica, no entanto, mais que uma mirada individual, também é, certamente, a representação do olhar de uma classe marcada por uma incompreensão que continua aí, vigendo ideologicamente.

Os textos literários que contemplam a presença do negro, apesar de apresentarem restrições ao nível estético, ainda assim são dotados de uma predisposição em oferecer elementos inerentes, e, em alguns casos, vitais, até, a uma leitura interpretativa, que os textos não-estéticos teimam em abdicar. As restrições a que me refiro se configuram por meio da exploração de uma linguagem responsável pela elaboração de um contorno do personagem negro que a permita plasmá-lo segundo uma circunstancialidade social. Já, a oferta de expressões literárias, por sua vez, se apresenta, sim, porém, de forma acanhada, no recôndito do texto, justamente por ser asfixiada por uma proposta ideológica proeminente que, neste particular, não por acaso se assemelha à proposta dos textos oponentes.

Neste cenário de textos que se entrecruzam, vale a pena ressaltar que o não-estético conta com um expressivo poder de penetração nos mais diversificados âmbitos sociais, muito em função de seu menor grau de exigência interpretativa e de sua significação mais literal, condições que lhe proporcionam uma possibilidade maior e mais imediata de convencimento. Contrariamente, embora habitando o mesmo espaço, o texto literário é dotado de menor poder de penetração até mesmo pelo seu maior grau de exigência interpretativa, do seu teor multissignificativo, e com todas as deficiências que ele possa vir a ter, por seu grau de literariedade que, associado às demais características, fazem dele um artefato de absorção plena, acessível a um número reduzido de leitores. No entanto, é preciso que se diga que essas diferenças não inviabilizam o diálogo que eles estabelecem entre si, detalhe que acaba formando um todo de interesse comum.

A discussão proposta se sustenta, por um lado, na presença do negro, tendo como consequência sua condição original de escravizado no Brasil; por outro, na atenção que o universo literário dispensa ao episódio da escravidão, em vista da sua importância no campo oficial-historicista. Por isso, o sentido e a razão começam a se fazer presentes a partir de um construtivismo que circunda a figura do negro na sua realidade cotidiana.

O termo construtivismo significa uma forma de ver o mundo e as contingências que o cercam, e que num sentido mais sistêmico, formalizou-se no século XVI, no momento em que o negro pisou em terras brasileiras pela primeira vez, segundo alguns historiadores, no ano de 1534. Partindo do princípio de que o negro foi arrancado de seu país e trazido para o Brasil para ser submetido a trabalhos forçados, começa a se verificar que, como efeito e como situação paralela, ele o foi também para ser destroçado naquilo que o homem tem de mais sagrado: a sua dignidade. Uma prova incontestável desta predisposição é o fato de as famílias serem desintegradas quando aqui aportavam. Como o nível da presunção nos autoriza inferir, tal decisão tinha por objetivo causar o enfraquecimento moral e psicológico do escravo. Todos sabem que eram inúmeros os expedientes utilizados com a finalidade de provocar neles toda sorte de abatimento. E para que a condição humana daquela gente pudesse ser vilipendiada a ponto de mantê-la num constante estado de adversidades, tornava-se imperioso criar sobre ela uma imagem depreciativa capaz de persuadir a todos, de que era fato o que sobre aquela gente se propagava.

Ademais, o cotidiano do escravo negro, de certa forma, confirmava o que o imaginário do homem branco construía e internalizava sobre ele.

O construtivismo utilizado como referência e inicialmente posicionado no século XVI perpassa os séculos seguintes, e no século XIX ganha status epistemológico. Essa condição o torna mais percuciente em função de um caráter científico que agora o assinala, e por esse motivo, torna-o também mais abrangente e quase axiomático. A despeito disso é preciso que não se perca a referência de que seu aspecto cruel é congênito, o que implica ressaltar que o século XIX, pela via do cientificismo, apenas estabeleceu como estatuto um conjunto de comportamentos que o século XVI, pela via das práticas do cotidiano, já referendara.

Depois de quase quatro séculos de aplicação intensa e diária, esse construtivismo, − ora de índole cientificista, ora não −, se consolida definitivamente, sustentado pela sua introjeção na alma de um povo que aprendeu a cultivá-lo por meio das mais diversificadas formas de emprego que se possa imaginar, permanecendo atuante até nossos dias. É a partir do apelo a esse construtivismo, hoje muito mais congênito que cientificista, e em função dele, que tudo se explica. É pela presença dele que a classe dominante continua a ter dificuldades em assimilar a presença do negro fora dos parâmetros brancocêntricos por ela estabelecidos, sejam eles éticos, morais, religiosos ou de teor que o valha. Inicia-se, pois, no século XVI a trajetória de uma visão construtivista norteadora das atitudes que a classe dominante adota em suas relações sociais com o negro, evoluindo nos subsequentes e adquirindo no século XIX, uma consolidação que se faz presente até hoje.

A Abolição “liberou” os escravos, sim, mas não mostrou competência suficiente para retirar da classe detentora do poder a sensação de superioridade que, no âmago de seus integrantes, adormece como a parte maior de um grande iceberg, que emerge revelando sua real dimensão, a cada movimento que o negro enceta para alterar sua própria vida, dando-lhe rumos que vão ao encontro daquilo que ele entende ser o melhor para si. E o que o negro entende que é o melhor para si, a classe dominante continua a entender que é pior para ela. Por isso, como ela vê como uma ameaça cada tentativa de transformação social imprimida pelo negro, recrudescem sentimentos dominantes que a um processo abolicionista verdadeiro também caberia discutir. Por esses motivos, não se poderia esperar resultado diferente de um mero ato administrativo que, por ser a empulhação que foi, demonstrou que ao inevitável cumprimento de uma obrigação que lhe foi imposta por circunstâncias de toda sorte, não associou o menor interesse em pensar alternativas que pudessem atuar sobre as mentalidades de então, de forma a influenciar as gerações futuras para que elas também viessem a construir condições de pensamento que não fossem petrificadas como as construídas naquele momento histórico.

Portanto, o que se percebe com clareza é que nossa historiografia oficial é produto de uma perspectiva única, construída ao longo de séculos, e que, em sua essência, continua prevalecendo, ora de maneira consciente, ora não, mas, invariavelmente, sustentada pela ideologia dominante. O importante é não perder de vista que, de alguma forma e sempre por meio da linguagem, a topografia literária reverbera esta proposta, contribuindo em grande medida para sua celebração.

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Notas

85 Candido, Literatura e Sociedade, p. 4.

86 Berger & Luckmann, A Construção Social da Realidade, p. 39.

87 Id., pp. 66-67.

88 Chauí, O que é Ideologia, p. 31.

89 Vogt, Linguagem, Pragmática e Ideologia, p. 130.

90 Marx e Engels, Conceitos de Ideologia In: A Ideologia Alemã, p. XXI.

91 Candido. Literatura e Sociedade, p. 56.

92 Id. ib.

93 Cf. Althusser, Aparelhos Ideológicos de Estado.

94 Orlandi, As Formas do Silêncio, p. 47.

95 Orlandi, As Formas do Silêncio, p. 48.

96 Kovladoff. O Silêncio Primordial, p. 24.

97 Kovladoff, O Silêncio Primordial, p.24.

98 Id., p. 21.

99 Id., p. 25.

100 Kovladoff, O Silêncio Primordial, p. 9.

101 Cf. Durand, As Estruturas Antropológicas do Imaginário, p. 355-356.

102 Ato baixado pelo parlamento inglês em 8 de agosto de 1845, pelo Lord Aberdeen, autorizando a Marinha britânica a perseguir navios traficantes, visto que o exercício do tráfico negreiro era economicamente desfavorável para aquele país. Por essa lei o Brasil se viu praticamente impossibilitado de continuar mantendo a escravidão, na medida em que a Inglaterra, de fato, colocou em prática as normas presentes no referido ato.

103 Durand, As Estruturas Antropológicas do Imaginário, p.378.

104 Refiro-me à nota nº 101

105 Chaui, Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária, p. 9.

106 “História” corresponde ao nível composto por personagem, enredo e espaço.

107 “Discurso” corresponde ao nível composto por narrador, tempo e ambiente.

108 Bhabha, O Local da Cultura, p. 105.

109 Berger & Luckmann, A Construção Social da Realidade, p. 36.

110 Berger & Luckmann, A Construção Social da Realidade, p. 37.

111 Id., p. 38.

112 Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 15.

113 Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem, p. 144

114 Esta condição é exemplificada de forma mais abrangente no capítulo 4, Cotidiano e Literatura.

115 Moscovici, Sociedade Contra a Natureza, p. 32.

116 Alencar. O Tronco do Ipê, p. 30.

117 Bosi, Literatura e Resistência, p. 39.