4. Cotidiano e Literatura

A obra de arte pode não ser a expressão

da verdade, mas deve ser honesta. (W. Gass)

4.1 - Realidade nossa, versão deles

A presença e o desempenho do personagem negro na Literatura brasileira, assim como tudo o que diz respeito à autoria de escritores e poetas negros, ainda são questões pouco exploradas por abordagens de caráter crítico-teórico que se aventuram a tratar do assunto. O que se percebe é que os trabalhos sob a responsabilidade de autores estrangeiros têm um poder de penetração no universo da crítica literária, muito maior que a de brasileiros que examinam o mesmo tema. A bem da verdade é preciso reconhecer que o número de estrangeiros que se debruça sobre o tema, também é maior que o de brasileiros, pelo menos no que se reflete em publicações. Neste particular, não cabe questionar a capacidade de pesquisadores de nacionalidade diversa da nossa, visto que esse dado não é o mais relevante. Acontece, porém, que a principal consequência desse dado, em grande medida é a presença de equívocos lamentáveis em alguns textos teóricos que versam sobre o tema, em especial, naqueles produzidos por autores que adotam como princípio básico, a predisposição em comparar a trajetória que o negro brasileiro descreve no plano social, com a descrita no mesmo plano, pelo negro nos Estados Unidos. É o que se dá, por exemplo, com o americano David Brookshaw, que insiste na tese de que “esta comparação inicial entre a experiência dos negros dos Estados Unidos e no Brasil pode ajudar a explicar a ausência de uma literatura de escritores negros preocupada especificamente com questões raciais.”118

Minhas convicções levam-me a entender que, quando a questão do negro tem como pano de fundo o Brasil, torna-se indispensável o estabelecimento prioritário desse aspecto, como ponto de partida para qualquer linha de raciocínio e discussão que se pretenda desenvolver sobre este assunto. Realmente, não vejo como e por que razões, empreender incursões em realidades muito diferentes da nossa, em detrimento da valorização de uma domesticidade que precisa ser considerada na sua plenitude, pois, a proposta de priorizar valores externos se torna ainda mais grave, quando se faz deles, referências utilizadas como bases de sustentação no desenvolvimento de estudos que envolvem, de forma determinantes, realidades tão específicas como as que vivemos no Brasil. A consequência natural da exclusão das nossas especificidades, do seio de pesquisas que não podem prescindir desse tipo de mapeamento é a indigência de qualquer tentativa de abordagem que se processe nessa direção.

Todos nós sabemos o quanto o negro nos Estados Unidos se sobressai com visibilidade nos diferentes segmentos da sociedade americana, ao contrário do que ocorre no Brasil. Entretanto, essa condição, própria das especificidades que norteiam a história dele lá, não nos obriga a considerar os mesmos elementos como base das razões que explicam as mazelas existentes no nosso panorama social. Em se tratando de Brasil é preciso ter coragem para encarar e desnudar nossos problemas, e é vital trabalhar com o conceito de originalidade que caracteriza muitos deles. Nesse aspecto, se faz mister bem dimensioná-los e não nos deixar levar por instâncias representativas de um mundo de faz-de-conta, a exemplo de falácias como o mito da democracia racial ou de afirmações que, pela própria negação, confirmam o preconceito sobre o negro.

Ora, quanto à essência da citação de Brookshaw, anteriormente referida, é preciso advertir que ela é vazia de sentido, no que diz respeito a se postular uma Literatura que seja feita por escritores negros, como se dessa produção resultasse uma parcialidade possível de ser encontrada apenas nesses escritores, ou no caso de uma abordagem racial, pensar numa Literatura que se configure como tal em função da vivência empírica do autor. Tal pensamento é de total incongruência com os mais simples princípios teóricos, na medida em que um dos sintomas da linguagem que a caracteriza como literária é exatamente sua imparcialidade, e uma das implicações que envolvem o exercício da criação literária é o descompromisso que o autor tem para tratar de sua pessoalidade, embora, eventualmente, até possa fazê-lo. Também não se trata de querer estimular a produção de uma Literatura que se preocupe com questões raciais inerentes ao negro, como se a Literatura tivesse cor. Trata-se, sim, de pensar um fazer literário brasileiro que, ao contemplar o personagem negro com a dimensão espacial e com a densidade literária que normalmente ocorre, que o faça com o mesmo investimento estético empregado com a ocorrência que lhe é própria e habitual. O que se espera nesses casos é que personagens negros dotados de estatura comparável à citada consigam se fazer fluir pelo acesso a discursos que lhes possibilitem traduzir em toda sua dimensão e profundidade, as significações implícitas ou explícitas sempre presentes numa tessitura literária.

Os equívocos que Brookshaw revela se expressam nas afirmações como as que deparamos a todo o momento em seu texto, onde ele confunde técnica com pessoalidade, a ponto de construir sobre escritores, perfis que, muito claramente, são de sua inteira interpretação pessoal, embora no seu texto funcionem como autênticos axiomas, como se vê na citação que segue:

Ao mesmo tempo, os próprios escritores afro--brasileiros acham difícil fugir da síndrome do branco positivo e do preto negativo. Toda a criação poética de Cruz e Souza, o mais prolífico poeta negro do século XIX, está baseada no tema do simbolismo da cor e enquanto ele evolui para uma reavaliação do preto, porém, é atormentado até o fim pelo sentimento interior de que o branco é a cor afortunada social e esteticamente.119

A forma aguda com que Cruz e Sousa explora a cor branca nos seus poemas, realmente sustenta a inferência de que, pela via de tal recurso, ele estaria exaltando “Formas alvas, brancas, Formas claras,”120 até mesmo pela imensa quantidade de vezes que este poeta recorre a esta cor em seu corpus; 169 vezes, segundo Roger Bastide. À contrapartida dessa situação, os valores cromáticos se impõem como parte expressiva da estética simbolista. Quanto à predisposição binária que alguns tentam atribuir a Cruz e Sousa, convém destacar que ela é muito mais apanágio de ações práticas do século XIX, − embora desde sempre e ainda hoje muitos norteiem sua visão de mundo a partir desse pressuposto −, do que propriamente de um possível simbolismo da cor, presente num estilo que, por vezes, também associa a cor branca a “Formas vagas, fluidas, cristalinas...”121 Em Cruz e Sousa, seguramente, a obsessão pelo branco é um valor estético muito mais transcendente que um mero ponto de canalização do reverso da cor de sua pele.

E Brookshaw investe ainda mais em sua equivocada proposição, aproximando de Cruz e Sousa outros nomes importantes de nossa Literatura, afirmando que “Cruz e Souza (sic), como Machado de Assis e Tobias Barreto, tentou ocultar suas origens humildes escrevendo uma poesia de extrema habilidade técnica e sensibilidade”.122

A meu ver, além de improcedentes, posicionamentos dessa natureza são inconsistentes, na medida em que as obras dos autores citados não conferem sustentação ao que se diz sobre elas, pela simples ausência de determinantes estéticos, de razões teóricas ou de elementos de natureza técnica ou formal que justifiquem tais afirmações. Ademais, é uma temeridade reduzir técnicas de poetas como Cruz e Sousa e Tobias Barreto e de um escritor como Machado de Assis, a questões de ordem pessoal que, na exclusiva visão do analista, são consideradas elementos de reprovação. Aliás, o que soa curioso é que resultou infrutífera a tentativa dos autores citados, pois, os fatos demonstram que eles não conseguiram ocultar aquilo que Brookshaw afirma ser objeto de ocultação: seus mal-estares com a cor das próprias peles. Ora, os objetos estéticos produzidos por Cruz e Sousa, Machado de Assis e Tobias Barreto apresentam conteúdos e significações que estão muito além de motivações pessoais, portanto, circunscrevê-los à esfera da pessoalidade de seus autores, significa não conhecê-los como se deve, conhecer pouco os autores, e menos ainda, a história do negro no Brasil.

Outro autor estrangeiro responsável por teses que tratam da presença do negro na Literatura brasileira é o inglês Gregory Rabassa, em cuja obra se fazem presentes equívocos da natureza dos anteriormente apresentados. No principal trabalho de sua autoria, o exemplo tácito se revela já na essência de um prefácio que prenuncia essa dimensão do texto, traduzida nas referências feitas ao país e ao índio, a partir de posicionamentos sedimentados sobre uma visão que, se não for a tradução de um absoluto desconhecimento de nossa realidade, é a significação da preferência pelo absurdo:

O Brasil contemporâneo situa-se entre as nações do mundo como um modelo de relações livres de preconceito. Os índios que os portuguêses (sic) encontraram ao chegar a suas praias desapareceram, não através de sangrenta exterminação, mas por meio de uma gradual miscigenacão.123

E mais especificamente em relação ao negro, o autor prossegue em sua senda de afirmações desacertadas, quando acrescenta que

embora tenha sido um dos últimos dêsses (sic) países a libertar seus escravos − a abolição não se consumou antes de 1888 − a razão parcial dessa data tardia reside no fato de que no Brasil os negros eram tratados de um modo que chega a parecer benevolente quando comparado ao tratamento dispensado aos escravos em outras terras.124

O corolário dos fatos analisados recomenda que toda posição sobre eles deve ser desprovida de qualquer sentimento de xenofobia, assim como é indispensável que todo tratamento sobre o negro seja desprovido de qualquer sentimento da escamoteação,125 própria do discurso histórico, mas, que, não raramente, se apresenta também no literário ou mesmo no teórico, como nos casos em questão. É indiscutível, entretanto, que a visão traduzida pela maioria dos teóricos estrangeiros, basicamente, se sustenta numa realidade intramuros que não é nossa, é deles; e, por isso, quase sempre o que se revela por meio dela é a evidência de um conhecimento ínfimo da realidade social que marca nossa vida de todo dia. Partindo de princípios tão inconsistentes, e não raramente, inverídicos até, torna-se inviável considerar, sem grandes restrições, trabalhos dessa natureza como veículos de transmissão de conhecimentos. O mais lamentável, entretanto, é o fato de esses trabalhos, a despeito de tantas irregularidades, gozarem de considerável prestígio nos meios acadêmicos, ainda que sustentados por argumentos pífios. Dessa forma, percebe-se que é muito discutível grande parte das posições tomadas por esses autores, com algumas delas, inclusive, beirando à insensatez, e, como consequência desse panorama, considero pouco densas, as informações trazidas para o terreno das discussões, como contribuições que possam elaborar uma consistente proposta de entendimento de nosso país.

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4.2 - A hora do vis-à-vis

A diligência feita com o fim de apontar na tessitura de textos literários, aspectos que permitam leituras que abram espaços para reflexões sobre a aplicação de valores estéticos específicos, começa a exigir o atendimento de premissas básicas. Nessa linha, torna-se imperiosa a tarefa de delinear os contornos do sujeito da investigação: o negro; de não perder a referência de uma topologia que com suas especificidades é palco de relações sociais complexas: o Brasil; e de imergir na essência de uma conjuntura, que pelas ações de sistemas simbólicos126 controlados por seu segmento dominante, determina os processos de construção do perfil desse sujeito: a social.

As obras de natureza histórica trabalhadas no capítulo 2, sobretudo no que diz respeito a desdobramentos cronológicos, apresentam como sujeito histórico um ser humano engendrado pela escravidão, ao qual elas dispensam um tratamento condicionado, em sua plenitude, a marcas resultantes dessa mesma escravidão. Uma das consequências da escravização imposta ao negro, trata- se de um processo de demonização que a classe branca dominante desenvolveu ao redor da figura dele. Esse método fez com que características pessoais de um determinado escravo, sempre vistas como negativas aos olhos da classe dominante, se transferissem do plano individual para o sistêmico, ou seja, tudo o que era específico de uma pessoa passou a ser considerado como propriedade de uma raça. Em vista dessa generalização, juntamente com o conceito de raça, o conceito de cor, na mesma proporção, e o de etnia, em menor intensidade, também passaram a justificar práticas aplicadas sobre a individualidade, mas com a nítida intenção de atingir o coletivo.

Os conceitos de raça, cor e etnia que sustentam as abordagens em questão, não apresentam nas estruturas destas, exatamente os mesmos sentidos, modernamente estabelecidos por segmentos científicos como o histórico, o sociológico, e, sobretudo, o antropológico. A visão atualizada desses campos do saber revela que a evolução sofrida por esses conceitos está atrelada à evolução sofrida pela forma científica de pensá-los, pela predisposição social de assimilá-los e pelos novos rumos tomados pela circunstancialidade social que os abriga. Embora não pretenda ressuscitar o debate sobre os conceitos de raça, cor e etnia, necessário se faz, trazer esclarecimentos sobre esta questão, até mesmo para atender ao intuito de tornar mais palpáveis, mais visíveis, e principalmente, menos controversas, as implicações que esses elementos causam às relações do cotidiano.

Ora, quanto à necessidade de conceituar raça, cor e etnia, talvez devêssemos, à guisa de demonstrações práticas e imediatas, raciocinar tão somente com fundamentações cunhadas em embasamentos científicos formulados à luz da Antropologia moderna. Entretanto, no âmago dessa questão, deparamos com o negro e as implicações já explicitadas, daí, a opção por adotar como ponto de partida das citadas demonstrações, uma perspectiva que prioriza ocorrências empíricas, sedimentadas tanto pelo que ocorre no cotidiano, quanto pelo que se processa na topografia literária. Num trabalho de índole eminentemente epistemológica como este, pode parecer incoerente a preferência por essa forma de escrutínio crítico, todavia, ao decidir por tal linha de pensamento, não estou detratando a epistemologia em benefício do empirismo, mas, sim, elegendo esta linha como referência pragmática capaz de contribuir para uma melhor explicitação daquela.

Sabemos que aos termos raça, cor e etnia, não mais se lhes associam hoje, exatamente as mesmas noções que se lhes associava, por exemplo, o pensamento predominante até meados do século XX, quando esses termos aderiram novas concepções e novas compreensões. De lá para cá, o mundo sofreu transformações, os homens alteraram muito seus comportamentos, a ciência passou por profundas evoluções, e conceitos sobre princípios consagrados, não necessariamente, exprimem o mesmo pensamento de antes; no entanto, o pensamento do homem branco acostumado a dominar, na sua dimensão para com o homem negro continua inalterável no tocante à dialética que os coloca frente a frente, na dura realidade social do cotidiano.

E por que continua se verificando de forma inalterável o pensamento do homem branco dominador? Porque ele continua sendo o detentor do poder simbólico que Pierre Bourdieu estabelece como sendo o “poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem,”127 ou seja, um poder que é exercido, fundamentalmente, porque aqueles que a ele têm acesso o constroem como poder. Nas mesmas proporções, esse mesmo homem é ainda o controlador dos sistemas simbólicos128 presentes no tecido social, que, do ponto de vista da configuração de sua existência real, são os mesmos que na visão althusseriana (veja subitem 3.1) foram examinados como aparelhos de Estado, cuja diferença entre a concepção destes e daqueles encontra-se na categorização de estruturas estruturadas e estruturantes em que aqueles são dispostos.129 Sob a ótica das ações práticas, tanto a noção de aparelhos de Estado quanto a de sistemas simbólicos, essencialmente representam instrumentos de conhecimento e construção do mundo; são estruturas estruturadas se imanentes a produções simbólicas, e estruturantes se capazes de atribuir sentido às coisas e ao mundo. Como consequência, o que se verifica é que, tanto o exercício do poder simbólico quanto o domínio dos sistemas simbólicos estão à mercê do homem branco dominador, muito em função de um fenômeno denominado habitus, que, conforme sistematização do mesmo Bourdieu é interpretado como um

sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes. Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favoráveis que lhes propiciam uma posição e uma trajetória determinadas no interior de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa uma posição determinada na estrutura da classe dominante.130

A construção do habitus como processo cotidianamente desenvolvido pelos membros do tecido social, no caso em questão, consagra-se pelo dimensionamento do caráter dos sistemas simbólicos e do exercício do poder de mesma natureza, por parte do segmento dominante. Uma vez incorporados e internalizados nos seus agentes, essas referências funcionam como prismas de percepção, de avaliação, de pensamento, e, sobretudo, de ações. Obviamente que é em função do habitus que os aparatos da classe dominante são utilizados com sensação de espontaneidade por seus integrantes.

Como em momento algum devemos perder de vista que é o Brasil a referência espacial considerada como pano de fundo desses acontecimentos, convém destacar que, no jogo dessas relações cotidianas, é pelo fato de ter essas condicionantes como causa, que as ações do homem branco parecem estar naturalmente embutidas na ordem das coisas. Por assim se comportarem, apresentam-se na percepção social como elementos não-acentuados, ao contrário de quaisquer ações de seu oponente que exigem caracterizações. O homem branco é isento da necessidade de justificar seus atos, porque, no referido cenário e por tudo o que este implica historicamente, o habitus da visão dominante se impõe como soberano, eximindo-o da necessidade de se enunciar através de discursos que teriam a função de legitimá-lo. É a presença dessa recorrência que sustenta a proposta de tratar desse assunto, sedimentando-o numa visão do dia a dia, associada ao realce de efeitos práticos, inclusive porque, é este o conservadorismo que encontramos travestido na Literatura. Nela, eles aparecem nas ações de mando e de autossuficiência próprias de personagens brancos, assim como nas diferentes formas de limitação, ideologicamente tomadas como próprias de personagens negros.

As relações de convivência que cotidianamente se estabelecem no âmbito do tecido social, em grande medida são reguladas por uma lógica binária encontrada na associação de preceitos antagônicos representados por pares assimétricos como água e fogo, luz e trevas, positivo e negativo, sagrado e profano, branco e preto, e assim indefinidamente. O recurso a essas disposições binárias perpassa atitudes cotidianas reguladas por convenções sociais, e por isso, essas atitudes são atendidas simplesmente pela presença do habitus, portanto, sem sofrer questionamentos que levem a perceber sua real dimensão, como ocorre na maioria das vezes. Apesar de seu caráter restringente, os pares assimétricos frequentemente empregados como métodos de percepção, avaliação e até de julgamento, não impedem que casos de grande complexidade, fluam, em todos os níveis, marcados por certa normalidade. É esta cissiparidade que muitas vezes norteia nossa mundividência e nossos julgamentos de valor, baseada numa natural predisposição que temos em polarizar o pensamento nela, utilizando um processo de qualificação que, embora aparentemente simplista, legitima pontos de vista, chancela ideias e impõe paradigmas. Tudo ocorre pela tendência em estabelecer como parâmetros de “normalidade,” a água, a luz, o sagrado, o branco e o positivo, e em contrapartida, configurar o fogo, as trevas, o profano, o preto e o negativo, como o “desvio”, como o “outro”.

No momento em que essa discussão se centraliza no dualismo branco e preto e se procede a um mapeamento em busca da capilaridade subjacente a essa divisão, começam a se revelar com mais inteireza, a dimensão e a profundidade desse processo seletivo, no que se refere às predisposições fenomenológicas tradutoras dos habitus que internalizamos e reproduzimos nas diferentes formas de expressão e pensamento. Histórica e tradicionalmente, pelo menos nas culturas do mundo ocidental, esta divisão binária se reveste de um expressivo teor maniqueísta, não apenas pelo seu aspecto antinômico, mas, sobretudo, pelo intercurso entre os princípios do bem e do mal, nela embutidos. No inconsciente coletivo reinante no Ocidente, a cor preta, assim como tudo a ela vinculado e tudo o que ela faz lembrar, sempre simbolizou o mal, o pecado, a morte, enfim, um sem número de situações indesejáveis e de rejeição. Na mesma proporção, mas, obviamente, valorizando aspectos avessos ao caráter desses significados, encontra-se a cor branca, revestida de acepções que, sempre em nível de inconsciente coletivo, denotam aceitação e simpatia universais. Se por um lado, temos o negro, o obscuro, a sombra, o denigrescimento da reputação de alguém, a mácula, tudo associado ao polo negativo das coisas e dos fatos; por outro lado, temos a candura, a brancura da paz, a pureza, os anjos, os santos,131 como representantes de um polo que se pretende positivo. Essas componentes que sempre integraram discussões relativas às tradições, às cosmogonias, às mitologias, e, principalmente, às religiões, atuam muito nas relações sociais cotidianas, e apesar de lá se encontrarem de forma latente, geram consectários determinantes no mundo prático.

Para ilustrar, tomando como exemplo uma religião de base cristã e na sua constituição, estabelecendo como parâmetro sua representação mais expressiva − a Bíblia Sagrada − veremos que o binarismo, lá está, impregnado de conotação maniqueísta refletida pelo dualismo bem e mal, como acontece no episódio do dilúvio envolvendo Cam,132 um dos filhos de Noé. Segundo a tradição judaico-cristã é a partir desse personagem bíblico que se origina a ancestralidade da raça negra, cuja causa está no fato de Cam ter protagonizado ações transgressoras de uma ordem social, ética e religiosa estabelecida, mas, principalmente religiosa, na medida em que esse episódio está relacionado com o cometimento de um pecado e com a consequente imputação de um castigo. A maldição de Noé recai sobre Cam, de modo a responsabilizá-lo pela proliferação dos camíticos, isto é, dos africanos, e de lhe fazer sofrer as dores de um pai que vê seu filho Canaã tornar-se servo dos servos. Esta última propositura é muito utilizada como justificativa para se atribuir como intrínseca ao negro, a condição de escravo, como expressam os discursos de Padre Antonio Vieira.

Como se sabe, do ponto de vista antropológico, quando referências recaem sobre raça e cor, tem-se por objetivo o desenvolvimento de linhas de raciocínio e de estudos sobre grupos sociais humanos, a partir do enquadramento deles, em nichos que permitem uma classificação, segundo aspectos somáticos distintivos. Já, no caso da referência à etnia, o que conta são características comportamentais e de experiências compartilhadas nos mais diferentes planos como o cultural, o religioso ou outros de natureza semelhante. Até o princípio do século passado, tal proposta analítica, prioritariamente, tomava por base pressupostos científicos, e, por vezes, empíricos, que atualmente já são considerados segundo outras formas de compreensão.

À luz da Antropologia moderna, o conceito de raça não mais se atrela a teses cunhadas em princípios cientificistas como o evolucionismo ou o gobinismo, decisivos na elaboração do pensamento do século XIX, que chegou a vigorar até em períodos próximos da metade do século XX. Engendrando teorias racistas que à época triunfaram soberanas, não só na perspectiva do senso comum como também em boa parte do universo acadêmico, essas marcas se apresentam nos textos de teor antropológico, histórico e sociológico, caracterizando discursos não-estéticos. Muito embora alguns daqueles princípios, de certa forma, ainda continuem norteando pensamentos e atitudes de muitos, essa ocorrência, hoje, felizmente não mais se sustenta, sobretudo pela perda do estatuto de axioma científico.

Portanto, nos dias de hoje, quando pensamos em raça, pensamos, fundamentalmente, no resultado de processos analíticos realizados com a finalidade de obter informações generalizadas sobre o segmento humano, a partir da presença de aspectos que possibilitam o surgimento de discussões bem mais amplas do que as dos séculos anteriores. Pelo menos na visão de Franz Boas, aos determinantes biológicos, componentes quase que exclusivos na conjuntura responsável pela definição do sujeito da análise durante determinada época, agora são também associados elementos fisiológicos, psicológicos, de hereditariedade, culturais e até mentais. Este repositório de elementos nos leva a perceber que os pressupostos antropológicos não mais se satisfazem apenas com aspectos puramente tangenciais ou aparentes como cor da pele, aspectos da compleição física, textura dos cabelos, tamanho e formato da cavidade craniana e da mandíbula, sinais integrantes de um rol de condições antes considerado decisivo nesse processo de pesquisa. Em vista disso, não mais se chega ao entendimento do termo raça, valorizando apenas elementos estritos e restritos a integrantes de grupos específicos que partilham uma diversidade de traços somáticos, porque um ou outro desses traços, próprios de um determinado grupo social, poderá, eventualmente, aparecer noutro grupo marcado pela concentração de componentes opostos, o que provoca a necessidade de associar novos elementos às investigações que buscam a origem e o significado do termo. Franz Boas sugere que a raça precisa ser estudada, “não como uma totalidade, mas em suas linhas genotípicas que se desenvolvem sob condições variáveis,”133 e, assim sendo, tentar compreender os passos por meio dos quais o homem passou a ser o que hoje é, biológica, psicológica e culturalmente.

Como se vê, a noção do termo hoje é muito mais diferenciada e mais condicionada à presença de fatores extrínsecos do que fora num passado não muito distante. Em consequência, o que necessita ser percebido como fato concreto, como efeito prático e como evidência objetiva é que, apesar de toda a evolução por que passou no campo científico, o conceito de raça demonstra, de forma inequívoca, que esse desdobramento evolutivo também gerou perdas e ganhos de antigas e novas dimensões. Quanto a esse aspecto, o que de maneira mais acentuada passa hoje a caracterizá-lo como referência de significações sociais é uma dimensão conquistada nesse processo e que assume papel decisivo na elaboração de uma visão modernizada, ou seja, sua dimensão sociopolítica.

Essa nova dimensão define novas maneiras de encarar o conceito de raça e se revela muito em função de ações imprimidas no tecido social pelo próprio negro, as quais, ainda que pouco incisivas, são sempre encetadas no sentido de minimizar sua invisibilidade nos diferentes setores do plano social. As incursões imprimidas pelo negro, só resultam em efeitos práticos objetivos porque produzem tensões. Longe de significar agressão ou agressividade, essas tensões são próprias de atitudes tomadas com o fim de possibilitar que o negro se imponha, produzindo novos discursos e novas práticas sociais que, como a realidade social do cotidiano tem demonstrado, são sempre avessas aos interesses da classe dominante.

Ao termo etnia pouco se tem a acrescentar, considerando a possibilidade de ter ele incorporado significados além dos já tradicionalmente conhecidos, nas relações sociais do cotidiano. Talvez, o que ganha pertinência como necessidade de atualização da noção de etnia é o fato de ela hoje ser considerada elemento englobante do processo de compreensão do conceito de raça, havendo mesmo situações em que adeptos dessa visão consideram que este conceito se confunde com o de raça, muito em função da base biológica de ambos.

À parte este aspecto, hoje, como dantes, a etnia continua traduzindo a noção de concentração de uma população ou grupo social que apresentam considerável homogeneidade nas questões relativas à cultura e à religião, refletidas no uso da língua e nos modos de agir, e que, ao mesmo tempo, compartilham histórias, experiências e origens comuns. Nessa perspectiva, naturalmente, a etnia se relaciona com os elementos raça e cor, o que significa dizer que, em certa medida, o conceito de etnia, a exemplo do conceito de raça, deixou de ser visto da forma petrificada que até então estávamos acostumados a ver.

Portanto, é preciso dizer, sobretudo, que, qualquer que seja a noção de etnia que se queira priorizar, ela é sempre uma questão irrelevante no que diz respeito aos entraves sociais que o negro enfrenta nas suas relações sociais do cotidiano.

Já as abordagens acerca da categoria cor passam a ser implementadas por último, porque é exatamente a partir da consideração das idiossincrasias do Brasil que os casos relativos à cor assumem valores e significações, também específicos, no que se refere a intercursos sociais. Na medida em que se apresentam como autênticos imperativos sob os quais se constroem discursos, pensamentos e práticas sociais que conferem ao Brasil status de palco específico dos acontecimentos, tais idiossincrasias possibilitam que o país se imponha como componente indispensável às discussões sempre controvertidas que marcam os assuntos em questão. Portanto, julgo oportuna e providencial a abertura de um parêntesis nas discussões sobre cor, para que se possam inserir em seu fluxo, aspectos relacionados às marcas de brasilidade tão presentes e tão incisivas nas relações sociais desdobradas no cotidiano.

Certamente, um bom elemento para ser destacado como ponto de partida de um mapeamento que se proponha a tratar de nossas peculiaridades comportamentais, diz respeito a “um estilo, a um modo de ser, a um ‘jeito’ de existir que, não obstante estar fundado em coisas universais é exclusivamente brasileiro”.134 Assim como é exclusividade nossa, acreditar em santos católicos, mas não dispensar uma consulta aos orixás; não concordar com atitudes de determinados políticos, mas votar neles; reclamar do que nos prejudica, mas, por comodismo, aceitar passivamente a situação imposta, não nos rebelando para mudar o que desejamos que seja mudado; e, sobretudo, é exclusividade nossa, não sermos um país ambivalente no que se refere a questões raciais, o que nos impede de operar somente com a lógica do preto ou branco como se verifica em qualquer país do mundo. Lógica, porque, de forma visível e concreta, define muito bem as coisas, as pessoas e as ações e pensamento delas, na construção de um mundo em que se sabe quem é quem, em que se sabe quem pensa o quê, e quem pensa como, e por isso, o processo de discriminação e de práticas raciais resultantes são de natureza ostensiva, com fronteiras e limites bem definidos, e, não, difusos ou diluídos em teses que não merecem crédito.

No Brasil, não. Aqui, a ausência desse dualismo implica de imediato o surgimento de uma pluralidade que situa o branco na parte mais alta de um escalonamento que, por um lado, dissimula e dissemina um “racismo à brasileira”, por suas gradações e por seus vários matizes. Por outro lado, gera um comportamento característico da nossa maneira de ser, traduzida pelo fato de possibilitar que os não-negros transitem em toda a abrangência dessa escala, em vista de determinadas circunstâncias e determinados interesses, e até, de permitir, pelos mesmos expedientes, que brancos também tenham as mesmas condições de acessibilidade e trânsito em toda a extensão desse dimensionamento.

Enfim, no Brasil, como bem observa Roberto Da Matta, apesar de fazê-lo por caminhos transversos,

não ficamos com uma classificação racial formalizada em preto e branco (ou talvez, mais precisamente, em preto ou branco), com aqueles conhecidos refinamentos ideológicos que, na legislação norte-americana, eram prodígios em descobrir porções ínfimas daquilo que a lei chamava de “sangue negro” nas veias de pessoas de cor branca, que assim passavam a ser consideradas pretas, mesmo que sua fenotipia (ou aparência externa) fosse inconfundivelmente “branca”. 135

Muito embora não seja simpático a comparações, até mesmo por entender que nossa grande marca é as nossas idiossincrasias, ainda assim, considero oportuna a observação de Da Matta, justamente por ela revelar, ainda que às avessas, um modelo de princípios que tão bem nos tipificam e nos singularizam como uma sociedade dividida entre múltiplas possibilidades de classificação, e que, pela sua capacidade de combinar essas possibilidades, engendra modus operandi próprio.

Fechando o parêntesis aberto sobre aspectos de brasilidade e retornando ao ponto inicial, afirmo que é por intermédio da cor que as discussões propostas contam com um paroxismo próprio do terreno das práticas do cotidiano, centradas no empirismo. Tal situação ocorre justamente em função da dimensão que essa circunstância assume na constituição de uma conjuntura social, que continua valorizando a classificação da sociedade em brancos, pretos e pardos, embora, quanto a esta última categoria, a valorização não siga os mesmos moldes, e é bom que não se perca de vista, o quanto as situações envolvidas e referentes à condição de pardo estão relacionadas com a questão do negro. Embora o interesse aqui não seja o de tratar causas dessa natureza, por julgá-la extemporânea, ainda assim, entendo que pelo menos uma dessas condições deve ser tratada, a fim de evitar a construção de uma lacuna que, de repente, parece pouco exprimir. Por isso, apresento, a título de ilustração da situação inferida, a flexibilidade que permite ao pardo, amoldar--se tal como é, à condição de negro, de branco ou até mesmo de quase negro ou de quase branco, dependendo das circunstâncias em que estiver envolvido, não somente aos olhos dos brancos, mas, principalmente, segundo sua própria maneira de se ver, fato que em dada proporção, também reflete mais uma idiossicrasia do Brasil.

Como se sabe, para o preenchimento de requisitos epistemológicos, a noção de cor não se sustenta isoladamente, inclusive por ser, em sua origem, de índole científica. Ela traz consigo e considera outros aspectos ligados à raça e por vezes até mesmo ao próprio conceito de etnia, ou seja, a pele preta, branca ou parda constitui condições que, por si sós, não atendem inteiramente como referências capazes de definir uma situação biológica. Paralelamente a esses dados, é indispensável ao sujeito da investigação, apresentar determinantes de natureza variada, predominantes num dado segmento humano, bem como apresentar, também, traços característicos próprios de um determinado grupo, para que, contando com a combinação de elementos específicos, ele, finalmente, seja classificado como pertencente a um segmento, biologicamente definido. Entretanto, no atendimento dos propósitos da discussão em pauta, o quesito cor tem autonomia para se sustentar isoladamente, não só por tudo o que nos proporcionam as relações sociais do cotidiano, − refratárias a princípios epistemológicos estabelecidos pelo saber científico −, mas, sobretudo pelo quadro com o qual deparamos na topografia literária, que se trata de um quadro dotado de uma estrutura formada pelos mesmos ingredientes encontrados na estrutura das relações sociais, cuja presença no texto literário, corrobora aspectos do cotidiano. Esses elementos são decisivos na definição do contorno desse negro, que é o sujeito da investigação nos discursos histórico e literário, e uma vez resguardados e respeitados todos os pressupostos epistemológicos de caráter antropológico, utilizados na busca dessa definição, a valência de efeitos práticos é prioritariamente considerada, como forma de construção deste pressuposto básico.

O negro que priorizamos seu enfoque, quer do ponto de vista histórico, quer do ponto de vista literário, trata-se de um ser humano que, primeiramente, carrega como principal característica o estigma de ser produto da instituição da escravidão. Num segundo momento, nossas referências vão ao encontro de alguém que veio a tomar conhecimento dessa condição, quando pela primeira vez na vida saiu de casa e foi à rua caminhando com seus próprios pés, para se juntar a crianças de idades tão tenras quanto à dele. E é ali, na brincadeira de rua, na hora do vis-à-vis, no convívio estreito com a criança branca que a criança negra “descobre” que é negra; e muito pior, “descobre” de forma cruel, porque a reboque dessa descoberta, ela toma conhecimento de outras convenções associadas ao polo preto da maniqueísta divisão binária, branco e preto.

Nessa perspectiva, ganhar a rua significa deixar a casa, mas, mais do que isto, significa deixar um espaço social e ganhar outro, e numa escala ainda muito maior, deixar um mundo e ganhar outro. Nessa dialética entre casa e rua, a casa é sempre uma estrutura onde nós nos realizamos, basicamente, como seres humanos que têm um corpo físico e uma dimensão moral e social.136 Ela demarca um espaço definitivamente amoroso, aonde a harmonia deve reinar sobre a confusão, a competição e a desordem,137 e por isso, nela somos únicos e insubstituíveis, ao contrário da rua que é um espaço que se mede pela luta, pela competição e pelo anonimato cruel de individualidades e individualismos,138 podendo vir a ser um espaço muito mais excludente que inclusivo, e nesse processo dialético, a rua, numa dimensão muito maior que a da casa, mais que mero espaço geográfico é a possibilidade de ler, interpretar e explicar o mundo.

É sob essas condições que a criança negra, − embora ainda não perceba − inicia uma caminhada pautada por uma intolerância racial de aspectos multifacetados que permeará toda a extensão da trajetória de sua vida. É a partir de acontecimentos dessa natureza, que, pensar o Brasil no tocante à escravidão, ao preconceito e à intolerância racial, implica, necessariamente, também avaliar atitudes, pensamentos e padrões brancocêntricos estabelecidos.

Ora, quem fez a escravidão e quem por meio dela investiu na inferiorização do negro foi o homem branco. Não podemos, portanto, pensar o negro a partir de pressupostos isolacionistas, mas, sim, na sua dimensão com o homem branco. Com o branco que não consegue dispensar ao negro um olhar desprovido de amarras e de vendas tão antigas quanto à própria escravidão que, historicamente, lhe proporcionou mecanismos de coerção, de cerceamento e de inaceitação que ele se habituou a operar diante da presença da gente negra. De um branco que urge ser “libertado” por um processo abolicionista que não seja erigido sob a égide do embuste e do farisaísmo, como ocorreu com a Lei Áurea, que “libertou” os escravos, mas cada vez menos nos autoriza desatualizar uma proposição secular de Machado de Assis, na qual ele observa que “a abolição é uma aurora da liberdade: esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”.139 Uma abolição que não priorize apenas o corpo físico de quem quer que seja, mas que, acima de tudo, demonstre um poder de atuação, que além de incidir sobre o físico, incida também sobre mentalidades.

É evidente que a criança branca, justamente e até por ser criança, não tem a menor noção do que vêm a ser determinantes biológicos, orgânicos, fisiológicos, psicológicos ou culturais. Na mesma intensidade, pode-se afirmar que ela não possui as mínimas condições de raciocinar com a presença de componentes como traços raciais hereditários, de constituição anatômica ou genotípica. A despeito disso, ela sabe discriminar sim, ela possui, sim, a exata noção do que vem a ser um tratamento preconceituoso, em consequência de uma visão construída a partir de dois mecanismos que o cotidiano lhe disponibiliza: um, a referência direta transmitida pelo adulto, ou, indiretamente, o que ela observa e percebe em todos os níveis do mundo “branco” ao seu redor; outro, pela associação do primeiro mecanismo à cor do sujeito que ela tem como alvo de discriminação e de tratamento preconceituoso.

Tudo se dá em consequência da utilização de conceitos formalizados no âmago de um sistema simbólico − ou aparelho ideológico − denominado família, em vista da sua condição de estrutura estruturada e estruturante, onde a cor é requisito básico para forjar toda a conscientização que a criança branca constrói, se não pelos ensinamentos transmitidos, pelas condições vivenciadas no mundo circundante. E mais: é a partir desse ponto que o conceito de raça negra, no imaginário da criança branca, passa a ter como correspondente direto e imediato, uma cor que não é mesma dela. Com certeza, são evidências objetivas desse porte que autorizam Frantz Fanon a afirmar de maneira categórica que “o fato da cor ser o sinal exterior mais visível da raça, contribui para que ela se transforme no critério através do qual homens são julgados sem se levar em conta sua educação e seu nível social,”140 e é óbvio que sua asserção tem por base, referências próprias do mundo empírico.

Portanto, numa conjuntura de predominância branca, o indivíduo cuja cor da pele é preta passa a ser visto como estranho, como atópico, como outro. Por isso, suas ações e comportamentos são mediados por um sentimento de antagonismo racial, que, embora absolutamente desprovido de fundamentos biológicos, anatômicos ou fisiológicos, provoca a fusão dele com sua população, revelando uma avaliação que não se baseia no valor pessoal, mas, sim, na intenção de fazer dele o referencial de uma classe. Dessa maneira, outorga-se à cor preta, competência para convencionar um sentido de raça, em função de aspectos que, por serem epidérmicos, se apresentam às escâncaras, levando a noção de cor a fundir-se com a de raça. E é pela presença desses aspectos que, na estrutura do cotidiano, assim como na do espaço literário,tornam-se anódinas as noções de determinantes biológicos e outras de natureza científica semelhante. Nesta linha, assim o são, também, as noções de quase brancos ou de quase pretos, presentes em situações de relevo em algumas regiões do país, exceção feita à região sul. Nesta região, quem é quase branco ou quase preto acaba sendo integrado à população negra, sobretudo pela valorização de aspectos aparentes mais acentuados, e também, pela carga genética daqueles que lá vivem, constituindo uma população, cuja maioria descende de povos acostumados a operar a lógica do preto ou branco.

Por diversas vezes insisti na notoriedade da impotência demonstrada pelo evento da Abolição, no que diz respeito a sua capacidade de erradicar a escravidão, tendo em vista que esta continuou acontecendo, se não mais através de uma prática recorrente e generalizada, nas relações sociais como temática central no terreno das reflexões desenvolvidas por mentalidades refratárias ao ato de libertação. A condição de negro − independentemente de condições biológicas, mas não de aspectos aparentes − sempre esteve, natural e indelevelmente, associada à condição de escravo, introduzindo no habitus das pessoas, uma referência de assimilação e absorção de formas de ver, interpretar e de tentar inferiorizar o homem negro, através de uma hierarquização que, vista pela ótica daqueles que se encontravam no ápice da estrutura estamental, a todo custo deveria ser mantida. A Abolição foi responsável por ações capazes de fazer com que um dia o homem negro deixasse de ser escravo, no entanto, continuando a ser negro, ele não se livrou do estigma de continuar sendo visto como um ser inferior, por uma sociedade branca incapaz de percebê-lo e de respeitá-lo como um homem marcado por um novo ethos. É devido à presença de predisposições dessa ordem que Barthes encontra razões para observar que “a ciência segue seu caminho depressa e bem; mas as representações coletivas não a acompanham, mantêm-se séculos atrás, estagnadas no erro pelo poder, a imprensa, e os valores da ordem”.141 E em sendo assim, as evoluções trazidas pela Antropologia não foram eficazes a ponto de frear significações − a despeito de não ser este seu papel − que a coletividade insiste em continuar valorizando como elementos norteadores da construção de sua visão de mundo, a exemplo da valorização que ela atribui à cor, que numa perspectiva literária, assume proporções muito mais amplas, uma vez considerado o campo semântico inerente a este quesito.

Outro aspecto que confirma essas proposições, funcionando até certo ponto, como contraponto das discussões levantadas, trata--se das questões relacionadas ao chamado “embranquecimento”. Esta situação, muito mais que um ato gratuito ou isolado, caracteriza uma espécie de preocupação e de ideia que sempre perpassou escopos da classe dominante, presentes com ênfase nos textos históricos, mas, apresentando-se, também, nos textos literários como acontece no Sermão da XXª, do Padre Antonio Vieira e em Menino de Engenho, de Lins do Rêgo. Embora essa questão ainda esteja para ser tratada adiante, considero oportuno antecipar aqui as preocupações centradas nas categorias branco, preto e pardo, destacadas por Padre Vieira no sermão citado, demonstrando o quanto o elemento cor assume uma capacidade decisória e uma relevância que transcende sua dimensão primeira, no pensamento dominante. O “embranquecimento” tão difundido, tão discutido e tão almejado por muitos ao longo de um período histórico do Brasil, era visto por uns, como a possibilidade de se livrar da própria condição de negro, e por outros, como a possibilidade de se livrar dos negros. Sempre foi a expressão de uma mentalidade dominante que tinha a intenção de resolver um problema ao nível da aparência física, exterior, portanto, resolver um problema cujo incômodo era a cor, denunciando que a elite de então tinha consciência da idealidade da política do branqueamento. Para o pensamento dominante, o processo de depuração racial, além de realizar o sonho de aniquilamento por completo, dos negros, ainda implicava na quase extinção dos mestiços, condições que, uma vez associadas, resultariam na garantia da dominação branca, na condução dos destinos do país.

Uma inequívoca comprovação do poder que a categoria cor tem, de abrangência da capacidade de se estabelecer como referência de raça e de transcendência de seu sentido imediato, revela-se nas oportunidades em que ela tende a objetivar-se como realidades racializadas e racializantes, possíveis de serem percebidas com relativa facilidade, nos mais diferentes espaços da experiência humana, como o comércio e o segmento midiático, só para citar dois deles. A visibilidade com que essas condições se expõem no âmbito comercial, dependendo do porte do estabelecimento e do local onde este se encontra instalado, não exige de ninguém, atenção excessiva para percebê-las. Os tradicionais shoppings centers são o que há de mais concreto, como referenciais de estruturas racializadas e racializantes, circunstância que também influi na formação de nosso habitus, na medida em que, é a partir de seu potencial estruturante que as diferenciações socialmente construídas por esses espaços, causam impactos e obtêm resultados, vinculados sempre ao nível da cor e jamais ao nível de determinantes biológicos.

Do ponto de vista das produções midiáticas, sobretudo no que se refere à mídia televisiva, observamos a mesma predisposição em muitos programas que se revelam como racializados e racializantes. Eles assim se pronunciam, nem tanto pela presença de poucos negros atuando na condição de participantes ou pela presença mais acentuada de brancos nessa mesma condição, mas, sim, porque a presença mais acentuada de brancos na condição de participantes está diretamente relacionada à maior presença de brancos, também na produção desses programas, na condução deles e, sobretudo, na condição de proprietários das emissoras que os veiculam. É isto o que faz com que eles sejam veiculados essencialmente para um público de predominância branca. É nesse nível que esses programas se consagram como estruturas racializadas e racializantes, muito embora, no desempenho dessa função, eles sejam bem menos competentes que as propagandas publicitárias que os patrocinam, considerando o teor sub-reptício destas.

E dessa forma, sem negar o conteúdo epistemológico dos pressupostos antropológicos, e pelo contrário, sempre caminhando em busca de repensá-los no que diz respeito aos resultados da sua capacidade analítica, a pretensão é problematizar suas versões a partir da consideração de valores empíricos, realçados em efeitos práticos multifacetados em relações do cotidiano, sobrevindas numa arena chamada Brasil.

Antes de examinar com mais objetividade as formas através das quais a linguagem literária articula desempenhos do personagem negro, especialmente no que se refere à adoção de estratégias discursivas que não rompem com predisposições estabelecidas e não apresentam nenhum grau de inovação, torna-se oportuno recorrer a mais uma linha de raciocínio de pertinência considerável, no atendimento de princípios básicos, até aqui valorizados. Assim deve ocorrer, sobretudo porque, os dispositivos práticos dessa linha de pensamento corroboram atitudes comportamentais dominantes, sob as quais subjaz toda a problemática existente no campo das relações sociais do cotidiano.

A complexidade dos aspectos práticos dos desdobramentos das relações sociais que estão sendo abordadas deixa de ter sua essência sopesada, quase sempre, em função da perda do foco nos detalhes. As tensões presentes no campo social, às quais me referi parágrafos atrás, eclodem exatamente porque constituem um conjunto de ações que vão de encontro ao repositório de ensinamentos modeladores da visão de mundo da classe dominante. Mais adequadamente até, vão contra o habitus, transmitidas que lhe são pelos aparelhos ideológicos de Estado ou sistemas simbólicos, sobretudo pela família, instância de acesso fácil e a que com mais propriedade concentra o húmus de toda a proposta de autossuficiência que caracteriza a classe dominante.

Uma vez penetrando no terreno das discussões literárias, não se dispensará aqui uma primazia pela sociologia da Literatura, entretanto, não há por que excluir do trabalho sua dimensão crítico-sociológica, na medida em que a Literatura apresenta uma realidade social que aí está, da qual o negro é ente expressivo como parte representativa, cabendo acrescentar que os personagens, embora feitos de palavras, nascem, também, de pessoas. É indispensável perceber, entretanto, que este não é o limite das abordagens literárias; elas traduzem, principalmente, uma forma de ver a realidade, e ao representar a realidade do cotidiano, se o fizerem pela via de padrões que apenas parcialmente, atendem a essa realidade, renunciando tensões, correm o risco de beirar à indigência.

Em linhas gerais, é esta a fisionomia da realidade que marca nosso cotidiano. É desse plano das relações sociais que emerge o negro, que em sua essência, é muito mais produto de um registro empírico e inventivo que propriamente fruto de análises antropológicas ou preservacionistas, dali migrando para os espaços textuais. É com este negro e com a mesma concepção do termo que lidamos no cotidiano, que deparamos na Literatura brasileira dando vida ao “negro José Guedes”, ao “negro Passarinho”, à “negra Margarida” e ao “negro Domingos” de Fogo Morto; à “negra Bertoleza”, de O Cortiço; ao “negro Feliciano”, à “negra Esmeralda” e ao “‘nego’ Leléu”, de Viva o Povo Brasileiro; ao “negro Damião”, à “negra Francisca”, à “negra Generosa” e à “negra” Luísa, de Menino de Engenho; ao Negrinho, de O Negrinho do Pastoreio; à “Negrinha”, de Negrinha; ao “negro Benedito”, de O Tronco do Ipê; à “negra Florinda”, de Um Defeito de Cor ou ao “crioulo Simeão” e à “crioula Esméria” de Vítimas Algozes. Personagens que aí estão representando os “negros” citados e tantos outros “negros” e “negras”, “negos” e “negas”, “pretos” e “pretas”, “crioulos” e “crioulas”, assim tratados pelos textos em geral, de forma a nos convencer que na Literatura, assim como na vida, o tratamento racista e preconceituoso se define sempre pelo fenótipo, invariavelmente tendo a ver com melanina e jamais com pureza genética.

O que se percebe é que o problema fundamental não está na raça, que é uma classificação pseudocientífica rejeitada pelos próprios cientistas da área biológica. O nó da questão está no racismo que hierarquiza, desumaniza e justifica a disseminação existente, reforçando a ideia de que a concepção que se tem da condição de negro, quer no dia a dia, quer na topologia literária é sempre construída por ditames impostos por pressupostos sociais e históricos, e nunca, biológicos.

Discussões atualizadas revelam um abespinhamento por parte das elites brasileiras, que diante do tema, procuram convencer a qualquer preço que raça não existe, esquecendo-se que, se a noção de raça não mais existe para o cientista, para o biólogo ou o geneticista humano, na mentalidade de quem discrimina e na sensibilidade de suas vítimas ela continua existindo. A pretensão das elites é priorizar aparências exteriores que ajudam na confirmação do mito da democracia racial, forjado pela reprodução de uma falsa consciência da realidade racial brasileira, muito bem retratado por Roberto DaMatta na tese por ele denominada “fábula das três raças”.142 São predisposições dessa natureza que engendram discursos, segundo os quais, “não existem distinções raciais entre nós,” ou, “vivemos em perfeita harmonia racial,” compondo raciocínios possíveis de serem entendidos pelas palavras de Marilena Chaui, ao afirmar que

é assim, por exemplo, que alguém pode afirmar que os índios são ignorantes, os negros são indolentes, os nordestinos são atrasados, os portugueses são burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas, simultaneamente, declarar que se orgulha de ser brasileiro porque somos um povo sem preconceitos e uma nação nascida da mistura de raças.143

Quanto à possibilidade de democratização, convém não perder a referência de que o mito da democracia racial, tão propalado por alguns segmentos da sociedade, não passa de mais um expediente entre os muitos adotados para que a situação do negro se mantenha num patamar que não o distancie muito daquele em que ele se encontrava nos tempos da escravidão. É um discurso conciliador, cuja nítida pretensão é a de manter velada, uma realidade que atende a interesses de grupos detentores de algum tipo de hegemonia, inclusive, sustentando teses segundo as quais o “racismo não existe,” ou que afirmam ser o racismo “produto do imaginário do próprio negro,” visando, dessa forma, a difusão da existência de um Brasil pseudoedênico. Ademais, de um país que cotidianamente demonstra uma absoluta incompetência para ser democrático em qualquer setor de atividade humana, quer seja político, econômico, jurídico, trabalhista ou algo que o valha, só mesmo ao nível retórico poderíamos esperar que ele o fosse no plano de relações tão complexas como as sociais.

E sobre este eixo de raciocínio, uma vez imergindo na topologia literária, já não estamos mais diante de um problema ontológico, mas, sim, diante de questões relacionadas a estratégias discursivas, pois, somente o discurso visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo. Sua referência é seu valor de verdade e sua pretensão é atingir a verdade.

***

4.3 - Vieira: retórica religiosa e reacionarismo

Por obediência a uma questão cronológica e na perseguição de uma linearidade que possa representar a tradução de uma trajetória da Literatura brasileira em toda sua extensão temporal, a partir de agora, o objetivo será centrado em obras literárias e cronologias capazes de retratar com exatidão, situações que, embora pareçam pontuadas, na verdade perpassam a Literatura brasileira em toda sua extensão.

Inicialmente, o discurso a ser examinado se encontra nos Sermões da XIVª, da XXª e da XXVIIª, do Padre Antonio Vieira. Antes, porém, destaco o viés multifacetado desse discurso, presente nos níveis histórico, retórico, filosófico, ideológico, crítico, sociológico, político, religioso, alegórico e literário, dentre outros, sendo esta última vertente, a que interessa como objeto de análise comparativa com as vertentes não-estéticas encontradas em si mesmo e em outros textos, sustentando e reverberando pensamentos, habitus e ideologias dominantes, presentes na Literatura já a partir do século XVII. Esses três textos de Vieira traduzem de forma precisa, uma predisposição literária recorrente e própria de parte de seu corpus, ou seja, o desenvolvimento de um discurso sobre o negro e a ele dirigido, nitidamente com a pretensão de convencê-lo a se dar por satisfeito com a condição de escravo, através da utilização de mecanismos de persuasão essencialmente religiosos.

O Sermão da XIVª, o primeiro a ser observado como referência de discurso literário dotado de capacidade de entrecruzar-se com discursos não-estéticos, foi proferido pelo Padre Antonio Vieira em 1633, na Bahia, à irmandade dos pretos de um Engenho, em dia de São João Evangelista. Tal acontecimento nos leva a perceber, que na citada conjuntura o negro já se faz presente de forma dupla: presente como ouvinte e presente como sujeito sob enfoque, isto é, como personagem. Na mesma proporção, é indispensável dizer que, tanto numa condição quanto noutra, a despeito de ocupar espaço, ele se encontra absolutamente desprovido de voz, também duplamente. Silenciado como ouvinte porque ao fiel não cabe falar nem questionar, e silenciado como personagem, porque construído sem voz, como determina a própria estrutura do sermão.

No referido sermão e no sermonário que trata do negro como assunto, Vieira joga com as palavras através do apelo ao cultismo, usa o conceptismo, abusa do investimento na retórica, na alegoria e nas ideologias religiosa e laica, proferindo um discurso para um público de predominância negra que ele quer convencer de que sua posição de escravizado, nada mais é que parte integrante de uma ordem social e religiosa, natural à vida de humanos e de santidades.

Esse sermão contém nove partes, e nas quatro primeiras, Vieira recorre a pressupostos religiosos que devem ser vistos pelos escravos como formas de aceitação do estado no qual eles se encontram, a partir de uma evolução alegórica apresentada por elementos religiosos, que se expressa inicialmente pela exaltação da Mãe de Deus e pela honra em recebê-la. Em seguida, o texto dá prosseguimento a sua postura alegórica, através do tratamento de três modalidades de nascimento possíveis, a começar pelo nascimento de Cristo, e com esses primeiros passos é feita uma preparação no intuito de que aquela instância religiosa que Vieira vê, prioritariamente, como a mãe de todos nós, seja vista pelos escravos como mãe deles também, convencidos que devem ser por argumentos apresentados em três das nove partes que o compõem, indiciadas em forma de epítome:

Na primeira veremos com novo nascimento nascido de Maria a Jesus: na segunda com outro nascimento nascido de Maria a S. João: e na terceira, também com novo nascimento nascido de Maria aos Pretos seus devotos. Dêem-me (sic) eles principalmente a atenção que devem, e destes três nascimentos nascerão outros tantos motivos, com que reconheçam a obrigação que têm de amar, venerar, e servir a Virgem Senhora Nossa, como Mãe de Jesus, como Mãe de S. João e como Mãe sua. 144 [grifos meus]

Em seu desdobramento, o sermão mostra que o reconhecimento e a obrigação que o pregador instiga para que os escravos tenham vão muito além do ato de amar, venerar e servir à Virgem Senhora Nossa, como em princípio quer fazer parecer. Subjacente a essa proposta encontra-se uma empresa que se coloca a serviço da manutenção de uma situação, que será tanto mais favorável aos setores dominantes, quanto mais o segmento humano representado pelos escravos se mostrar inconsciente a sua condição de explorado dentro do tecido social. Portanto, torna-se indispensável, a partir desse ponto da pregação, começar a reparar, a destacar e a considerar como elemento decisivo da proposta discursiva em dialogar com textos não-estéticos, o domínio prático e o conhecimento teórico das formas retóricas de Antonio Vieira. Este deve ser o proceder, tendo em vista que esses objetos pertencem ao sujeito falante e não ao sujeito ouvinte, e nessa medida, “a diferença de informação entre sujeito falante e sujeito ouvinte é válida igualmente para a literatura”.145 Essa avaliação se processa também no terreno das práticas literárias, em virtude da capacidade inerente à retórica de não funcionar como um mecanismo isolado, mas, sim, como um “sistema mais ou menos elaborado de formas de pensamento e de linguagem, as quais podem servir à finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o efeito que pretende”.146 [grifos meus] E os efeitos pretendidos por Padre Vieira não se resumem à esfera pessoal; são interesses bem mais abrangentes, que vão muito mais além, porque ele não prega em causa própria, mas, sim, em nome de uma instituição que, ao mesmo tempo em que detinha todos os mecanismos capazes de alterar os quadros da escravidão, tinha também todos os interesses para não o fazer, conforme se demonstrou com propriedade no subitem 2.6.

Uma vez preparado o terreno é chegada a hora de se aprofundar naquilo que o pregador realmente tem como interesse maior: uma objetividade explorada através das marcas de um “segundo” nascimento de Jesus, de S. João e do “segundo” nascimento dos negros.

O segundo nascimento de Jesus ao qual o texto se refere, diz respeito ao “nascimento” ocorrido na cruz, portanto, no ato da morte.

O segundo nascimento de S. João acontece num ambiente cercado por uma autêntica simbiose que se processa entre ele e Jesus, no mesmo momento da crucifixão, extraída da indistinção que Cristo propõe existir entre ele e João, como filhos de Maria que ambos são. Cristo aponta para João e diz a sua mãe: Ecce filius tuus,147 revelando, por esses termos, que suas palavras foram proferidas com o sentido de “significar declaradamente que ele e João não se distinguiam, e que João não era outro filho da Senhora, senão o mesmo Jesus, que ela gerara, e dela nascera”.148

E quando é que os negros nasceram de novo? No mesmo dia em que Cristo e João renasceram. Os negros nascem como parte integrante do mesmo conjunto de acontecimentos e circunstâncias que possibilitaram o renascimento de Cristo e de João, porque o terceiro nascimento no qual se pronunciaram as mesmas palavras, Ecce filius tuus,149 “é o dos Pretos, devotos da mesma Senhora, os quais também são seus filhos, e também nascidos entre as dores da Cruz”. [grifos meus] E a partir da execução dessa forma de introito, Vieira tem a sua mercê todos os caminhos abertos para desenvolver um discurso que vai ao encontro dos interesses da classe dominante que ele integra. Por isso, utiliza ações imprimidas na manutenção de um estado de dominação, que, por via de regra é alcançado, sobretudo pelo uso de uma linguagem que conta com a contribuição de uma retórica imprescindível à compreensão do substrato das suas produções literárias. Esse comprometimento retórico subjaz ao estilo desse escritor, ajudando a compor uma tessitura eivada de elementos discursivos, estrategicamente utilizados, como, por vezes, se observa na aplicação do conceptismo, como um húmus ideológico próprio da Contra-Reforma:

Se um destes homens nascidos de Maria é Deus; o outro homem também nascido de Maria quem é? É todo o homem que tem a fé e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão diferente da dos outros homens, como é a dos Pretos. [...] De maneira que vós os Pretos, que tão humilde figura fazeis no mundo, e na estimação dos homens, por vosso próprio nome, e por vossa própria nação, estais escritos e matriculados nos livros de Deus, e nas Sagradas Escrituras: e não com menos título, nem com menos foro, que de filhos da Mãe do mesmo Deus.150 [grifos meus]

Juntamente com o apelo ao conceptismo, o jogo retórico é chamado a intervir como elemento de sustentação do seu discurso, na medida em que a proposta básica é a de convencer o negro que, apesar de ser negro, ele goza todas as “regalias” liberadas a quem é filho da Mãe do mesmo Deus. Entretanto, também é preciso conduzir a pregação no sentido de fazer com que o negro jamais perca de vista que, na sua essência, ele é negro, e por isso, deve dimensionar a contento, o que isto representa e significa na conjuntura na qual ele está inserido.

A partir de então, o discurso é pura objetividade na direção dos propósitos que este livro quer demonstrar, ou seja, a capacidade do discurso vieiriano para reverberar interesses hegemônicos expressados com veemência nos textos de natureza histórica:

O Profeta pôs no último lugar os Etíopes e os Pretos; porque este é o lugar que lhes dá o mundo, e a baixa estimação com que são tratados dos outros homens, filhos de Adão como eles. Porém a Virgem Senhora, sendo Mãe do Altíssimo, não os despreza, nem se despreza de os ter por filhos, antes porque é Mãe do Altíssimo, por isso mesmo se preza de ser também sua Mãe. Saibam pois os Pretos, e não duvidem que a mesma Mãe de Deus é Mãe sua: [...] que assim pequenos como são, os ama, e tem por filhos. 151 [grifos meus]

Tal linha de comportamento discursivo prossegue, contando com o reforço de um argumento, segundo o qual, nem todos os negros tinham a felicidade de ser cristãos, mas aqueles aos quais o texto se dirigia, sim, o que fazia deles, figuras especiais, portanto, portadoras de mais uma referência que eles não poderiam desconsiderar, ou seja, o acesso a princípios de cristandade e o conhecimento das Escrituras Sagradas:

Os Etíopes de que fala o texto de Davi, não são todos os Pretos universalmente, porque muitos deles são gentios nas suas trevas; mas fala somente daqueles de que eu também falo, que são os que por mercê de Deus, e de sua Santíssima Mãe, por meio da Fé e conhecimento de Cristo, e por virtude do Batismo são Cristãos.152

O investimento na retórica vieiriana prossegue no chamamento da atenção dos escravos para a posse de uma dádiva que os céus lhes proporcionavam pela via da Igreja, não importando em que medida aquela operação implicava a degradação, a espoliação e a destruição da cultura e da religião próprias daquela gente:

... assim como Deus na lei da Natureza escolheu a Abraão, e na Escrita a Moisés, e na Graça a Saulo, não pelos serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de fazer; assim a Mãe de Deus antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, e esta vossa devoção, vos escolheu entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos Pais, vos não perdêsseis, e cá, como filhos seus, vos salvásseis.153 [grifos meus]

A abordagem anterior complementa-se na observação que recomenda aos escravos que eles devem “dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde instruídos na Fé, vivais como Cristão, e vos salveis”.154 Enfim, na visão da Igreja, ter saído da África foi um “verdadeiro negócio da China,” feito pelos escravos!

O pregador começa a estreitar seu campo de ação ao recorrer a estratégias literárias que lhe permitem apelar, cada vez com mais intensidade, para o duplo sentido e para a proposta alegórica, dizendo o máximo com o mínimo de palavras, bem como apelar para o requinte expressivo e para a sutileza das ideias defendidas, dirigindo-se de maneira específica àqueles que, embora constituam um público-alvo, são de fato, representantes de uma coletividade:

[...] Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles se ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário; e do Rosário particularmente dos Pretos; e dos Pretos em particular que trabalham neste e nos outros Engenhos. [...] O novo nascimento de Cristo os persuade a que sem embargo do contínuo e grande trabalho em que estão ocupados, nem por isso se esqueçam da soberana Mãe sua, e de lhe rezar o Rosário, ao menos parte quando não possam todo. E finalmente, o novo nascimento de S. João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário, os que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar, e oferecer à Senhora o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito, e me resta dizer: e este haverá por bem festejado o seu dia. E porque agora falo mais particularmente com os Pretos, agora lhes peço mais particular atenção. 155 [grifos meus]

Para os interesses do pregador a atenção solicitada se justifica, mas só de modo a atender o nível que lhe convém, no que se refere ao ouvinte. Quanto ao leitor, a atenção que se requer deve se limitar a uma leitura tangencial que implique, exatamente, numa resposta que seja fruto de uma leitura oficial e perspectivista. No entanto, como artefato literário que é, o texto exige que as atenções do leitor o levem a perceber aspectos localizados nas entrelinhas do texto, pois só dessa forma podemos notar a presença de substâncias que estão embutidas em seu nível ideológico dominante, levando-nos, como consequência, a perceber, também, sua dimensão como veículo de expressão humana a serviço de segmentos sociais habituados a ver e a ter preservados, todos os seus desideratos hegemônicos.

Uma vez obtendo a atenção desejada e possivelmente por já se dar por satisfeito com a posse de um considerável grau de convencimento, ou ainda por uma questão de mero oportunismo, o pregador acrescenta ao discurso outro eficaz instrumento de persuasão: o medo, o pavor, a ameaça:

Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda da terra de Promissão, rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã, Abirão, e Coré: e querendo a Divina Justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito, abriu-se subitamente a terra, tragou vivo aos três delinqüentes, e em um momento todos três, com portento nunca visto, foram sepultados no inferno. Houve porém neste caso uma diferença ou exceção muito notável, e foi que com Datã e Abirão pereceram juntamente, e foram também tragados da terra, e sepultados no inferno seus filhos; mas os de Coré não: e este é o que a Escritura chama grande milagre. 156 [grifos meus]

Na analogia feita, os escravos correspondem aos únicos filhos salvos de pais que receberam o castigo de perecerem pelo cometimento de pecados. Nessa perspectiva, o grande milagre é operado pela fé e pela Igreja, portanto, trata-se de salvar filhos de pais que, condenados, foram para o inferno, mas os filhos, não. Aos pais dos escravos nada mais se pode fazer, mas quanto aos filhos o grande milagre a ser operado com eles se chama escravidão:

Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a sua Santíssima mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro, e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre! Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da Fé, nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como já credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão e arderão por toda a eternidade.157 [grifos meus]

Estabelecidas como parâmetros a escravidão e a condição de negro, resta ao pregador priorizar um discurso que tenha como alvo, manter esses dois aspectos como balizas fixas e inalteráveis. E para a consecução desse propósito torna-se imperioso investir na utilização de estratégias que, a um só tempo, tenham por finalidade, produzir efeitos práticos no segmento dominado e no dominante. No segmento dominado, de modo a convencê-lo de que o seu status mais do que uma questão material é também uma situação que tem a ver com as desígnios sagrados, e por isso, é definido por eles. Na mesma proporção, atua no segmento dominante, produzindo em sua mentalidade, uma autossuficiência e uma visão de mundo que dão aos seus membros a certeza de que aquela é a ordem natural das coisas. Por isso, no texto vieiriano a relação estabelecida entre escravidão e coisas divinas fica ainda mais acirrada, com estas cada vez mais se configurando como elementos comprobatórios e justificadores da necessidade da existência daquelas.

Não há trabalho, nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo, que o vosso em um destes Engenhos. Bem-aventurados vós se soubésseis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta semelhança aproveitar e santificar o trabalho! 158 [grifos meus]

A prova maior da adoção de um conjunto de medidas que visa à obtenção de resultados dessa natureza patenteia-se em diversas passagens possíveis de serem percebidas ao longo do texto, sobretudo a partir do momento em que o autor, ardilosamente, retoma um momento de grande representatividade à historicidade cristã: o sofrimento de Cristo na cruz. Mais uma vez esse acontecimento é transformado numa referência incontestável, e, estrategicamente, são retiradas dele, as palavras proferidas por Cristo no momento paroxístico daquela ocorrência, o que as coloca na condição de substância material necessária ao desenvolvimento de uma empreitada, cuja missão precípua é a confirmação das ideias que este livro defende. Neste ponto do sermão, Vieira aponta para uma situação que ele denomina de Mistérios, que significam a tripartição do Rosário, configurados na ocorrência de mistérios que ele classifica como gozosos, dolorosos e gloriosos, sustentados que são por alegorias representativas de três expressivos momentos vividos por Cristo, no episódio da crucifixão.

Antes, porém, vale a pena complementar aspectos relacionados com as proposições de Vieira, dada à riqueza que trazem embutidas em si, no que diz respeito à astúcia que ele emprega no trato da coisa de caráter dominante que ele está imbuído de realizar, porque é a partir desse ponto que sua segunda intenção começa a se delinear de forma mais intensa. Primeiramente, Vieira cita os Hebreus como referência de trabalhadores de uma conjuntura social e religiosa de tempos remotos, que apesar da dureza do trabalho a que se submetiam, mantiveram-se fiéis como ele incita os negros a serem. Em seguida, como já salientado, ele indica que os mistérios são em número de três, porque são todos condicionados a três breves orações feitas por Cristo, e como consequência, ele associa a terceira oração aos mistérios gloriosos, a segunda, aos dolorosos e a primeira, aos gozosos.

Os gloriosos ele associa à terceira oração e simultaneamente às palavras proferidas por Cristo, no exato momento de sua partida deste mundo, quais sejam: Pater in manus tuas commendo Spiritum meum, o que significa dizer: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito, e por isso a glória.159

Já os dolorosos Vieira associa à segunda oração, em que Cristo, amorosamente queixoso, proferiu em alto e bom som as seguintes palavras: Deus meu, Deus meu, ut quid dereliquisti, ou seja, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?160

Quanto aos gozosos a associação se verifica no momento em que Cristo roga por aqueles que o pregavam na cruz, alegando que eles não sabiam o que faziam, e por isso a súplica, Non enim sciunt quid faciunt que, exatamente, quer dizer “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem”.

E a sua habilidade começa a ser construída em função do teor alegórico imposto à articulação empreendida a determinadas passagens, reveladas por aspectos do texto que só uma leitura das mais atentas pode proporcionar ao leitor, uma percepção deste porte. Nessa perspectiva, um binarismo maniqueísta se interpõe revelando marcas do cotidiano:

E que tem que ver a pomba com o triste escravo e negro Etíope, que entre todas as aves só é parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com o cobre da caldeira, e o ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que pode bulir dali por meses e anos, e talvez toda a vida?161

A partir dessa linha de ação a opressão começa a atingir dimensões que desconhecem limites...

[...] se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis; orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo neles, como S. João; e nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que eu desejava sendo Rei, quando dizia: Ah! Quem me dera asas como de pomba! Voaria e estaria em descanso.162

... a confusão entre realidade e religiosidade beira ao desrespeito a uma condição humana...

... porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam, gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos. 163

... e o embuste se consagra, como se consagra o despudor revelado até mesmo por um sentimento de religiosidade:

Os dolorosos (ouçam-me agora todos), são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que devendo--vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam e vós servis: eles dormem, e vós velais: eles descansam, e vos trabalhais: eles gozam o fruto de vosso trabalho, e o que vós colheis deles, é um trabalho sobre o outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o Poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colméias. As abelhas fabricam o mel, sim, mas não para si. E posto que os que o logram é com tão diferente fortuna da vossa; se vós porém vos souberdes aproveitar dela, e conformá-la com o exemplo e Paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor.164 [grifos meus]

Entendo que toda a proposta vieiriana presente no Sermão da XIVª se resume na compreensão dos mistérios dolorosos e dos gozosos. Relembro ao leitor, que os mistérios dolorosos são traduzidos pelas palavras de Cristo que revelam sofrimento e abandono: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” A pretensão de Vieira é demonstrar a adequação das palavras de Cristo à realidade dos escravos, levando-os a perceber na essência delas, que os sofrimentos pelos quais passam devem ser valorizados por serem semelhantes aos de Cristo.

Os mistérios gozosos, por sua vez, dizem respeito às seguintes palavras proferidas por Cristo: Non enim sciunt quid faciunt, isto é, “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem”. Na mesma proporção que os mistérios dolorosos, também apresentam importante grau de adequação ao perfil dos escravos, e o desdobramento do texto mostra que os gozosos são os que mais bem se ajustam ao papel desempenhado pelos senhores-de--engenho. Como epítome, a citação anterior nos leva a perceber, que uma leitura do texto de Vieira, ainda que tangencial, revela sua proposta em buscar, pela religiosidade, isentar de culpabilidade os verdadeiros responsáveis pela construção de um panorama social marcado por extrema hediondez. E não satisfeito com essa intervenção, o Sermão da XIVª insinua ainda que aos escravos negros cabia perdoar os maiores detratores da sua dignidade, sob a alegação de que os donos do engenho não tinham consciência do que faziam.

Transferindo as discussões para o Sermão da XXª, percebemos que o seu desdobramento, em sua essência, mostra que Padre Vieira continua centrando seu enfoque na questão do negro e na relação deste com a escravidão. Além desse centramento, ele também deriva suas abordagens para uma importante esfera de julgamento e descrição, assinalados nos posicionamentos adotados e defendidos acerca da categoria cor.

Neste sermão, o que se evidencia desde o início é a postura nitidamente conciliadora do pregador, que discursa com ares de quem busca a reparação de um erro cometido, comportamento traduzido na objetividade com que ele age, sem os rodeios e os circunlóquios tão presentes no Sermão da XIVª. Desta feita, a cada capítulo Vieira vai direto ao assunto, cuja tônica é a tentativa de convencer que é melhor ser negro, é melhor ser escravo, porque é melhor ser humilde e é melhor ser desassistido, porque esses são os verdadeiros protegidos da Mãe de Deus, considerando sua condição de escrava que também fora. Ou seja, no Sermão da XXª, ao longo de nove capítulos, a tática adotada é a da persuasão pela supervalorização dos contrários, a despeito da reutilização de métodos discursivos já conhecidos.

Uma das novidades trazidas por este sermão diz respeito ao quesito cor, que neste particular, coincide com uma predisposição fenomenológica com a qual deparamos ainda hoje nas relações sociais de nosso dia a dia. Nessa perspectiva, ele promove uma associação entre diferentes tipos físicos em função dos seus respectivos tons de pele, e assim define um conceito de raça a partir das cores branca, preta e parda, indo ao encontro do tratamento que dispensei sobre a categoria cor no subitem A hora dos vis-à-vis. Utilizando binarismos maniqueístas, Vieira busca evidenciar o quanto a cor branca sinaliza para o bem e para tudo o que se encontra nesta linha, demonstrando que a cor preta, em contrapartida, em tudo implica condições absolutamente opostas.

Já no início do sermão, Vieira assume uma firme posição de defesa da ideia de que brancos, pretos e pardos, como seres humanos que são, do ponto de vista do tratamento que recebem e que dispensam uns aos outros, e da posição que ocupam no espaço social, estão visceralmente condicionados à categoria cor. Para convencer o leitor ou o ouvinte de que estas questões são provenientes das circunstâncias próprias do meio, sustenta seus argumentos observando que “até nas coisas sagradas e que pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os homens a distinção que a piedade”.165 Com isso, Vieira faz transparecer que a igualdade que, em princípio, deveria existir entre os homens é resultante de obra divina que procura “renovar e reformar em todos os homens a imagem a que Deus os tinha criado, na qual não há bárbaro ou cita, escravo ou livre”,166 portanto, se ela não se configura sob a forma de efeitos práticos entre os homens é pela preferência à distinção, uma opção dos próprios homens. Nessa linha, Vieira vê as cores branca e preta como cores extremas, e a cor parda como intermediária, daí o apelo a uma lógica binária de profundo teor maniqueísta em que ele defende a ideia de que, numa conjuntura composta por pares assimétricos delimitadores de extremos, a porção intermediária deve sempre tender para a posição mais próxima do polo positivo da divisão proposta, como observa em várias passagens sobre o assunto, todas sustentadas por pressupostos divinos:

Compara-se a Senhora à aurora, à lua e ao sol, por quê? Porque igualmente como Mãe, e como a filhos e irmãos, abraça com seu amor os brancos, os pretos e os pardos, e alumia com sua luz todas estas diferenças de cores: como sol aos brancos, que são o dia, como a lua aos pretos, que são a noite, e como aurora aos pardos que são os crepúsculos. 167

E prossegue, acrescentando a sua linha de raciocínio, que,

bem puderam os pardos agregar-se aos pretos pela parte materna, segundo o texto geral, mas eu não quero senão que se agregassem aos brancos, porque entre duas partes iguais, o nome e a preferência devem ser da mais nobre. Nas mesmas duas cores temos a prova. 168 [grifo meu]

E procura justificativas para seu pensamento recorrendo a mecanismos alegóricos, segundo os quais

fez Deus o dia e a noite com tal igualdade que, segundo diversos tempos do ano, nem em um minuto de tempo excede o dia à noite, ou a noite ao dia. E a este espaço de vinte e quatro horas, que se compõe de dia e de noite, como lhe chamou Deus desde seu nascimento? Chamou-lhe dia. Pois, se no mesmo espaço de tempo, composto de duas ametades iguais, tanta parte tem a noite como o dia, por que se chama dia e não se chama noite? [...] Ainda que no círculo que faz o sol, do Oriente ao ocaso e do ocaso ao Oriente, tanta parte tenha a noite como o dia, e o dia seja claro e a noite seja escura, contudo, aquele espaço, que se compõe destas duas partes iguais, chama-lhe Deus dia, e não lhe chama noite, por que o nome e a preferência sempre devem seguir a parte mais nobre. Por esta regra, que não é menos que divina, ainda que a cor parda se componha igualmente da preta e da branca, se devia agregar, como digo, à branca e não à preta. 169 [grifos meus]

Conforme eu trouxe à luz nas abordagens sobre a categoria cor, percebem-se, já em Vieira, aspectos que as práticas sociais do cotidiano confirmam, traduzindo uma tendência do pardo em buscar um “embranquecimento”, embora o Brasil, justamente pelo exercício de suas idiossincrasias, às vezes fuja dessa recorrência e consiga sobre elas empreender releituras. De qualquer maneira, o que constatei nas defesas de seus pontos de vista corrobora minha opinião sobre a valorização da categoria cor, quando a questão é pensar o conceito de raça.

Uma vez feita a distinção, o pregador canaliza as discussões no sentido de convencer de que entre as irmandades compostas por brancos e senhores, pretos e escravos, as posições mais compensadoras são as duas últimas porque são as mais gratas e as mais favorecidas da Mãe de Deus. Ora, este juízo lhe confere um comportamento, até certo ponto, repetitivo, por ser resultante da adoção de propostas que conciliam e contemporizam uma situação vigente, e também porque, um argumento apresentado como novo, nada acrescenta ao anterior já conhecido e nada altera no modus operandi de uma conjuntura instituída.

Bem, a finalidade é persuadir através da exposição de razões que esclareçam se “na estimação da soberana Rainha dos Anjos tenham melhor lugar os senhores que os escravos, os brancos que os pretos, e a humilde fortuna desta segunda irmandade que a nobreza da primeira”.170 Os argumentos vão se encontrar na descrição de fatos reveladores de que a Mãe de Deus também foi escrava:

... para prova de quanto a Virgem Maria ama e estima os escravos, e não despreza este nome, não tenho menos que três testemunhos, todos os três divinos: o de Deus, o do filho de Deus e o da Mãe de Deus. Comecemos por este último. [..] Quando o Anjo trouxe embaixada à Senhora, depois de lhe chamar cheia de graça e bendita entre todas as mulheres, lhe disse que seria Mãe de um Filho tão grande, que se chamaria Filho de Deus e herdaria o cetro de Davi, seu pai. E a Virgem que, sobre todos os títulos, estimava o de Virgem, depois de replicar o que podia fazer dúvida a sua pureza, as palavras com que aceitou a embaixada foram: Eis aqui a escrava do Senhor.171 [grifos meus]

Para um discurso cuja meta é manter a situação vigente, nada é mais eficaz como elemento de persuasão que apelar para testemunhos dessa natureza. Numa conjuntura em que até a Mãe de Deus “se orgulha de ser escrava”, por que um simples escravo haveria de não se resignar com sua condição, que, em função dessa nova referência, de fato, assume ares de nobreza, pois, com a Senhora se assumindo como escrava, abrem-se perspectivas para que os senhores e os escravos julguem, se ela estimará mais estes, que aqueles. E como se não bastasse, Vieira ainda persiste em sua empreitada, afirmando que com tal decisão “quis a Senhora por esta declaração antecipada, que o Filho, que havia de ser seu, como Filho de escrava, nascesse também escravo nosso”.172 [grifos meus] Dessa maneira, o discurso vieiriano reforça seu principal objetivo de persuadir pela via da equiparação, pois, novamente nota-se sua intenção de mostrar que com tão nobre referência de escravo, não havia motivos para o escravo negro não se convencer da nobreza de sua condição, demonstrando também que, à humildade e à baixeza impostas à condição em que se encontra, sobrepõem-se uma virtude e uma excelência que na Mãe de Deus foram sumamente perfeitas.

Compondo o conjunto de estratégias discursivas próprias do fazer literário de Vieira, especificamente, neste sermão, destaca--se um repositório de autênticos elogios que, da forma que são direcionados a negros e a escravos, e em detrimento de brancos e senhores, revelam com nitidez, o diálogo que o texto estabelece com outros de natureza histórica:

Comparai-me agora aqueles filhos das senhoras com estes das escravas, e naqueles achareis imprudências e ignorâncias, nestes a prudência; naqueles injustiças e tiranias, nestes a justiça; naqueles intemperanças e graves excessos, nestes a temperança. Não há dúvida que o senhorio e liberdade é mais aparelhada para os vícios, e a obediência e sujeição mais disposta para as virtudes. (sic)173 [grifos meus]

Ou usando de maior abrangência e maior objetividade:

... e não seria maravilha que a Mãe de misericórdia, que tanto favorece os miseráveis, fizesse esta justiça. Como se dissera: Já que vós − ó brancos − tanto desprezais o nome de escravos, tendo-me eu chamado escrava, e tanto abateis a cor preta, tendo-me eu honrado da mesma cor, e tão pouco vos compadeceis da fortuna dos miseráveis, sendo eu sua protetora, venham os miseráveis, venham os escravos, venham os pretos para o jardim do meu Rosário, e separem- dele os brancos. 174 [grifos meus]

À medida que dessa forma age, Vieira fortalece uma situação instituída, e como compensação, ainda constrói ao redor de si mesmo, uma imagem de defensor dos fracos e dos oprimidos, como encontramos vigendo ainda hoje no imaginário do pensamento literário brasileiro, traduzida em passagens significativas como as que sugerem que “nem se diga que Vieira foi insensível ao escravo negro preterindo-o no ardor da defesa ao indígena”.175 Este e outros argumentos são sustentados justamente pela sua capacidade em equiparar os sofrimentos dos escravos aos sofrimentos de Cristo, como tônica do Sermão da XIVª, que assume foros de um sectarismo conservador quando se verifica que os destinatários eram os próprios negros.

Distorcendo totalmente o conceito de escravo e de escravidão e insistindo na ideia de que não vale a pena ser branco e muito menos ser senhor, pois, junto às instâncias divinas esta é uma condição que implica desprezo, vileza e miséria da fortuna, Antonio Vieira inverte a visão desferida sobre o tradicional conceito de lógica binária, − largamente utilizado por ele mesmo −, e trata a questão como se, neste caso, para o mundo prático, bom é exatamente o que é ruim. Nessa perspectiva, no Sermão da XXª ele se revela como autor de uma proposta que se coloca a serviço da classe dominante, a partir da utilização de um discurso muito menos retórico que embusteiro.

Concluindo as discussões apresentadas pelo Sermão da XXª, adentro a tessitura do Sermão da XXVIIª, considerando-o como representante mais contundente de situações que uma manifestação literária se situa como locus de enunciação de discursos que corroboram propostas não-estéticas, apesar da eminência do seu teor artístico. Configurando o último momento de uma trilogia em que Vieira se dirige aos escravos, este sermão constrói as passagens mais marcadamente caracterizadas pela incoerência, pelo retorismo e pelo desprezo à condição humana. Acima de tudo, ele traz as marcas de uma predisposição férrea no sentido de manter o negro exatamente aonde e como ele se encontrava: no cativeiro, vivendo sob as crueldades da escravidão.

Incoerente, porque, desta feita, o escravo já não é mais aquela figura “privilegiada” de antes. Agora os motivos pelos quais ele deve ser indiferente a sua própria adversidade deixam de ser aqueles que faziam do senhor uma figura insignificante diante de sua “excelsitude”, ou os que o colocavam no mesmo patamar de Cristo. Na conjuntura proposta pelo Sermão da XXVIIª, muito embora ela também seja construída com base em pressupostos sagrados, o escravo tem diante de si um senhor que deve e precisa ser servido sim, porque servir é inerente ao escravo e é pelo servilismo que ele se tornará um homem livre. Incoerente, por uma questão de organização interna do discurso, na qual, estrategicamente, Vieira joga, não se definindo como contrário à escravidão, como por vezes dá a impressão de ser, por aparentar se contrapor, inclusive, à própria Igreja...

[...] mas que Teologia há ou pode haver que justifique a desumanidade e sevícia dos exorbitantes castigos, com que os mesmos escravos são maltratados? Maltratados, disse, mas é muito curta esta palavra para a significação do que encerra ou encobre. Tiranizados, devera dizer, ou martirizados, porque serem os miseráveis pingados, lacrados, retalhados, salmourados, e os outros excessos maiores que calo, mais merecem nomes de martírios que de castigos.176 [grifos meus]

... nem se definindo como favorável a ela, como às vezes dá a impressão de se posicionar, como nos momentos em que recorre a alegorias que são verdadeiras preciosidades ...

... pois, se os cetros e coroas não livraram do cativeiro a tantos reis, e, depois de adorados dos seus vassalos, se viram escravos dos estranhos, estas voltas tão notáveis da roda da fortuna vos devem consolar também na vossa. Se isto sucede aos leões e aos elefantes, que razão podem ter de se queixar as formigas? Se estes, nascidos em palácios dourados e embalados em berços de prata, se viram cativos e carregados de ferros, vós, nascidos e criados nas brenhas da Etiópia, considerai as grandes razões que tendes para vos compor com a vossa fortuna, tanto mais leve, e levar com bom coração os descontos dela. O que haveis de fazer é consolar-vos muito com estes exemplos, sofrer com muita paciência o trabalho do vosso estado, dar muitas graças a Deus pela moderação do cativeiro a que vos trouxe, e, sobretudo, aproveitar-vos dele para o trocar pela liberdade e felicidade da outra vida, que não passa, como esta, mas há de durar para sempre.177 [grifos meus]

... levando o texto a se desdobrar de forma a atender a essas duas leituras possíveis, gerando uma situação inusitada em que ele, curiosamente, parece se apresentar como uma manifestação duplamente panfletária, quando, de fato, só o é no sentido de atender à manutenção do establishment.

Mais uma vez, Vieira inicia apelando para uma construção alegórica. Considerando a fuga dos judeus do Egito, como uma saída da África para a Ásia, tal qual a fuga de um cativeiro, e interpretando a travessia do mar Vermelho como a conquista do êxito, ele vê a saída da África para a América como sendo um acontecimento que proporcionou aos africanos uma passagem para viverem e morrerem cativos, concluindo que “os outros nascem para viver, estes para servir”.178

Tomando por base o episódio bíblico envolvendo os judeus, o qual Vieira explora sob o conceito de transmigração, ele estabelece um paralelo com o episódio envolvendo os escravos, e, com a finalidade de atender a interesses metodológicos, dispensa a este fato a mesma conceituação. Na visão de Vieira, que prefere tratar o acontecimento como elemento próprio da conjuntura bíblica, a fuga dos judeus implica duas transmigrações: uma, que se configura no ato da fuga do Egito para a Ásia, e outra, que ocorre como consequência desta, que no caso, é a liberdade conquistada. No caso dos escravos, a transmigração também é dúplice, com a primeira se configurando de forma análoga ao caso anterior, ou seja, na saída da África para a América, e com a segunda transmigração acontecendo também em forma de liberdade, uma liberdade que, no entanto, para os escravos só viria a se materializar na vida eterna, desde que, para conquistá-la, o escravo se comprometesse a cumprir determinações impostas por princípios religiosos, a exemplo de ter de servir seus senhores sob condições e circunstâncias quaisquer. Quanto a isso, Vieira afirma estar, sem dúvida, convencido de que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado pela misericórdia da Senhora do Rosário, advertindo, porém, que para os escravos, a conquista da liberdade da segunda transmigração continuava presa a determinações de instâncias sagradas. É este o ponto sobre o qual o Sermão da XXVIIª incide seu foco, pela utilização de um discurso que explora possibilidades de manter um quadro inalterado em toda sua dimensão social, sobretudo pela manutenção do escravo num nicho que os segmentos hegemônicos entendem que ele não devia deixar de ocupar, caracterizando uma condição sempre marcada pela presença de justificativas que, pelo caráter religioso que apresentam, impõem-se como axiomas:

Vós sois os irmãos da preparação de Deus, e os filhos do fogo de Deus. Filhos do fogo de Deus na transmigração presente do cativeiro, porque o fogo de Deus neste estado vos imprimiu a marca de cativos; e, posto que esta seja de opressão, também como fogo vos alumiou juntamente, porque vos trouxe à luz da fé e conhecimento dos mistérios de Cristo, que são os que professais no Rosário. Mas, neste mesmo estado da primeira transmigração, que é a do cativeiro temporal, vos estão Deus e sua Santíssima Mãe dispondo e preparando para a segunda transmissão que é a da liberdade eterna. Isto é o que vos hei de pregar hoje, para vossa consolação. E reduzido a poucas palavras, será este o meu assunto: que a vossa irmandade da Senhora do Rosário vos promete a todos uma carta de alforria, com que não só gozeis a liberdade eterna na segunda transmigração da outra vida, mas também vos livreis nesta do maior cativeiro da primeira. 179 [grifos meus]

Toda a discussão que envolve a conformação do Sermão da XXVIIª, em termos práticos, verdadeiramente se sustenta na defesa de uma tese, segundo a qual, ninguém é escravo por completo, ninguém é escravo na plenitude de sua essência, tendo em vista a absoluta impossibilidade de se conseguir imprimir esta condição sobre quem quer que seja, pelo fato de o homem tratar-se de um ser dual, composto de corpo e alma. Nessa perspectiva, a possibilidade da escravização só pode recair sobre o corpo, que é uma entidade física, material, jamais sobre a alma, sua porção subjetiva e abstrata. Respaldado nesse pressuposto metafísico, Vieira desenvolve toda sua discussão, a partir do emprego de uma habilidade retórica, perspicaz e sutil, que confere ao discurso as características já citadas, acerca de uma feição dúbia que este assume, introduzindo no seu desdobramento, uma espécie de jogo, todavia, sem dar a impressão de estar numa encruzilhada dos talvezes.

Uma vez instituída essa ideia, Vieira busca comprovações no sentido de convencer o escravo negro de que ele não deve ter qualquer tipo de preocupação com o seu status, por se tratar de um status irreal, intangível, desprovido de consistência física. Partindo desse pressuposto, insinua que não há por que se sentir escravo quando se é apenas meio-escravo, e insiste nessa linha de raciocínio, fazendo dela uma autêntica cláusula pétrea, pelo oportuno recurso a digressões:

... de maneira, irmãos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais duro e áspero que seja ou vos pareça, não é cativeiro total, ou de tudo que sois, senão meio cativeiro. Sois cativo naquela ametade exterior e mais vil de vós mesmos, que é o corpo, porém, na outra ametade interior e nobilíssima, que é a alma, principalmente no que a ela pertence, não sois cativos, mas livres.180 [grifos meus]

A epítome do Sermão da XXVIIª mostra que, em sua essência, o texto é desta forma, quer ser assim, busca a possibilidade de se impor pela via da produção sistemática, de métodos que se tornam coercitivos, à proporção que se repetem incessantemente, dizendo sempre o mesmo, procurando vencer pelo cansaço e nada inovando quanto a sua proposta básica de provar que o cativeiro maior é o da alma. A pregnância desses elementos no texto traduz esta forma de pensar, embora nenhum deles traga qualquer tipo de fato novo. Entretanto, uma passagem que não pode deixar de ser citada, sobretudo por sua capacidade em concentrar toda a dimensão do pensamento dominante, diz respeito a mais um momento de digressão em que Vieira se dirige aos escravos de maneira peremptória:

Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos senhores, não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos. − Esta é a suma do preceito e conselho que lhes dá o Príncipe dos Apóstolos, e logo ajunta as razões, dignas de se darem aos mais nobres e generosos espíritos. Primeira: porque a glória da paciência é padecer sem culpa. Segunda: porque essa é a graça com que os homens se fazem mais aceitos a Deus. Terceira e verdadeiramente estupenda: porque nesse estado, em que Deus vos pôs, é a vossa vocação semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar. 181 [grifos meus]

Tudo se esclarece no final da leitura, embora a trilogia vieiriana dissimule os traços que sinalizam para a existência de um discurso que veio com o fim de manter o establishment, através da utilização de estratégias discursivas que a todo o momento visam o vilipêndio da condição humana de uma gente. Compondo um autêntico cipoal de recursos, a pregnância deles nos sermões examinados transita do apelo ao cultismo ao apelo à ideologia, passando por outras formas estratégico-discursivas como o conceptismo, a metáfora, a alegoria, o silêncio, o binarismo maniqueísta e a retórica, sem se esgotar aí. Ao finalizar a análise dos Sermões da XIVª, da XXª e da XXVIIª, diria que eles reproduzem com fidelidade, o pensamento social dominante no Brasil, e que, nessa arena, a ele, Padre Antonio Vieira, coube engendrar um discurso que, pela via da religiosidade, teve, precipuamente, uma dupla incumbência: a primeira, manter inalterável o panorama social em toda a sua dimensão; a segunda, manter constantemente sobre a cabeça do escravo, uma espada semelhante à de Dâmocles.

***

4.4 - Macedo: as vítimas duplamente vítimas

Um salto no tempo nos retira do século XVII e nos coloca de frente com a produção literária do século XIX, da qual um dos representantes eleitos trata-se de As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, de Joaquim Manoel de Macedo.

A passagem de dois séculos sempre representa mudanças, porém, no que diz respeito à presença do negro no tecido social, se pensarmos na sua inserção e assimilação por parte da classe dominante, veremos que quase nada mudou. Em alguns aspectos a tensão social até recrudesceu, influenciada que foi por entraves à continuidade do tráfico negreiro, pela aproximação de uma Abolição que se fazia inevitável, por pressões políticas de abolicionistas e negros libertos, e, principalmente, por um quadro político-internacional que já se declarava avesso àquele modus operandi. Até mesmo os próprios escravos passaram a agir de maneira a comprovar que, àquela altura dos acontecimentos, a escravidão começava a viver um irreversível processo de distanásia.

A leitura de As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão nos coloca em contato com um dos textos mais expressivos daquele século, e, seguramente, o que apresenta o discurso mais bem elaborado no sentido ora tratado, não só na Literatura da época, mas na Literatura brasileira de forma sistêmica. Chega--se à percepção desta característica discursiva, sobretudo pelas ações de um narrador dotado de uma onisciência e uma intrusão pouco comuns, condições que se acentuam ainda mais quando associadas a vozes narrativas, artifício estético ainda não muito disseminado naquele período. Este elemento do discurso, a tal ponto, desfocaliza a imagem do homem negro, que merece que se lhe dedique um tratamento especial, capaz de dimensionar suas ações e as implicações causadas por ele. Outro dado que enriquece a obra, dentro das características em destaque, é o investimento feito em curiosos aspectos estéticos, a exemplo das peculiaridades dos nomes de personagens, o que acaba se configurando como recurso fundante da cumplicidade existente entre Literatura e classe dominante.

Composta por três narrativas distintas e independentes, Simeão: O Crioulo, Pai-raiol: O Feiticeiro e Lucinda: A Mucama, a obra de Macedo é a síntese do esmero da proposta de estigmatizar o negro a partir de um sentimento obsessivo: mostrar que a escravidão é um grande mal cometido pela espécie humana, pela capacidade que possui para engendrar vítimas que são algozes em potencial. Todas as três histórias denotam uma verdadeira obsessão em promover ataques à escravidão e em postular sua imediata eliminação, entretanto, a linguagem utilizada por elas não se coaduna com este leitmotiv, e faz dele, meio de revelação da essência dos escravos, no que diz respeito àquilo que a história entende como sendo seus atributos. O interesse dissimulado em causar prejuízos à imagem do escravo materializa-se no realce de peculiaridades das mais degradadas e degradantes possíveis, como propõe o narrador de Simeão: O Crioulo ao afirmar que “o escravo é a matéria-prima com que se preparam crimes horríveis que espantam nossa sociedade”.182

A uma obra que alardeia ter por objetivo o mapeamento das ignomínias cometidas pela escravidão, não se permite a tentativa de atingir o escravo, fazendo da escravidão uma atividade unipolar, concentrando as discussões e sua argumentação apenas no polo representado por ele. Ora, já se demonstrou que, para que haja escravo é imprescindível a existência do escravocrata, e nessa perspectiva, não é plausível que o sistema escravagista seja tratado como se fosse uma coisa capenga, inclinada para um lado, porque não é esta a realidade dos fatos, e muito menos, a visão que o texto, primariamente, anuncia veicular. Na mesma proporção que a escravidão engendra um escravo, ela engendra um escravocrata, e as reações do escravo acontecem na razão direta das ações que lhe imprime o escravocrata. Portanto, penso não haver lisura num processo que pretende promover, sobre a escravidão, a execução de uma radiografia que reproduza uma imagem desfocada, de elementos básicos à compreensão do mesmo. Esta linha de raciocínio descredencia passagens do texto que visam convencer o leitor de questões que, embora amplas, profundas e discutíveis, apresentam-se como expressão da verdade. Mais uma vez, manifestações parciais e explícitas do narrador representam o que há de mais contundente nessa proposta, a exemplo da sua afirmação de que “a escravidão gasta, caleja, petrifica, mata o coração do homem escravo,”183 o que revela um narrador que concebe a escravidão como uma abstração e não como um organismo vivo, resultante da soma das atitudes de homens responsáveis por sua implantação, exploração e efeitos práticos.

Esta obra de Macedo representa o que há de mais completo e agudo em se tratando de tessitura literária, que de maneira escancarada, plasma o negro, contribuindo para a manutenção do status quo, e do ponto de vista de fazer eco para o discurso não-estético, reforça a construção do habitus do homem branco, sobretudo pela total ausência de contraponto. Na sua conformação, o destaque maior vai para o escravo, elaborado por estratégias discursivas já conhecidas, e, além delas, com muita percuciência o texto explora outra, como é o caso do poder iconoclasta do narrador. Nada mais oportuno, portanto, que iniciar pelo narrador a apresentação dos elementos que fazem de As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, referência ímpar de defesa dos interesses da classe dominante, pela via da expressão artística.

Embora independentes do ponto de vista da construção interna, notamos que um fio condutor perpassa as partes constitutivas do todo macedeano, Simeão: O Crioulo, Pai-raiol: O Feiticeiro e Lucinda: A Mucama, aproximando-as e unificando-as segundo uma perspectiva temático-ideológica. Nessa trilogia, já no prólogo, o narrador fornece ao leitor uma espécie de prolepse, não só no que diz respeito ao conteúdo, mas, também, e, sobretudo, a respeito de seu próprio comportamento. Por conta disso, ele começa a se fazer notar e a surgir como um elemento estrutural da narrativa, digno de atenção especial, pela presença de uma voz narrativa na primeira pessoa do plural, sem configurar plural majestático, não só porque não há espaço para esta noção, mas, principalmente, porque o próprio texto desfaz qualquer possibilidade de comportá-la, nas ideias que expõe:

 

... queremos agora contar-vos em alguns romances histórias verdadeiras que todos vós já sabeis [...]

Serão romances sem atavios, contos sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas a nossos olhos, e a que não poderá negar-vos o vosso testemunho.

Não queremos ter segredos, nem reservas mentais convosco.

É nosso empenho e nosso fim levar ao vosso espírito e demorar nas reflexões e no estudo da vossa razão fatos que tendes observado, verdades que não precisam mais de demonstração, obrigando-vos deste modo a encarar de face, a medir, a sondar em toda sua profundeza um mal enorme que afeia, infecciona, avilta, deturpa e corrói a nossa sociedade, e a que a nossa sociedade ainda se apega semelhante à desgraçada mulher que, tomando o hábito da prostituição, a ela se abandona com indecente desvario. 184 [grifos meus]

As ideias que o narrador propõe no prólogo confirmam-se ao longo das narrativas, e nestas, no que se refere à esfera de suas ações, ocorre uma sintomática mudança de natureza formal, ou seja, seu foco narrativo deixa de representar uma voz plural como fizera até então, e assume uma postura de terceira pessoa onisciente intrusa. Entretanto, a despeito da alteração sofrida pelo comportamento do narrador, quanto à maneira como ele se posiciona no prólogo, as narrativas conservam, e por vezes, nelas ganha mais espaço ainda, a possibilidade de estarmos diante da ocorrência de uma voz autoral dentro do texto. A possibilidade da existência de um “eu” autoral projetando--se no interior da narrativa, − situação que também se apresenta no prólogo −, entre outras implicações oferece ao leitor, mais um acesso por meio do qual ele pode compor outros sentidos do texto, proporcionados, justamente, por uma imagem do autor empírico, criada pela escrita e transformada num mecanismo pelo qual o autor comanda movimentos do narrador, dos personagens, dos acontecimentos, do tempo e da própria linguagem utilizada. Nessa perspectiva, começa a se delinear como uma estrutura ainda mais incisiva, o conjunto de ações e de esforços desencadeados por um processo criativo que tem por fim, a deformação da imagem do negro, e através dela, a preservação de interesses hegemônicos das mais diversificadas naturezas. Se bem observado, já no prólogo o narrador deixa evidente que, embora se pronunciando na primeira pessoa do plural, sua manifestação não revela um caráter coletivo, tradutor de uma voz unissonante, mas, revela, sim, a voz de um “eu” que tem legitimidade para ser porta-voz de um segmento social. As três narrativas confirmam esta condição, e em alguns momentos, até com relativa clarividência:

Pobre escritor de acanhada inteligência, rude e simples romancista sem arte, que somente escreve para o povo, não nos animaremos a combinar planos de emancipação, nem presumidos de ciência procuraremos esclarecer o público sobre as altas conveniências econômicas, e as santas e irrecusáveis lições filosóficas que condenam a escravidão.

Como porém, é dever de cada um concorrer a seu modo, e nas suas condições, para o desenlace menos violento desse nó terrível, e servir à causa mais melindrosa e arriscada, porém indeclinável, que atualmente se oferece ao labor e à dedicação do civilismo, pagaremos o nosso tributo nas proporções da nossa pobreza, escrevendo ligeiros romances.185 [grifos meus]

Se qualquer tipo de nebulosidade, porventura, ainda persistir, quanto à existência de outra voz narrativa perpassando o texto, com certeza ela se diluirá diante da associação da citação anterior à que segue, de caráter semelhante:

O romance tem contra o seu legítimo fim comprometer a lição da verdade pelas prevenções contra a imaginação que deve ser exclusivamente a fonte de ornamentos da forma e de circunstâncias acessórias e incidentais que sirvam para dar maior interesse ao assunto; no seu fundo, porém, o romance precisa conter e mostrar a verdade para conter e mostrar a moral. Alto o proclamamos: também neste nosso romance há no fundo plena, absoluta verdade. 186 [grifos meus]

Esta passagem é sintomática e sem dúvida representa com proficiência o quanto a obra de Macedo é marcada pela presença do autor implícito. E é sintomática, também, no que diz respeito à proposta do texto em repercutir ideias e pensamentos dominantes, não só pela via da exploração das estratégias discursivas mais tradicionais, mas, sobretudo, pela presença tácita e pelas ações explícitas de um autor que se coloca em defesa dos interesses do segmento social do qual ele é integrante. Tal fato confere maior sustentação ainda à tese de que a obra é mais uma da Literatura brasileira a se configurar como um veículo a serviço de uma conjuntura socialmente instituída, que faz da obra, mecanismo de manutenção de sua posição hegemônica e de sua soberania. E é a partir do manuseio dessa ferramenta dupla-face que o texto, prioritariamente, lida com a questão do negro em Vítimas Algozes: ora contando com a cumplicidade do narrador, ora pelas intervenções do autor, mas, tanto de uma forma quanto de outra, sempre estabelecendo como escopo, a construção de uma imagem do negro que marque pela deformação.

No intuito de atingir suas metas é muito variado o leque de alternativas discursivas utilizadas pelo texto, e dentro desse repositório de estratégias apresentadas, destaco como prioritária a questão da falta de contraponto. As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, em sua inteireza são um texto quase que absolutamente desprovido de contraponto, na medida em que, em sua conformação, o negro é sistematicamente apresentado pela via da unilateralidade. Mesmo nos raros momentos de lucidez contrapontística o texto imediatamente se corrige, demonstra se autopoliciar, e ato contínuo, retoma sua linha de abordagem monofacetada, como acontece na narrativa Lucinda: A Mucama, no episódio em que Florêncio, a esposa Leonídia e os filhos Liberato e Cândida discutem sobre o capítulo final de A Cabana do Pai Tomás. Na oportunidade, Liberato, Cândida e a mãe Leonídia, ao contrário do pai Florêncio que reveste as palavras de ironia, demonstram ter uma visão um pouco mais ampla e diferenciada acerca da escravidão:

Leonídia e Cândida tinham lágrimas nos olhos.

[...] − Pois vocês choram por isso? − perguntou Florêncio.

− Meu pai − disse Liberato −, este romance concorreu para uma grande revolução social; porque encerra grandes verdades.

− Quais, meu doutor?...

− As do contra-senso, da violência, do crime da escravidão de homens, como nós outros, que nos impomos senhores; as da privação de todos os direitos, da negação de todos os generosos sentimentos das vítimas, que são os escravos; as da insensibilidade, da crueldade irrefletida, mas real, e do despotismo e da opressão indeclinável dos senhores.

− Admiravelmente, meu doutor: o tal romance, belo presente que fizeste a Cândida e que eu já tinha lido, mostra e patenteia o mal que os senhores fazem aos escravos. 187

Este é um dos raros momentos de toda a narrativa em que percebemos o esboço de uma possibilidade de abordagem contrapontística; no entanto, as palavras de Liberato não ecoam no episódio em questão, nem dentro do texto. Tão logo ele insiste na tentativa de querer mostrar outro lado da escravidão é imediatamente cerceado por Florêncio que, apelando para a autoridade paterna, proíbe o filho de continuar argumentando na linha em que desenvolvia seu raciocínio, e, uma vez o personagem impedido de falar, a narrativa retoma seu curso “normal”.

A ausência de contraponto não é uma presença isolada dentro da conjuntura textual, e no seu interior, ajuda a compor uma estrutura que se faz atuante, juntamente com uma profusão de elementos discursivos, todos empregados de forma a convencer sobre a imagem do negro que o texto quer plasmar, a começar pelos nomes próprios de alguns personagens mais expressivos. Aos personagens brancos, os nomes atribuídos têm sempre uma ligação estreita com aspectos próprios do polo positivo da divisão binária maniqueísta que vem sendo utilizada por esses textos, como linha de estratégia discursiva. É o que ocorre com nomes como Angélica, Florinda, Plácido, Florêncio, Liberato e Cândida, todos vinculados aos senhores e implicando conotação de bondade, serenidade ou beleza, qualidades que vão se apresentar, também, nas expressões empregadas para se referir a esses mesmos personagens, tais como: “a branca pureza da filha do senhor”,188 “a mulher que era ainda um anjo de inocência”,189 e “bom, afável e generoso.”190 Adjetivos correspondentes, também impregnam o texto em nível de ideias defendidas por argumentos dotados de maior amplitude:

Cândida era loura: seus finos cabelos caíam em anéis; tinha os olhos azuis e belos e o olhar de suavidade cativadora; o rosto oval da cor da magnólia com duas rosas a insinuarem-se nas faces, um céu alvo com duas auroras a romper; a boca, ninho de mil graças, era pequena, os lábios quase imperceptivelmente arqueados, lindíssimos, os dentes iguais, de justa proporção e de esmalte puríssimo, o pescoço e o corpo com a gentileza própria da sua idade, as mão e os pés de perfeição e delicadeza maravilhosas.191

E como esta linha é também comparatista, resta ao personagem negro ser alvo da aplicação de qualificativos que, pela intensidade e posição contrária à dos qualificativos empregados aos personagens brancos, contribuem para que sua imagem seja depreciada com um vigor que só expressões de grande poder de percuciência podem produzir. A depreciação a que me refiro vem atrelada a expressões como, “[...] posto o charco em comunicação com a fonte límpida”,192 “[...] a luta entre o anjo e o demônio; entre o gênio benéfico que se empenhava em salvar, e o gênio maléfico a quem convinha perder Cândida”,193 “[...] gênio do mal, a vítima- -algoz, a escrava desmoralizada, o demônio”,194 ou ainda “a escrava--demônio”.195

Ainda na trilha do apelo aos pares assimétricos utilizados com a pretensão de demonstrar uma noção de alteridade, e produzir através dela, a desconstrução do outro, deparamos com a revelação de uma curiosa linha de raciocínio defendida pelo narrador, marcada por um acacianismo nunca visto, mas que sedimenta a argumentação do narrador em todos os níveis. Curiosa, sim, apesar de não apresentar nada de surpreendente, pois, trata-se de uma visão dominante que todos sabemos existir e integrar o universo mítico de nossas tradições populares. A certa altura dos acontecimentos, o narrador dirige o foco de sua argumentação para o comportamento amoroso dos brancos, e em contrapartida faz o mesmo em relação aos escravos. Na sua visão, o amor é um sentimento que só os brancos são capazes de cultivar com a nobreza própria desta inclinação, e, sobretudo em sua versão carnal entre um homem e uma mulher, ele considera profundas as disparidades nos comportamentos de brancos e negros. Para ele, enquanto entre os brancos, numa atmosfera de troca e de perfeita simbiose, prevalecem o respeito, o carinho, a ternura e o romantismo, a relação amorosa entre negros se processa no terreno da estupidez, do desrespeito e da selvageria. Pensando assim, ele se mostra faccioso e indiferente ao significado do sentimento patriarcal empregado pelos senhores na sua relação conjugal. Da mesma forma, mostra não saber avaliar as investidas “amorosas” desses mesmos senhores sobre as escravas, onde muitas delas, meninas ainda, eram obrigadas a se submeter aos seus desejos animalescos. A despeito de toda essa realidade, o texto prefere trabalhar a desfiguração do outro pela valorização do eu:

O amor entre Hermano e Florinda era a harmonia suave de dous corações que se entendiam: aromas exalados por duas flores encontraram-se no espaço e misturaram-se na aura encantada a que dão o nome de amor.

Na vida e nas relações do campo que entre nós geralmente se chama a roça, o amor de dois jovens é simples, temeroso e poético; simples como os costumes da boa gente agricultora, temeroso como o pudor da donzela que é puríssima flor da solidão, poético porque suspira à sombra da árvore vizinha da estrada por onde espera ver e passar o cavalheiro desejado; porque medita e sonha junto à fonte solitária; porque a distância que sempre separa os amantes é mãe da saudade que chora lágrimas doces; poético porque a lembrança, a saudade, o desejo, o ciúme, os sofrimentos, o encontro, a confissão, e a esperança não têm artifício que o desnature, e toda natureza apura o seu encanto ao trinar dos passarinhos, ao murmurar do arroio, e ao ruído misterioso e romanesco do bosque.

Hermano e Florinda amaram-se com esse amor da roça. 196

Hermano e Florinda se amaram com esse amor quase platônico; já “os escravos não compreendem o amor platônico, nem os limites que as moças, hábil ou rudemente namoradeiras impõem ao galanteio dos seus namorados: para eles não há intrigas amorosas, nem cultos rendidos por cavalheiro à senhora, sem reservado cálculo físico, que somente a falta de ocasião contrasta”.197 Ao narrador, interessa promover a ideia de que o amor entre escravos não conserva nenhum dos pressupostos humanizados e humanizantes que se espera de uma relação amorosa entre um homem e uma mulher, como novamente observa:

Sabem todos o que é o amor entre escravos: a condição desnaturada desses exilados da sociedade, desses homens reduzidos a cousas, desses corpos animados a quem se negam direitos de sensibilidade, materializados à força, materializa neles sempre o amor: sem o socorro da poesia dos sentimentos que alimenta o coração e o transporta às regiões dos sonhos que se banham nas esperanças de santos e suaves laços, os escravos só se deixam arrebatar pelo instinto animal, que por isso mesmo os impele mais violento. 198

Outra incursão nesse sentido se manifesta no terreno da iconoclastia de caráter religioso ou mesmo secular. Senão, vejamos: as opiniões expostas pelo narrador relativas às religiões trazidas pelos escravos são de um absurdo que chega às raias da estupidez. De início ele insinua que a religião católica é a única verdadeira, e a partir desse pressuposto, constrói uma relação de antagonismo entre esta e as de origem africana, buscando sempre o destaque de aspectos das religiões africanas que, na sua maneira de ver, são nocivas às pessoas. A todo o momento o narrador demonstra que suas abordagens sobre o comportamento religioso dos escravos são desprovidas do mínimo embasamento teológico, e são exatamente iguais a todas as outras cunhadas em mitos e em crendices populares. Caindo num facciosismo pernicioso que destrói toda e qualquer intenção de alguém adotar para si, essa ou aquela religião e exercer com liberdade seu direito de pensar a vida espiritualmente, ele traz para o plano geral, impressões sobre práticas religiosas exercidas pelos escravos, moldadas de forma que possam ser vistas pela sociedade, como mais um motivo de reprovação, ao associar essas práticas religiosas a práticas de feitiçaria, de bruxaria ou da tão famigerada magia negra. As Vítimas Algozes, trilhando os caminhos da leviandade e da irresponsabilidade, reduzem um sentimento de religiosidade de facetas múltiplas, a uma noção única, semelhante à de caixa de Pandora, quando generalizam que “o feitiço, como a Sífilis, veio d’África”.199 Prosseguindo nessa linha o narrador se faz pronunciar de maneira bastante contundente, retomando métodos que fazem lembrar o Padre Antonio Vieira:

O escravo africano é o rei do feitiço.

Ele o trouxe para o Brasil como o levou para quantas colônias o mandaram comprar, apanhar, surpreender, caçar em seus bosques e em suas aldeias selvagens da pátria.

Nessa importação inqualificável e forçada do homem, a prepotência do importador que vendeu e do comprador que tomou e pagou o escravo, pôde pela força que não é direito, reduzir o homem a cousa, a objeto material de propriedade, a instrumento de trabalho; mas não pôde separar do homem importado os costumes, as crenças absurdas, as ideias falsas, de uma religião extravagante, rudemente supersticiosa, e eivada de ridículos e estúpidos prejuízos.

[...] Mas o africano vendido, escravo pelo corpo, livre sempre pela alma, de que não se cuidou, que não se esclareceu, em que não se fez acender a luz da religião única verdadeira, conservou puros e ilesos os costumes, seus erros, seus prejuízos selvagens, e inoculou-os todos na terra da proscrição e do cativeiro.

O gérmen lançado superabundante no solo desenvolveu-se, a planta cresceu, floresceu, e frutificou: os frutos foram quase todos venenosos.

Um corrompeu a língua falada pelos senhores.

Outro corrompeu os costumes e abriu fontes de desmoralização.

Ainda outro corrompeu as santas crenças religiosas do povo, introduzindo nelas ilusões infantis, ideias absurdas e terrores quiméricos.

E entre estes (para não falar de muitos mais) fundou e propagou a alucinação do feitiço com todas as suas conseqüências muitas vezes desastrosas.

E assim o negro d’África, reduzido à ignomínia da escravidão, malfez logo e naturalmente a sociedade opressora, viciando-a, aviltando-a e pondo-a também um pouco assalvajada, como ele.

[...] No Brasil a gente livre mais rude nega, como o faz a civilizada, a mão e o tratamento fraternal ao escravo; mas adotou e conserva as fantasias pavorosas, as superstições dos míseros africanos, entre os quais avulta por mais perigosa e nociva a crença do feitiço.

[...] O feitiço tem o seu pagode, seus sacerdotes, seu culto, suas cerimônias, seus mistérios; tudo porém grotesco, repugnante, e escandaloso.

[...] Soam os grosseiros instrumentos que lembram as festas selvagens do índio do Brasil e do negro d’África; vêem-se talismãs rústicos, símbolos ridículos.

[...] A bacanal se completa: com a cura dos enfeitiçados, com os tormentos das iniciações, com a concessão de remédios e segredos de feitiçaria mistura-se a aguardente, e no delírio de todos, nas flamas infernais das imaginações depravadas, a luxúria infrene, feroz, torpíssima, quase sempre desavergonhada, se ostenta.

[...] Saem dele o contágio da superstição, que é um flagelo, a aniquilação do brio, que é a ruína dos costumes e das noções do dever, a religião do mal, e o recurso ao poder de uma entidade falsa, mas perversa, que é a fonte aberta de confianças loucas, e de crimes encorajados por uma espécie de fanatismo selvagem, que por isso mesmo se torna mais tremendo e fatal.

[...] Essa prática da feitiçaria organizada, instituída com cerimônias e mistérios, embora repugnantes e ignóbeis, é uma peste que nos veio com os escravos d’África, que desmoraliza, e mata muito mais do que se pensa, e que há de resistir invencível a todas as repressões, enquanto houver escravos no Brasil, e ainda depois da emancipação dos escravos, enquanto a luz sagrada da liberdade não destruir todas as sombras, todos os vestígios negros da escravidão que nos trouxe da África as supertições, os erros, e as torpidades da selvatiqueza. 200 [grifos meus]

O narrador adota procedimentos semelhantes, quando sai do terreno religioso e penetra no terreno dos enfoques sobre questões de caráter profano. Quanto a aspectos relacionados com as tradições do povo negro e com suas referências culturais e históricas, traduzidas pelas ações e pelo pensamento de uma figura emblemática como Zumbi dos Palmares, sua contribuição se efetiva na forma distorcida com que engendra a imagem desse ícone. A mentalidade de crianças ainda em seus primeiros anos da infância é impactada na ficção, com o fim de causar o mesmo efeito na realidade:

Luís, o filho mais velho de Paulo Borges e Teresa, menino de quatro anos, tinha um dia visto chegar da roça o Pai-Raiol e desatara a chorar assustado; sua mãe correra a tomá-lo nos braços, e, perguntando- -lhe por que chorava, o pobre anjinho apontara para o feio escravo, e dissera a soluçar:

− É o zumbi... o zumbi...

O zumbi era um monstro negro e imaginário, herói sinistro de estúpidas e horríveis histórias, com que as escravas, em vez de entreter, assombravam o nervoso menino com a mais lamentável e perigosa inconveniência, o que aliás é infelizmente muito comum em nossas famílias. 201 [grifos meus]

Além de promover a destruição de uma referência da coletividade negra, o texto ainda atua como elemento construtor de uma situação que prejudica os escravos, em particular, e os negros, em geral, na medida em que atribui àqueles a autoria de ações deletérias que, na verdade, são da inteira responsabilidade da classe dominante, que mais uma vez, procurou transformar em criminoso aquele que de fato é vítima. Muito do que, negativamente, cercou a imagem de Zumbi até um passado bastante recente, e que em certa medida ainda persiste, foi plantado pelos detentores do domínio da situação e vai precisar de muitos anos ainda para que seja totalmente erradicado.

Muito embora uma visão mítica do negro esteja, naturalmente, embutida em quase todas as linhas de abordagens expostas pela narrativa macedeana, há momentos da conjuntura textual em que esse elemento se destaca de maneira prioritária. Algumas passagens que expressam com exatidão os efeitos desse mecanismo ocorrem na narrativa Pai-Raiol: O Feiticeiro, que entre as três narrativas componentes da obra é a que mais prima pelo investimento em demonstrar o quanto a prática da feitiçaria é indelével no escravo. Esta narrativa procura, ainda, comprovar a capacidade do escravo como um especialista na execução dessas atividades. Embora perpasse a obra como um todo, há momentos pontuais que especificam com maior nitidez as observações do narrador:

uma vez, Raiol conduziu Esméria ao bosque e parando em um lugar onde mais se cerrava o cipoal assobiou por vezes, imitando os silvos das serpentes; em breve acudiram uma depois de outra três cobras ameaçadoras (sic); o negro fixou os olhos sobre elas, e segurou junto da cabeça em uma que se enrolou em seu braço, depois deixou-a livre e assim enrolada, ameigou-a, tirou-a do braço, guardou-a no seio e por fim soltou-a no chão; e enquanto a crioula recuava tremendo de medo, repetiu o mesmo brinco, ou a mesma operação com outra cobra. 202

A insistência nessa proposta traça uma trajetória de Pai- -Raiol, cercada pela construção de mitos populares, como se vê em mais uma expressão do narrador:

− O Pai-Raiol pode muito, e sabe matar com os olhos: Esméria quer ver? [...]

A crioula não respondeu; mas o negro fixou os olhos na ninhada de pintainhos, como se os quisesse absorver nas órbitas.

O Pai-Raiol não tinha ideia alguma do magnetismo; mas extraordinariamente dotado de força magnética que só empregava para fazer o mal, sabia que lhe era fácil servir-se do olhado, adjetivo que exprime uma realidade que, por inexplicável à ignorância, põe em tributo de quiméricos temores a imaginação dos supersticiosos. 203 [grifo meu]

Segundo o narrador, Pai-Raiol ignora a força que tem; entretanto, é temido sob a alegação de deter um poder que lhe foi outorgado, muito mais por questões de ordem psicológica e até moral, do que propriamente pela acessibilidade produzida por uma realidade material. E, finalmente, se configura a representação mítica de Pai-Raiol, que em grande medida transcende sua individualidade e atinge a comunidade negra de forma sistêmica:

a escrava tornada senhora do desprezível senhor exasperava-se por continuar escrava do escravo mais hediondo; ela, porém, não ousava arrostar Pai-Raiol, o feiticeiro, o rei das serpentes, o demônio que matava de longe com os olhos...204 [grifos meus]

Uma das marcas estéticas de Vítimas Algozes, do ponto de vista da especificidade da obra como um artefato que se propõe a dispensar ao personagem negro o tratamento que lhe reserva, diz respeito ao discurso indireto livre a ele conferido ao longo da narrativa, chamando à atenção a incidência sistemática desse recurso. Entretanto, apesar da frequência com que ele se processa, há passagens no texto em que personagens negros são providos de discurso direto, e nessas oportunidades, até por acontecer esporadicamente, o que se verifica é o fato de que esta modalidade de discurso, que em princípio seria uma eficaz ferramenta para o negro se manifestar de forma impositiva, surge como mais uma estratégia discursiva que faz o negro depor contra si próprio:

Ninguém poderia ter marcado, nem o próprio Simeão seria capaz de determinar o dia em que lhe toldara as alegrias do coração inocente a primeira gota de fel destilado pela consciência da sua escravidão: Havia por ele na casa dos seus amorosos senhores um céu e um inferno: na sala o néctar da predileção e da amizade, na cozinha o veneno da inveja e o golfão dos vícios: na cozinha a negra má e impiedosa castigou-lhe as travessuras e exigências incômodas e apadrinhadas pelos senhores, repetindo-lhe mil vezes:

− Tu és escravo como eu.

E a negra enfezada e ruim perseguia o crioulinho estimado com a ameaça lúgubre de um futuro tormentoso:

− Brinca para aí, pobre coitado! Hás de ver como é bom o chicote, quando cresceres... 205 [grifos meus]

A citação anterior, além de atender de maneira objetiva à questão proposta pela presença do discurso direto, preenche também o requisito da construção de espaços racializados e racializantes, como espaços constitutivos e representativos de um espaço maior que é o da casa. Como o leitor pode perceber, os termos grifados, casa, sala e cozinha constituem exemplos dessa espacialização em categorias, de forma que à sala se dispensa uma concepção de espaço racial pertencente à classe dos senhores e de tudo e de todos que compõem sua esfera de pensamento, de ações e de visões de mundo. Nessa linha de pensamento, portanto, a cozinha é interpretada como o espaço destinado às pessoas de menor − ou quem sabe de nenhum? − valor social.

Conforme salientado no início das abordagens sobre Vítimas Algozes, esse texto com certeza é o que apresenta o mais bem elaborado discurso na Literatura brasileira no que diz respeito à proposta de dialogar com discursos não-estéticos, e, em consequência, é o que com maior profundidade contribui para manter condições hegemônicas em todos os níveis. Nessa perspectiva, se faz oportuno o destaque de uma estratégia discursiva das mais eficientes que se apresenta na obra que é o caso do estereótipo. A despeito dessa condição, julgo desnecessário trazer à luz um exemplo que traduza a performance desse elemento no texto, e, embora pareça incoerência não o fazer, assim decido, justamente pelo alto grau de pregnância desse elemento na tessitura da narrativa. O texto de Macedo é, por excelência, uma estrutura caracterizada pelo abuso do estereótipo no que diz respeito ao negro. Sendo assim, não há por que eleger este ou aquele momento de uma obra que, por esse aspecto específico, deve ser vista como um todo que é consequência de uma sucessão infindável de significações que têm esse caráter.

No momento em que insisto na tese de que a escravidão não engendrou apenas um homem negro, mas, também engendrou na mesma proporção, um homem branco que, inevitavelmente, precisa ser inserido no âmbito das discussões para que possamos dimensionar o assunto, judiciosa e criteriosamente, encerro as abordagens sobre a obra macedeana. Faço-o, entretanto, destacando uma passagem que nos dá a referência exata de uma visão que transcende individualidades e reflete pensamentos coletivos, representativos do domínio da situação geral. O que traduz esta situação de forma precisa é o diálogo que, logo após a morte de seu marido Domingos, Angélica estabelece com o genro Hermano e a filha Florinda:

− Eu tinha um desejo, meu filho; mas não o realizarei sem a sua aprovação.

− Aprovo-o desde já: qual é ele?

Dar amanhã a liberdade a Simeão.

Florinda apertou a mão do marido.

− Excelente ideia! Respondeu Hermano. − Ele é, com perdão das senhoras, um escravo desmoralizado, e talvez seja por exceção ou milagre um liberto de bons costumes.

− Aprova então?

− Sem dúvida; mas devo dizer que só ele perderá com o beneficio que lhe quer fazer: perdão outra vez; Simeão está mal preparado para ser feliz com a liberdade; entretanto a liberdade é santa e regeneradora. 206 [grifos meus]

Em princípio, parece inconcebível a ideia de que alguém possa pensar na possibilidade de uma pessoa vir a se prejudicar ao obter a própria liberdade, baseando-se no pressuposto que a pessoa em questão estaria despreparada para viver uma condição, tão naturalmente imprescindível à espécie humana. No entanto, tal forma de pensamento e de mundividência começa a fazer sentido quando o cenário, os atores e a conjuntura social que abrigam esses elementos, se entrelaçam harmoniosamente, como se verifica no Brasil, entre a classe dominante e os imperativos impostos por ela. Nessa dimensão, não só começam a se tornar mais claras as palavras do personagem Hermano, como também começam a ser divisadas com maior nitidez, as palavras de Clarice Lispector, ao observar que, “se a liberdade é só o que se conquista, se me dão a liberdade, me mandam ser livre”.

Na conjuntura literária de As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, a Literatura brasileira trata os negros como algozes, e, indiscutivelmente, tratá-los como algozes, tomando por base o âmbito de uma conjuntura social caracterizada por uma crueldade exposta, como é o caso da escravidão ocorrida no Brasil, é alçá-los por uma segunda vez, à categoria de vítimas.

***

4.5 - Alencar e o mundo de faz-de-conta

Desviando o foco das discussões para a obra O Tronco do Ipê, de José de Alencar, veremos que, nela, de forma mais objetiva, a presença do personagem negro se faz marcante e decisiva na figura do pai Benedito, personagem quase-protagonista, na medida em que é ele quem detém a chave da elucidação do mistério que envolve a morte do pai de Mário, protagonista e pivô da questão em torno da qual se desenvolve toda a trama. Embora outros personagens também conheçam a verdade dos fatos, pai Benedito é a única testemunha dos acontecimentos, condição que se associa a uma forte relação de amizade e carinho recíprocos existente entre Mário e ele, de onde advém sua importância como elemento determinante no desenrolar da história. É por isso que o narrador esclarece que, na concepção de Mário, “esse negro era o único para quem sua alma se abria. Sem dúvida amava ele mais a sua mãe; porém o coração se recatava dela, e difundia-se no seio do velho africano”.207 Eis uma visão prévia da figura de pai Benedito.

Outro aspecto do texto de Alencar que assume um papel determinante como parâmetro das discussões levantadas é o foco narrativo que se faz representar por um narrador em terceira pessoa onisciente intruso, que não se satisfaz em se posicionar apenas ao nível da intromissão verbal. O que impressiona nele é a sua capacidade de se “materializar” num “eu” que rompe com o distanciamento natural nesse tipo de ponto de vista, e ganha status próprio de personagem:

É natural que já não exista a cabana do pai Benedito, último vestígio da importante fazenda Há seis anos ainda eu a vi, encostada em um alcantil da rocha que avança como um promontório pela margem do Paraíba.

Saía dela um preto velho. De longe parecia-me um grande [...]208 [grifos meus]

A narrativa inicia a partir da presença de pai Benedito e termina com a presença e as ações dele, embora ao longo de seu desdobramento o texto não o contemple com linearidade, ou seja, apesar de sua dimensão como personagem, ele vive momentos de absoluto ostracismo. A despeito dessa condição, o texto necessita dele para se realizar como artefato literário, e em que pese sua ausência na parte central da obra, a estrutura narrativa não se formaliza sem sua presença.

O tronco do Ipê, como parte restante de uma árvore, é um dos pilares da obra, e pensar nele, implica pensar em pai Benedito. Por consequência, pensar em pai Benedito significa pensar a própria obra, porque com ela sua figura se imiscui numa recíproca e perfeita simbiose.

A contribuição que essa narrativa de Alencar presta à manutenção do pensamento dominante, no que diz respeito à visão instituída sobre o negro, sobre a escravidão e sobre a formação do habitus do homem branco, encontra sentido no tratamento dispensado pelo narrador aos escravos participantes da trama: pai Benedito e sua esposa Tia Chica, o pajem Martinho, as pretas Eufrosina e Felícia, algumas mucamas, e, sobretudo, à figura de pai Inácio, um negro escravo que antecedera pai Benedito na habitação da cabana em que, agora, este mora. Fundamentalmente, os personagens negros são marcados por um contorno mítico, são estereotipados, construídos como seres passivos e resignados com a condição de escravos, e compõem o segmento representante do polo negativo de uma lógica binária que ajuda a estruturar a obra, ideologicamente. Apesar de assinalados por momentos de demonização, curiosamente são dotados de discurso direto, convindo destacar que, sempre que providos de voz, confirmam ainda mais o que o texto contra eles depõe, como se verifica no diálogo ocorrido entre Martinho e Eufrosina, que será reproduzido oportunamente. Quando assim não ocorre, a narrativa lhes confere discurso indireto livre.

Já nos primeiros momentos do capítulo I, a descrição da Casa-Grande da antiga fazenda Nossa Senhora do Boqueirão revela toda a dimensão da soberania, da autossuficiência e do poderio dos senhores. Em contrapartida, o que sobre eles se expressa poeticamente, com naturalidade significa a expressão prosaica da vida vivida pelos escravos: “a casa de habitação chamada pelos pretos Casa grande, vasto e custoso edifício, estava assentada no cimo de formosa colina, donde se descortinava um soberbo horizonte”. 209

Como se vê, a própria localização da Casa-Grande, por si só, já simboliza poder, domínio, visão ampla e de cima para baixo, dimensionando a posição, tanto de senhores quanto de escravos, e insinua que a instituição da escravidão, representada pela multivalência da Casa-Grande, é um estado que, para ser mantido, requer comprometimento. Esta é uma das poucas passagens do texto em que o objetivo de manter a hegemonia se faz acompanhar de certa dissimulação, porque, a partir de então, não se nota compromisso algum, nem qualquer tipo de preocupação com o velamento de posições tomadas em favor do quadro vigente, as quais se dão às escâncaras.

Na esteira dessa descrição, destaca-se uma atmosfera mítica criada ao redor do negro. A própria narrativa se incumbe de responsabilizar por sua construção, um processo de demonização desencadeado pelas beatas do lugar. Elas atribuem às práticas religiosas dos negros, toda sorte de ruína que por ventura se abata sobre aquela região, por entenderem como feitiçaria as práticas religiosas por eles desenvolvidas. Naquela conjuntura social, as beatas e as pessoas em geral veem o tronco do Ipê como expressão das práticas religiosas dos escravos, todas elas cercadas de uma nebulosidade mística e mítica, que se traduz no medo proveniente de crendices infundadas. Considerando que em sua extensão, o texto é perpassado por este tema, o tronco do Ipê se consagra como ponto de localização, como elemento da natureza e até como espaço, todos geradores de uma ambiência trágica, de mau agouro, de infortúnio, e é lógico que nessa perspectiva, os responsáveis por tanta adversidade só poderiam ser os escravos.

Como dito anteriormente, pai Inácio foi o morador que antecedeu pai Benedito na moradia que ficou conhecida como cabana do pai Benedito, e por isso, a associação a mitos populares e um processo de demonização se encarregam de difundir, que este herdara daquele, todo o conhecimento de práticas da chamada magia negra. Portanto, começa a ser adotada a partir dessa premissa, uma linha de ação que vem com o objetivo de construir uma imagem do negro, sustentada na ótica de que todos eles são adeptos de práticas de feitiçaria, e de tudo o que promove o mal do próximo:

Esse primeiro dono foi um negro cambaio, que ali viveu desde tempos remotos, quando a fazenda não passava de uma roça à-toa com um velho casebre e alguma plantação de mandioca. O aspecto disforme do negro, e o isolamento em que vivia naquele sítio agreste em meio de ásperos rochedos, incutiram no espírito da gente da vizinhança a crença de que o pai Inácio era feiticeiro. Realmente ele tinha todos os traços que a superstição popular costuma atribuir aos bruxos. Desde então nenhuma catástrofe se deu por aquela redondeza, nenhum transtorno ocorreu, que não fosse lançado à conta da mandinga do negro. 210 [grifos meus]

Como sucedeu pai Inácio na moradia da mesma cabana, pai Benedito herdou a reputação de feiticeiro, que as beatas do local se prontificaram em lhe outorgar, e desse estigma ele não mais se livrou. Por força de um artifício narrativo que altera a linearidade temporal, já no início da obra, percebe-se que o narrador faz alusões à última imagem que tem de pai Benedito, comparando-a à de um preto velho parecido com

um grande bugio negro, cujos longos braços eram de perfil representados pelo nodoso bordão em que se arrimavam. As cãs lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão. Era este, segundo as beatas, o bruxo preto, que fizera pacto com o Tinhoso; e todas as noites convidava as almas da vizinhança para dançarem embaixo do ipê um samba infernal que durava até o primeiro clarão da madrugada. 211 [grifos meus]

Pela fantasiosa via do mito, o texto penetra no terreno do estereótipo, e dessa forma, o narrador constrói uma espécie de estereótipo às avessas, se é que assim podemos raciocinar. É dessa maneira que ele se comporta, sobretudo quando trata pai Benedito como “um feiticeiro de bom coração”,212 um escravo “sempre tido como bom cativo”213 e “um feiticeiro de bom agouro,”214 que só empregava seus conhecimentos para o bem. Enfim, dessa feita, o narrador se esmera para mostrar que pai Benedito é “um preto de alma branca.” Ora, a atribuição dessas “qualidades” a pai Benedito faz dele uma exceção entre os negros e entre os feiticeiros, que na visão proposta pelo texto, todos os negros, em princípio são. Nesse caso, tudo o que lhe é inerente, por ser “positivo”, não o é a sua raça, mas, somente a si, o que quer dizer que ele é diferente dos seus. Com esta proposta analítica, a narrativa, contraditoriamente e na busca da preservação de interesses dominantes, consegue fazer com que um escravo negro integre o polo positivo de uma lógica binária maniqueísta, que a própria classe dominante não tem interesse em alterar. Por isso, o narrador prossegue na sua análise, concluindo que pai Benedito é um “bom preto,” que se expandia de júbilo quando se encontrava com Mário e este o saudava,− como podemos perceber −, ainda que à base de chacotas:

− Viva papai Benedito, gritou Mário.

− Viva!... berrou o Martinho dando no ar uma cambalhota.

− Viva o rei do Congo!

− Viva! Responderam todos.

Obrigado, meu branco, obrigado.

− Isto dizia o preto descendo a ladeira e parando a cada passo para curvar-se, abrindo os braços e beijando as duas mãos em sinal de agradecimento.

Este meu nhonhô quer zombar de seu negro velho!... Zomba, zomba, não faz mal! Eu gosto de ver você contente, contente, rindo com a camaradinha. 215 [grifos meus]

E da mesma maneira oportuna e estratégica que faz ao longo de toda a narrativa, o narrador modela pai Benedito, afirmando que no sentimento do velho escravo negro “ser motivo de alegria para esse menino que ele adorava, não podia ter maior satisfação a alma rude, mas dedicada do africano”. 216 [grifos meus]

No diálogo anteriormente citado, ocorrido entre Mário e pai Benedito, o acesso deste ao discurso direto, que entendo ser raro nas narrativas que apresentam o negro como personagem, demonstra o quanto essa modalidade de discurso é utilizada, também neste caso, como forma de especificar condições e circunstâncias que vão ao encontro de propostas discursivas da natureza das que estão sendo tratadas. A presença deste discurso reforça a ideia de que, à proporção que se confere voz a um personagem, tradicionalmente desprovido dela, o que se realça é a depreciação de sua imagem por si mesmo. Esta passagem de O Tronco do Ipê, de forma aguda traduz essa predisposição do texto, elaborada sempre intencional e artificiosamente, fazendo com que a quase absoluta ausência de discurso direto conferido a personagens negros, desta feita, seja preenchida com este tipo de discurso, sim, mas com o objetivo explícito de produzir efeitos contrários. Esta e outras passagens mostram que, embora provido de voz, o que se vê é o personagem negro dotado de uma fala sempre revestida de conteúdos que se voltam contra sua própria imagem. Esses mecanismos fazem com que o próprio personagem aumente ainda mais o grau de demonização já existente sobre si, e dê mais consistência à formação do habitus, além de fortalecer pseudoexpectativas criadas pela classe dominante, como proporciona o diálogo que traduz um desentendimento entre o escravo Martinho e a mucama Eufrosina:

− Deixa esse tição! Acudiu a Eufrosina. Como ganhou molhadura pela chegada do nhonhô Mário, que não devia ganhar...

Tição!... tição é seu pai de você, negro cambaio e bichento que veio lá d’Angola... Cada beiço assim! hi! hi!

A Eufrosina, cega de raiva atirou-se ao pajem que lhe fugia correndo ao redor da mesa e exasperando a mucama com as caretas que lhe fazia:

Cada beiço, assim, como orelha de porco... Tapuru era mato...chegava a sair pelos olhos.

− Eu te esgano; só se não conseguir te pegar.217 [grifos meus]

E assim a narrativa alencarina vai construindo o personagem negro segundo o contorno que lhe convém, sobretudo a figura de pai Benedito, ora feiticeiro, ora passivo com a escravidão, ora limitado intelectualmente...

Benedito contudo não tardou em reparar na ausência de Mário. O velho africano que já adorava aquele menino e admirava sua destreza e coragem, começou desde então a venerar nele alguma cousa de sobrenatural, incompreensível para seu espírito inculto. 218 [grifos meus]

... ora demonstrando subserviência e resignação com sua condição de escravo...

D. Francisca ajoelhada roçou a fronte de Mário com os lábios, cobriu-lhe o corpo com o xale, e rendeu ao Senhor ferventes graças, por lhe haver conservado o filho querido.

Benedito também ajoelhara aos pés do menino, mas em vez de rezar por ele, pôs-se a adorá-lo, como a um ídolo.219

... mas de uma forma ou de outra, sempre plasmado, se não pessoal e objetivamente, de maneira indireta e mais abrangente, como seguidas vezes ocorre através de apelos a lógicas binárias, feitos pelo narrador. Nas oportunidades em que ele se refere às meninas Alice, Adélia ou a outra moça qualquer, desde que seja branca, ele impregna o texto de expressões líricas, angelicais, visando sempre à exaltação:

Alice era a imagem de um anjo de cera. Seus cabelos louros, molduravam-lhe o rosto com esplendor; o vestido despedaçado, aparecendo por cima das coberturas junto às espáduas, figurava as pontas de lindas asas azuis. [...] A cútis alva tinha uma doce transparência produzida pela polarização da luz de sua alma que se refrangia para o céu.220

Tais expressões também se fazem presentes em referências dessa natureza, feitas sobre uma personagem inexpressiva que chega à Casa-Grande, mas, que, a despeito de sua inexpressão o narrador lhe tece loas, e pela sua presença, categoriza espaços em racializados e racializantes:

Realmente aqueles olhos azuis de uma luz tão cintilante; os cabelos de ouro riçados em diadema; o níveo colo, cuja nascença se debuxa sob o talhe afogado de um vestido de seda cor de cinza; e sobretudo a mão pequenina, melindrosa e afilada; são para a janela da rica sala, e não para a porta da copa, onde nesse momento se desempenham os humildes serviços do tráfego diário da casa. 221 [grifos meus]

E tem sequência o polo positivo da divisão binária explorada pelo narrador:

a menina percebera que Mário, em vez de examinar os pontos, estava, mas era a admirar-lhe a mãozinha de jasmim através da fina cambraia, e a aspirar a deliciosa fragrância que exalava dessa flora animada. 222

Em contrapartida, o caráter discriminador do polo negativo é factual; a referência ao pajem Martinho não deixa margens a contestações:

- Psiu! Martinho! Gritou a moça bastante alto para ser ouvida ao longe, mas com um sombreado na voz que indicava certo acanhamento.

− Ainda não, nhanhã! respondeu desconsolado o pajem mostrando o focinho entre a folhagem da última grimpa do jequitibá. 223 [grifo meu]

Se as referências dizem respeito ao pai Benedito, então, é aí mesmo que elas mais se manifestam como facciosas e nocivas, como acontece no episódio em que ele ajuda Mário a salvar a vida de Alice, no qual, pelos fatos, o narrador constrói uma cadeia humana numa conjuntura representada por Mário, Alice e pai Benedito:

o corpo do negro, inteiriçado sobre o abismo, escorrendo sangue das feridas, brandia, aos repetidos abalos que lhe imprimiam as arremessas de Mário, como um vergão de ferro. 224 [...] Foi essa peripécia do horrível drama que se desenhou aos olhos do barão, quando ele chegava à margem do lago. Não teve necessidade de interrogar, de ouvir alguma voz, nem de examinar a cena. Do primeiro relance compreendera tudo. A vítima era Alice; o herói, Mário, o instrumento, Benedito. 225 [grifos meus]

Uma cadeia humana que também é referenciada pelo desdobramento de um processo de animalização impresso sobre homens aviltados. Acerca de uma participação de Alice o narrador faz a seguinte observação:

A menina derramava em torno de si um fluido de afeto e ternura; o que vivia nessa atmosfera sentia sua irresistível atração. Na fazenda, para qualquer ponto que se voltasse, via-se rodeada de entes que a amavam e a quem ela retribuía em simpatia. Onde chegava, na roça ou no curral, havia festa e alegria. Os pretos batiam palmas; o gado mugia; as ovelhas balavam. 226 [grifos meus]

Muito se pode dizer sobre a função desempenhada pela narrativa O Tronco do Ipê como uma referência literária que, do ponto de vista discursivo, dialoga com textos históricos no sentido de reverberar propostas ideológicas que, tanto neste quanto naquele, têm grande poder de persuadir o público ledor de que a ordem social está em seus devidos lugares. Trata-se de uma proposta estética que prioriza a tentativa de convencer que um personagem tão vital à estruturação da obra, sobrevive por ações menores, subservientes, que ele, aparentemente, as assimila com naturalidade. A mesma naturalidade que o segmento dominante, também faz de conta que é real. O texto cumpre essa missão com muita habilidade, mesclando dissimulação com objetividade, o emprego da linguagem literal com linguagem ambivalente, mas a grande verdade é que ele, em toda sua extensão, demonstra com clarividência um comprometimento com a parcialidade em tratar como espontâneo, a aberração.

Prova disso é a referência ao “mané-gostoso”, elemento de presença recorrente nos textos não-estéticos, visto por esses textos sempre como simples brincadeira de criança, e por isso, tratado como um acontecimento, absolutamente normal, quando, de fato, suas ações e implicações são bem mais amplas e mais profundas. Alencar explora este recurso na obra, cercando-o de uma espontaneidade tal, que dissipa sua agudeza:

Encontrando o olhar da menina, Mário com o mesmo arrebatamento largou-lhe a mão; e envergonhado, quase arrependido do que fizera, continuou a fustigar os arbustos, aplicando também por diversão uma cipoada nas canelas de Martinho.227 [grifos meus]

Como não poderia ser diferente, apesar de Mário ser o protagonista de O Tronco do Ipê, cabe à figura de pai Benedito “fechar as cortinas” da narrativa, tendo como companhia a imagem de sua esposa, Tia Chica, tão pouco explorada ao longo do texto, mas, trazida de volta nesta oportunidade. Mesmo aparecendo somente no início da narrativa, ela ressurge, não fisicamente, mas no plano das ideias. A aproximação estratégica desses dois personagens, estratégica porque estando eles sempre tão distantes ao longo da narrativa, pressupõe a importância deles para o encadeamento da obra, num tácito reconhecimento de que, por mais que se pretenda alterar os rumos de um objeto estético pelo ofuscamento do brilho de personagens, sempre prevalecerá a lógica da criação literária. É exatamente por isso que Tia Chica e pai Benedito configuram uma expressão do texto conhecida como resumo intratextual, visto que o epílogo concentra as trajetórias de vida desses dois personagens negros, resgatando e preservando, através de dimensões temporais de presente, passado e futuro, integridades estéticas, costumeiramente desvalorizadas por projetos segmentários dominantes que, excedendo na dosagem, não percebem que passam da cura à exacerbação.

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4.6 - Menino do engenho: vendo e assimilando

A literatura do século xx, mais especificamente a do princípio do século, e dentro desse referencial cronológico, prioritariamente a Literatura do ciclo da cana-de-açúcar, traz no bojo das obras produzidas no período, significações tratadas de forma explícita. Esta condição enriquece, sobremaneira, a discussão estabelecida no sentido de se demonstrar na topografia literária, a repercussão de formas, de conceitos e de pensamentos mais afeitos a conjunturas afinadas com produções não-estéticas. A explicitação a que me refiro, diz respeito à preferência dos textos produzidos no período, em optar por razões históricas que contemplam personagens negros com espaço e ação expressivos, porém, em semelhante intensidade, utilizam na elaboração estética dos perfis deles, um conjunto de mecanismos que corrompem sua estatura literária. É bem verdade que esta predisposição, embora sempre às escâncaras, não implica, necessariamente, no desemprego de métodos implícitos. No atendimento dessa proposta, são duas as obras da Literatura brasileira, adequadas para traduzir, com proficiência, essa vertente da nossa produção literária: Menino de Engenho e Fogo Morto, ambas de José Lins do Rêgo.

Na obra Menino de Engenho, impressiona, a capacidade do texto em revelar os meios pelos quais a criança branca – no caso o protagonista Carlinhos – constrói seu habitus acerca das relações sociais que o negro, seja homem, mulher, adulto ou criança, estabelece com o meio em que vive. Nesse aspecto, é esta a base sobre a qual Carlinhos estrutura sua visão acerca de um mundo que tem limites geográficos definidos: um mundo que começa e termina na fazenda em que ele vive suas primeiras experiências. O desdobramento dos acontecimentos mostra que é pela observação de ações repetitivas, tanto de senhores quanto de escravos, pela falta de referenciais contrários às condições instituídas, pela orientação obstinada, e acima de tudo, pela construção de estereótipos que o homem branco adquire, ainda na infância, o sedimento para sua vida futura.

Com a perda dos pais, Carlinhos, o narrador-protagonista, a partir dos quatro anos de idade muda-se para a fazenda dos avós, e, custodiado por eles e pelo novo universo que agora o abriga, começa a elaborar uma leitura de mundo embasada com prioridade no que vê. Ele nada acrescenta à sucessão de acontecimentos que ocorrem ao seu redor, nem questiona o que presencia, limitando-se apenas a participar da continuidade da construção de um mundo, cujos alicerces se sustentam em fatos consagrados.

As primeiras manifestações de crueldade que, naturalmente, habitam o mundo da classe dominante, Carlinhos constata de imediato. Logo ao chegar à fazenda, ele depara com a figura do “mané-gostoso”, ao perceber que sua Tia Sinhazinha “criava sempre uma negrinha, que dormia aos pés de sua cama, para judiar, para satisfazer os seus prazeres brutais”. 228 [grifos meus] Num primeiro momento, o protagonista demonstra não ter a exata noção do significado daquela forma de humilhação, entretanto, a evolução dos acontecimentos começa a alterar sua percepção sobre as normas que regem o dia a dia da fazenda. Como consequência das benesses conquistadas pelo vínculo de parentesco existente entre ele e o avô, Coronel José Paulino, num curto espaço de tempo Carlinhos também acaba aderindo esta prática que demonstra poder, mas, ao mesmo tempo degrada a moral do homem:

... depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para “o neto do Coronel Zé Paulino”. Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores. Eu me sentia bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não tinham raiva de mim. Muitos deles eram moradores do engenho. 229 [grifos meus]

É pelo acesso a esses dispositivos de ação que Carlinhos vai construindo sua formação e sua visão de mundo; ora apenas observando os acontecimentos ao seu redor, ora aderindo à prática de ações observadas no cotidiano, mas, invariavelmente, sempre demonstrando, a cada momento, que sua formação é carente de referenciais, em virtude de ser forjada sobre fatos já consagrados pelo imaginário popular, e, por isso, ele é levado a encará-los com a mais absoluta naturalidade.

Do ponto de vista moral, o que se percebe na formação de sua trajetória não é apenas uma falta de referência. Percebe-se também, e, sobretudo, o quanto sua formação é sustentada pela recorrência em assimilar como espontâneos, acontecimentos que, na sua essência, são extraordinários, embora uma situação seja consequência da existência da outra. É nessa conjuntura social que Carlinhos cresce, na mesma proporção em que cresce seu hábito em dispensar ao negro, um olhar que lhe ajuda a nele imprimir as marcas do estereótipo, e sobre esse mesmo negro, aplicar conceitos baseados em construções míticas:

[...] restava ainda a senzala dos tempos do cativeiro.

Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão. As duas filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos.230 [grifos meus]

Nota-se que, embora os tempos já não sejam mais os mesmos, já não sejam mais tempos de cativeiro, ainda assim, permanece o modus operandi da classe dominante, assim como permanece a inconsciência dos donos do poder. A concepção de posse que os seres humanos têm, continua sendo exatamente a mesma, tanto para quem se sente dono de alguém, quanto para quem vive sob uma reinante atmosfera de servidão, ainda não dissipada. Na mesma proporção, pseudossentimentos de protecionismo, altruísmo e solidariedade afloram, sustentados por “doações” que não engrandecem ninguém, e ainda apequenam todos.

As evidências revelam que é esse conjunto de ações e circunstâncias, aparentemente nobres, mas, de fato, humilhantes, que plasma Carlinhos, ao mesmo tempo realçando, também, o embotamento de mentes, de detratores capazes de conceber um tipo de trabalho que se realiza de “graça”, de uma “alegria” proveniente de um “regime de escravidão” e até de conceber uma “escravidão” que proporciona “alegria.” De detratores que defendem que escravos livres preferem a permanência nas senzalas, mas não se dignam a dizer por que, explorando essa lacuna como comprovação de que a escravidão era uma instituição promotora de felicidades. Todo esse repertório de soberba, de autossuficiência e de atrevimento não se esgota aí; ele se prolonga num determinismo superado e estúpido, que aposta na continuidade do antigo estado de coisas, criando expectativas de que as futuras gerações de negros mantenham-se serviçais, amantes da servidão e indiferentes às adversidades que as destrói, como se estes sentimentos, algum dia, tenham, de fato, feito parte da sensatez dos escravos, como fez parte do imaginário da classe dominante.

Tomando Carlinhos por referência, Menino de Engenho dialoga com o Sermão da XIVª, Sermão da XXª e Sermão da XXVIIª, de Padre Antonio Vieira, especialmente pelo cruzamento de ideologias cuja finalidade é fazer da pseudo vontade divina, justificativa para manter o negro na posição tradicionalmente ocupada por ele no tecido social:

O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos. 231 [grifos meus]

A posição externada por Carlinhos, não deixa dúvida, que, a formatação do seu habitus apresenta como principal ingrediente a carência de referencial. É uma visão de mundo forjada por um olhar estrábico, capaz de emprestar significado, apenas a ações que se desenvolvem guiadas por mecanismos que imprimem continuidade a relações sociais marcadas por uma hierarquização, que só reconhece legitimidade naqueles que se situam no seu ponto mais elevado.

Oportuno se faz acrescentar, que a ótica de Carlinhos não lhe é particular, mas é, sim, a representação e uma postura comportamental ideológica coletiva, dominante. O que o leva a ver com normalidade a vida desgraçada vivida pelos escravos, não é a repetitividade ininterrupta com que ele a observa, mas é, sobretudo, o total desconhecimento da existência de outras formas de vida, associado a informações que justificam, explicam, legitimam e convencem os menos esclarecidos, de que, do ponto de vista religioso, a vida vivida pelos escravos era, antes e principalmente, resultado de ditames divinos. Como via de consequência, também era determinação de Deus, a “superioridade” de brancos sobre negros, que autorizava os brancos a mandar nos negros e a reduzir a individualidade deles a zero, compondo uma forma de pensar, cujos resquícios, certamente, ainda hoje vagam pelos meios sociais.

Como não poderia ser diferente, também do ponto de vista da sexualidade, todo o conhecimento primário adquirido por Carlinhos ocorre pelas ações dos mesmos princípios deformadores que pautam sua trajetória iniciática nos diferentes campos da experiência humana. A sua atividade sexual, se desenvolve a partir da sua convivência com os escravos, tomando por base um mito popular que gravitava ao redor das escravas, plasmando-as como paradigmas de lascívia:

A negra Luísa fizera-se de comparsa das minhas depravações antecipadas. Ao contrário das outras, que nos respeitavam seriamente, ela seria uma espécie de anjo mau da minha infância. Ia me botar para dormir, e enquanto ficávamos sozinhos no quarto, arrastava-me a coisas ignóbeis. Eu era um menino sem contato com o catecismo. Pouco sabia de rezas. E esta ausência perigosa de religião não me levava a temer os pecados. Muito depois, esta miséria de sentimentos religiosos se refletiria em toda a minha vida, como uma desgraça. A moleca me iniciava, naquele verdor de idade, nas suas concupicências de mulata incendiada de luxúria. Nem sei contar o que ela fazia comigo. 232 [grifos meus]

Na visão proposta pelo texto, o que importa não é o fato de a iniciação de Carlinhos na sexualidade se dar pelos caminhos da depravação, das práticas libidinosas e da concupiscência, mas, sim, projetar Luísa como a responsável por tais desvios de conduta. É ela que desvirtua todo um conhecimento. Luísa é o anjo mau que desencaminha, deforma e transforma o sublime em infame.

Aliás, é inevitável o destaque do grau de contradição que esta narrativa revela estar presente em tantas obras que utilizam a mesma substância literária, no que diz respeito a relações amorosas, sobretudo em Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão.233 Menino de Engenho, também investe demasiado nesta vertente, sempre destacando a forma cortês com que os brancos desenvolvem suas atividades amorosas, em contraposição à forma imprópria desenvolvida pelos escravos. Ora, Carlinhos é o exemplo acabado da impossibilidade de um homem branco, habitante de um Brasil ainda nascente, cultivar sentimentos amorosos pautados por níveis de cortesia, pelo simples fato de ele ser, essencialmente dominador, o que leva sua essência a não se coadunar com reciprocidade e com sentimento de alteridade, por tudo o que sua própria formação sinalizava.

Com doze anos, Carlinhos deixa o convívio da fazenda, transferindo-se para o educandário, e na sua concepção, com a idade que tem, sente-se convencido de estar pronto para o mundo. A narrativa é em flash-back e mesmo assim não se percebe em momento algum, um viés crítico sobre a compleição deformada do personagem. O que se percebe o tempo todo é um autoconvencimento por parte do narrador-protagonista, de que sua formação é sólida, muito embora sua grande marca identitária seja, na realidade, sua visão monolítica de mundo.

Em se tratando de relações sociais do cotidiano, Carlinhos é o representante por excelência da formação do homem brasileiro, sobretudo no que se refere a sua socialização como integrante da classe branca dominante, embora neste caso, o mais importante não seja propriamente o fato de ele ser dominante, mas, sim, o fato de ser branco. Numa considerável dimensão, todo homem branco brasileiro traz em si um pouco de Carlinhos, por aquilo que ele também observa nos “engenhos” do cotidiano que pouco diferem dos engenhos dos tempos coloniais. Carlinhos é produto da vida no engenho, e por este motivo, mais que menino de engenho ele é, em sua essência, um menino do engenho, um produto do engenho.

Dentro desta perspectiva, levando em consideração o espaço que reserva ao personagem negro, a invisibilidade que lhe confere, e fundamentalmente, o discurso que se lhe associa nesta obra, a Literatura configura-se como uma importante vitrine a exibir o negro de maneira a contribuir que sobre ele sejam construídas representações baseadas, exclusivamente, num olhar viciado. Uma obra, cujo olhar de fora para dentro resulta numa formação social e moral de um observador que, em consequência, certamente irá pautar sua mundividência em pressupostos semelhantes aos de Carlinhos: inconsistentes, incongruentes e autocentrados, e por isso mesmo, pretensamente autotélicos.

***

4.7 - José Passarinho: humanismo e divindade

A obra Fogo Morto é mais uma da autoria de José Lins do Rêgo, da qual passo a destacar aspectos que a credenciam como mais um veículo de modelação da imagem do negro, segundo pressupostos que vêm sendo defendidos ao longo deste livro.

Uma característica interessante desse texto é a capacidade apresentada em trabalhar um número bastante elevado de personagens negros, mas, apesar disso, conseguir diluí-los em sua tessitura entre alguns poucos personagens brancos, como o protagonista, Mestre José Amaro, que neste aspecto é seguido de perto por Vitorino Carneiro da Cunha e pelo Coronel Lula de Holanda. Essa diluição se processa de forma curiosa, porque, aos personagens negros, que no tocante à quantidade são em número expressivo, o texto consegue dispensar um tratamento traduzido pelo distanciamento e pela invisibilidade, mesmo em se tratando daqueles personagens que são húmus da diegese histórica, como é o caso dos escravos Domingos e Nicolau, do cego Torquato e do próprio José Passarinho, ou melhor, do negro Passarinho. É pela presença desses personagens, que nos damos conta de que Fogo Morto atribui importância secundária a personagens que têm desdobramentos primários, sendo que esta importância assim se faz, exatamente por incorporar marcas do estereótipo, pela falta de discurso direto e pelo recurso continuado a um silenciamento que ocorre das mais variadas formas.

Um dos personagens estruturantes da obra, trata-se do Capitão Tomás Cabral de Melo, sogro do Coronel Lula de Holanda. Do casamento dele com D. Mariquinha, nasce Amélia. A história de vida desse personagem dentro da narrativa é tratada in media res, − daí sua importância do ponto de vista estrutural −, porque é a partir de sua história que se constrói a de Coronel Lula de Holanda, e por via de consequência, a de Mestre José Amaro, a de José Passarinho e de todos os personagens que vivenciam o cotidiano do Engenho Santa Fé, propriedade que desenvolve suas atividades sob a tutela do Coronel Lula de Holanda.

Em princípio, a história do Capitão Tomás Cabral de Melo está condicionada e se resume às ações desenvolvidas pelo escravo Domingos, o qual o CapitãoTomás vê como seu objeto de posse no Santa Fé, engenho que no futuro viria a se tornar propriedade do Coronel Lula de Holanda, em consequência do casamento deste com sua filha Amélia. O escravo Domingos resolve enfrentar e afrontar o Capitão Tomás, empreendendo uma fuga de seu engenho, acontecimento que “chegou para o capitão como um choque”.234 Quando de sua primeira fuga, o Capitão Tomás, por se sentir vilipendiado e desfeiteado por um escravo, e por não admitir tal situação, optou por não entregar o caso a um capitão do mato, e, pessoalmente, “botou-se para a caçada à sua peça”. 235 Nas investidas realizadas o Capitão Tomás não conseguiu capturá-lo, todavia, com o prestígio que desfrutava junto às autoridades dos lugares por onde andou, ouviu de um delegado o conselho de que deveria voltar para casa, bem como a promessa de que receberia Domingos de volta, tão logo, nele, o delegado colocasse as mãos:

− Capitão, pode voltar para o seu engenho, o negro estará lá, no mais tardar, na quarta-feira.

E assim tudo foi feito. Numa quarta-feira, de tarde, bateu-lhe na porta o negro fugido, que veio cair-lhe aos pés chorando. Trazia o capitão-de-mato uma carta do delegado. O Capitão olhou para a sua cria com ódio de morte. 236

Domingos pagou um preço muito alto por sua fuga, e por isso, uma vez capturado, foi castigado dura e exemplarmente a mando do Capitão Tomás.

Apesar de submetido a toda sorte de maus-tratos, tempos depois da primeira fuga, Domingos realiza uma segunda e definitiva fuga, na qual ele furta dois cavalos do Capitão. Embora já não fosse o mesmo de outrora, agora já mais velho, mais cansado e com a saúde debilitada, ainda assim o Capitão Tomás resolve trazer para si a questão, e na companhia do genro, Lula de Holanda, “saiu à procura do que era seu”.237 Desta feita, o desdobramento das ocorrências não foi favorável ao Capitão Tomás, que teve de amargar uma dupla derrota, pois ele não só não conseguiu reaver o escravo Domingos, como ainda sofreu humilhações, impostas pelos fazendeiros aos quais consultou sobre o paradeiro do escravo fugido, a exemplo da reação de um deles na presença de seus capangas:

− Estes dois homens estão vindo do Brejo atrás de um negro fugido. Estão pensando que o negro está aqui. O Capitão Tomás explicou:

− Não senhor, em Campina me disseram que o negro tinha parado nesta fazenda.

Seu Lula, com a voz trêmula, inflamada, gritou:

− Não somos camumbembes.

− Eu sei que os senhores são homens de trato, de engenho, de muita lordeza. Tudo isto eu sei. Mas grito aqui não adianta não, rapaz. Eu, se fosse o capitão, ia me aboletar ali debaixo daquele pé de juá, e esperar a madrugada. Se quiser uns pratos de coalhada eu tenho para dar. Só não tenho é negro fugido e nem cavalo roubado.

Um dos cabras abriu uma estrondosa gargalhada.238

É este malogrado acontecimento que dá início à derrocada do Capitão Tomás Cabral de Melo, que, por não conseguir conviver com a derrota que Domingos lhe infligira, mergulhou numa rota de deliquescência física, moral e espiritual que culminou com sua morte, como se pode verificar nas palavras de sua esposa D. Mariquinha, ao observar que “a escravatura do marido não era de dar trabalho. Se não fosse aquele negro Domingos não podia se queixar de seus negros. Domingos dera com seu marido no chão”.239 Muitos anos depois, numa conversa da filha Amélia com uma senhora conhecida por Sinhá Adriana, Amélia relembra “que fora aquele negro Domingos que matara o seu pai”.240 Entretanto, o que de forma mais fiel reproduz essa situação são as reflexões feitas pelo próprio Capitão Tomás, quando vivenciava as dores da derrota que Domingos lhe impusera:

Todos se preocupavam com a tristeza do capitão. Afinal de contas, a história de Domingos não seria motivo para um homem se entregar daquele jeito, para ficar como morto. O capitão nos seus silêncios, vivia para dentro de si com violência. Partia ele do ponto de vista que estava derrotado, humilhado, sem honra, sem força para governar as suas coisas. Era um senhor de engenho sem respeito. Tivera um negro fugido, andara atrás dele, com o seu direito, com a sua razão, e fora, no entanto insultado por um camumbembe qualquer, um sujeito de camisa para fora da calça que quase lhe bateu. Não, ele não podia mais gritar para negro nenhum. 241 [grifos meus]

O comportamento obstinado de Domingos desmonta qualquer possibilidade de especulação sobre a ideia de passividade, tão explorada pelos textos, que em geral tentam a todo custo imprimi--la como marca identitária do escravo negro. Ele afronta e desafia o Capitão Tomás que sabe de suas intenções, e por isso mesmo, dimensiona com exatidão o tamanho da derrota. Domingos é um escravo extremamente rebelde, e por sua rebeldia é o responsável indireto pela morte do Capitão Tomás, entretanto, o leitor só dimensiona sua rebeldia por aquilo que lhe é passado pelo narrador ou intuído dos demais personagens, mas, em momento algum, por ações efetivas ou por suas próprias palavras. Cabe perguntar, por que um personagem profundamente marcado pela revolta e indignação não as verbaliza com intensidade? Por que o texto não as revela em termos práticos? Esse comportamento não mudaria o curso da obra, e, certamente, resultaria numa representação mais fiel do personagem, mesmo porque, o próprio texto, em certa medida, traduz esses sentimentos, embora cerceie o personagem na sua possibilidade de verbalização. A despeito da sua firmeza de caráter e das implicações causadas no desdobramento da diegese histórica, Domingos é um personagem distante e distanciado, silencioso e silenciado, absolutamente desprovido de fisionomia e de qualquer tipo de discurso que se possa imaginar para um personagem de sua importância. O máximo que o leitor sabe sobre Domingos é que ele era um moleque “de muito boa-pinta, de 18 anos, de saúde de ferro,”242 e assim mesmo, por informações prestadas pelo narrador.

Com a morte do Capitão Tomás, o genro Lula de Holanda assume a administração do Engenho Santa Fé e adota a política da aplicação gratuita de castigos, postura que contraria sua sogra, D. Mariquinha, com quem entra em rota de colisão. O escravo Nicolau que “viera com Tomás de Ingá e era negro de estima da casa”, 243 é surrado sem necessidade e “adoecera de vergonha... Lágrimas correram dos olhos de Nicolau”.244 Com a Abolição, ele abandona o Engenho e apesar de, por vezes, passar pela porta do engenho, quando assim fazia, “não parava para dar duas palavras,”245 e, já bem velho, Nicolau por ali passava e todos o viam “mal tirar o chapéu. Parecia um negro de longe, que nunca parara no engenho”.246 Também distanciado, silenciado e desprovido da manifestação verbal da mesma forma que Domingos, Nicolau, por ser surrado gratuitamente, se impõe e demonstra sua indignação, embora a tessitura literária limite a profundidade de suas ações a comentários de personagens pouco expressivos.

“Essa gente toda conversava: os de cavalo com os que iam a pé. Mais adiante encontramos Zé Passarinho, bêbado no seu costume de sempre.” 247 [grifos meus] É dessa forma, isto é, sob as marcas indeléveis do estereótipo, que nasce, ainda nas páginas de Menino de Engenho, o personagem José Passarinho, que depois migra para a tessitura de Fogo Morto, transformando-se num sustentáculo desta narrativa. José Passarinho surge sem raízes, sem família e sem identidade, como acontece com a maioria dos personagens negros, e como dá a impressão de não ter passado, também dá a impressão de não ter presente. Apesar de já nascer sob o signo do estereótipo e de viver sob ele ao longo da obra, José Passarinho é o mais representativo referencial da limitação por que passam alguns dos personagens negros de Fogo Morto. Sua “voz”, quando cantarola, pois é somente nesta condição que ele realmente a possui, é uma espécie de pano de fundo da narrativa, sobretudo pela função de contraponto que estabelece com o “canário da biqueira”, um pássaro que surge em situações especiais.

O canário da biqueira irrompe de forma repentina nas proximidades das pessoas, e seu canto é cercado de um teor premonitório, no sentido de trazer maus presságios. Da mesma forma que o canário da biqueira, José Passarinho é um personagem que também “surge” inesperadamente nos ambientes que frequenta. Embora não prenuncie maus presságios, seu aparecimento repentino vem sempre acompanhado de uma canção que pressupõe o anúncio de algo novo ou mesmo uma revelação: “a mulher do seleiro pagou--lhe e ele arrumou-se para sair quando apareceu na estrada José Passarinho, velho negro que vivia constantemente embriagado.” 248 [grifos meus]

A partir de um determinando ponto da obra, sobretudo quando o Mestre José Amaro é abandonado pela esposa e passa a viver na solidão, é José Passarinho quem lhe faz companhia, cantarolando trechos de canções que chegavam ao Mestre como alento: “a voz de Passarinho levava o mestre para os dias de Goiana, a vida boa da rua, da casa bem perto da Matriz.”249 [grifos meus]

Às vezes, pelo seu conteúdo, as canções interpretadas por José Passarinho surpreendiam o Mestre José Amaro, levando-o a fazer observações que, também pelo conteúdo delas, marcavam, revelando, não somente, elementos da nobreza de espírito de Passarinho, como também do próprio Mestre José Amaro. Quando as ouvia, o Mestre dizia de si para consigo que “nunca pensara que aquele negro imundo, de cara de cachaceiro, tivesse tanta coisa dentro de si, aquela história, aqueles amores, aquele D. Carlos, aquela D. Branca.” 250 [grifos meus] Os atributos de José Passarinho não surpreendem apenas o Mestre José Amaro; surpreendem, também, o leitor, cuja percepção sobre eles só vem com a percepção demonstrada pelo Mestre, devido ao velamento que torna sombria a figura de José Passarinho, fruto de procedimentos estratégicos discursivos que têm, exatamente, esta intenção.

O Mestre José Amaro é o protagonista da narrativa e depois de ser abandonado pela sua esposa, D. Sinhá, tem a sua sobrevida condicionada à performance de José Passarinho. A partir de então, José Passarinho passa a ser decisivo para o desdobramento da diegese histórica e da conformação estrutural da narrativa, principalmente, porque assume, também, a função de contraponto do Mestre José Amaro: “− O pobre tem me ajudado muito. Sinhá me abandonou aqui sozinho, e se não fosse ele, nem sei como me aguentava”. 251

José Passarinho, o Zé Passarinho ou simplesmente o negro Passarinho é um personagem que Fogo Morto reveste de importância secundária, a despeito de todo o espaço que ele ocupa na topografia dessa obra. Desprovido de discurso direto mais expressivo e estereotipado como negro, bêbado e vagabundo, resta a Passarinho manifestar-se pela palavra cantada, que é uma interessante forma de manifestação sim, mas é transmissora apenas de palavras prontas e nitidamente limitadas e limitadoras, se comparadas à capacidade da expressão verbal autônoma e espontânea. Passarinho apenas cantarola, em virtude de ser impossibilitado de se manifestar pela utilização do principal instrumento de prática social: a fala.

Uma referência contrária a essa limitação imposta a Passarinho é encontrada no cego Torquato, personagem negro, contemplado com presença, atuação e espaço significativos dentro da narrativa, e dotado de discurso direto amplo e frequente, bem como totalmente desprovido de marcas de estereótipo ou de outra natureza discursiva qualquer. Acontece, porém que, além de negro, Torquato é cego e esta é sua marca identitária preponderante, e por assim ser, dispensa a necessidade de outro aspecto estigmatizante qualquer. Por isso, embora negro, Torquato fala; e fala porque, uma vez já estando preso em sua escuridão, não há porque cerceá-lo ainda mais.

Já com José Passarinho a situação é diferente, mesmo porque é pela essência dele que toda a densidade do protagonista, Mestre José Amaro, se vê sedimentada e dependente. É José Passarinho quem ajuda Mestre José Amaro a viver, ajuda Mestre José Amaro a existir e ajuda Mestre José Amaro a morrer. Nessa perspectiva, ele ajuda Fogo Morto a ser a obra que é, sobretudo pela sua densidade literária, ora porque personifica a epifania, por suas próprias aparições, repentinas, do nada, mas sempre trazendo um sopro de vida para o Mestre; ora como mensageiro de uma epifania, cujas revelações nela contidas, a Passarinho cabe o papel de pressagiar:

− E o Santa Fé quando bota, Passarinho?

− Capitão, não bota mais, está de fogo morto. 252

Em linhas gerais é assim que se desenvolve o romance Fogo Morto, do Mestre José Amaro, do Capitão Vitorino Carneiro da Cunha, do Coronel Lula de Holanda e de tantos outros personagens artífices da sua organização interna: em grande medida, conduzido pelos vaticínios feitos por José Passarinho, um personagem praticamente sem voz dentro da narrativa. Considerando que esses vaticínios aliam-se a observações retrospectivas, à medida que os faz, José Passarinho retoma e resume toda uma dimensão pretérita do enredo, e sobre este, abre novas possibilidades de leituras. Nessa perspectiva, ele se configura como um autêntico “Jano dos canaviais”, revelando uma postura possível apenas a personagens redondos, e por isso, rompe com a predisposição prioritária de querer reduzi- -lo a um acabado personagem plano, que a articulação imediata da linguagem utilizada pelo texto, privilegia.

Talvez pareça contraditório por parte deste autor, o destaque de tanta qualificação, do ponto de vista estético, em personagens que, ao longo do mapeamento desenvolvido, vêm sendo considerados como cerceados nas suas ações e na sua capacidade discursiva, entretanto, é justamente este o fenômeno que ocorre nas entrelinhas das narrativas da Literatura brasileira que contemplam o personagem negro. A Literatura universal tem-nos mostrado que, quando da elaboração de personagens dotados de um aspecto qualquer que, aparentemente, os minimiza do ponto de vista social, intelectual, moral, físico, mental ou econômico, enfim, que os coloca em algum tipo de aparente desvantagem diante dos que o cercam, torna-se inerente ao fazer literário revelar, sem continência, atributos que exercem uma função contrapontística na análise do perfil desse mesmo personagem. Como exemplos, cito Quasímodo de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo; Rodion Raskólhnikov de Crime e Castigo, de Dostoiévski; Ismênia de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Macabéa de A Hora da Estrela, de Lispector; e mais apropriadamente, D. Quixote da obra homônima de Cervantes, e ainda seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Todos estes personagens, em princípio, marcam, também, por algum tipo de “deficiência” aparente que vai da necedade à feiúra, da pobreza à loucura, da tolice à fragilidade emocional, mas, apesar disso, o leitor não precisa fazer nenhum esforço descomunal para perceber a sensibilidade de Macabéa, a lucidez de Ismênia, a abrangente visão de mundo de Quasímodo, a integridade de caráter de Raskólhnikov, que se expressa no seu arrependimento, o humanitarismo de Quixote ou o companheirismo de Sancho. Ademais, as aparentes deficiências pressupõem, sempre e inevitavelmente, a caracterização do personagem como sendo redondo, e essa perspectiva, retira do leitor a necessidade de desconstruir a obra para perceber suas qualidades estéticas, como ele é levado a fazer quando se vê diante de personagens negros. Neste particular, a Literatura brasileira, na busca do atendimento da consolidação de propostas dominantes, apela para ações de dispositivos que procuram subverter o verdadeiro fazer literário, colocando em primeiro plano, recursos que não mascaram sua intencionalidade e ainda se evidenciam como uma forma de desumanizar a arte, na medida em que visam deformar o real, representar pela desrealização e não viver a essência de situações, pessoas ou coisas .253 Todas essas possibilidades se apresentam no atendimento de um escopo prioritário que o texto quer atingir, ao apelar para uma forma estereotipada que subverte a estatura estética e literária de José Passarinho, reduzindo-o a um personagem simplório e predominantemente negro, bêbado e vagabundo.

***

Notas

118 Brokshaw, Raça & Cor na Literatura Brasileira, p. 149.

119 Brookshaw, Raça & Cor na Literatura Brasileira, p.21.

120 Cruz e Sousa, poema Antífona, In: Obra Completa, p. 63.

121 Id. ib.

122 Brookshaw, Raça & Cor na Literatura Brasileira, p. 136.

123 Rabassa, O Negro na Ficção Brasileira, p. 13.

124 Rabassa, O Negro na Ficção Brasileira, p. 13.

125 Relembro o leitor que esta questão foi tratada com mais profundidade no cap. I, em especial nas abordagens sobre Rui Barbosa e sobre grande parte das ideias encontradas em Casa-Grande e Senzala.

126 Bourdieu, O Poder Simbólico, p. 7.

127 Bourdieu, O Poder Simbólico, pp. 7-8-9

128 Id. ib.

129 Id. ib.

130 Bourdieu, A Economia das Trocas Simbólicas, p.191.

131 É bem verdade que quanto a anjos e santos também os encontramos como negros, entretanto, quando esses fatos assim ocorrem, estamos diante de exceções que confirmam regras.

132 Cf. Bíblia Sagrada, Gênesis, capítulo 9, versículos 18-27.

133 Boas, Antropologia Cultural, p. 92.

134 DaMatta, O que faz do brasil, Brasil?, p. 15.

135 DaMatta, O que faz do brasil, Brasil?, p 42.

136 Da Matta, O que faz do brasil, Brasil?, p. 29

137 Id., p. 27.

138 Id., p. 28.

139 Machado de Assis, Esaú e Jacó, p. 992.

140 Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, p. 97.

141 Barthes, Mitologias, p. 45.

142 Cf. DaMatta, Relativizando. Uma Introdução à Antropologia Social, p. 58.

143 Chaui, Brasil, Mito Fundador e Sociedade Autoritária, p. 8.

144 Vieira, Sermão da XIVª, pp. 636-637.

145 Lausberg, Elementos de Retórica Literária, p. 77.

146 Id., p. 75.

147 “Eis aí teu filho.”

148 Vieira, Sermão da XIVª, p. 640.

149 Id., p. 642.

150 Vieira, Sermão da XIVª, p. 642.

151 Vieira, Sermão da XIVª, p. 643.

152 Id., p. 644.

153153 Vieira, Sermão da XIVª, p. 647.

154 Id., p. 646.

155 Vieira, Sermão da XIVª, p. 646

156 Id., p. 647. Sobre Coré ou Corá, Cf. A Bíblia de Jerusalém, 1º Cr., 9-19 ou Sl. 42-49.

157 Vieira, Sermão da XIVª, p. 648.

158 Vieira, Sermão da XIVª, p. 650.

159 Vieira, Sermão da XIVª, p. 653.

160 Id. ib.

161 Vieira, Sermão da XIVª, p. 656.

162 Id. ib.

163 Id., p. 657.

164 Vieira, Sermão da XIVª, p. 657.

165 Vieira, Sermão da XXª, p. 132.

166 Id., p. 133.

167 Vieira, Sermão da XXª, p. 134.

168 Id. ib.

169 Id., pp. 134-135.

170 Vieira, Sermão da XXª, p. 137.

171 Vieira, Sermão da XXª, p. 141.

172 Id., p. 143.

173 Vieira, Sermão da XXª, pp. 180-181.

174 Id., pp. 183-184.

175 Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, p. 51.

176 Vieira, Sermão da XXVIIª, p. 117.

177 Id., p. 114.

178 Vieira, Sermão da XXVIIª, p. 64.

179 Vieira, Sermão da XXVIIª, pp. 69-70.

180 Vieira, Sermão da XXVIIª, p. 75.

181 Vieira, Sermão da XXVIIª, pp. 102-103.

182 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 33.

183 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 46.

184 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 7.

185 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 10.

186 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 98.

187 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 158.

188 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 32

189 Id., ib.

190 Id., p. 122.

191 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 123.

192 Id., p. 132.

193 Id., p. 194.

194 Id., p. 222.

195 Id., p. 242.

196 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 39.

197 Id., p. 150.

198 Id., p. 37.

199 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 58.

200 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, pp. 59-60-61.

201 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 73.

202 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 70.

203 Id., p. 80.

204 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 99.

205 Id., p. 19.

206 Macedo, As Vítimas Algozes: Quadros da Escravidão, p. 51.

207 Alencar, O Tronco do Ipê, p.158.

208 Id., p. 37.

209 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 35

210 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 75.

211 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 37.

212 Id., p. 77.

213 Id. ib.

214 Id., p. 305.

215 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 64

216 Id. ib.

217 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 223.

218 Id., p. 143.

219 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 146.

220 Id., p. 139.

221 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 171.

222 Id., p. 198.

223 Id., p. 172.

224 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 134

225 Id., pp. 134-135.

226 Id., p. 190.

227 Alencar, O Tronco do Ipê, p. 47

228 Rêgo, Menino de Engenho, p. 15.

229 Rêgo, Menino de Engenho, p. 33.

230 Rêgo, Menino de Engenho, p. 55.

231 Rêgo, Menino de Engenho, p. 89

232 Rêgo, Menino de Engenho, p. 102.

233 Veja capítulo correspondente.

234 Rêgo, Fogo Morto, p. 157.

235 Id., ib.

236 Id., p. 158.

237 Rêgo, Fogo Morto, p. 167.

238 Id., p. 169.

239 Rêgo, Fogo Morto, p. 175.

240 Id., p. 265.

241 Id., p. 171.

242 Rêgo, Fogo Morto, p. 157.

243 Id., p. 175.

244 Id. ib.

245 Id., p.193.

246 Id. ib.

247 Rêgo, Menino de Engenho, p. 20.

248 Rêgo, Fogo Morto, p. 59.

249 Rêgo, Fogo Morto, p. 230.

250 Id., p. 80.

251 Id., p. 236.

252 Rêgo, Fogo Morto, p. 319.

253 Cf. Ortega y Gasset, La Deshumanización de la Arte y Otros Ensayos Estéticos.