À BEIRA DA JANELA
ao Carlos
O pássaro amarelo morreu hoje,
mas não cheguei a vê-lo, ou à gaiola.
Ainda de manhã arfava pelo bico e era eu
quem piava como se pudesse saber em que língua
sofria. O Carlos fez-me chá e afagou-me a tristeza.
O amarelinho morreu só, mas há outra maneira de morrer?
Tudo fica de fora dos que morrem. Eles sabem que partem
sozinhos, e não saber mais nada é o nome próprio dos confins
do medo. Para não falar no sofrimento quase póstumo
em que se agarram à vida a troco de nada.
Foi assim que nos fizeste. Ofereceste a pior ignorância
e o saber mais certo. O pássaro amarelo
soube incertamente qualquer coisa e debateu-se
contra a voz insistente que o chamava.
Era do Carlos o amarelinho. Mas foi ele
quem escondeu o pássaro, a gaiola branca
e o lugar vazio à beira da janela.
Quem me pôs o chá no tabuleiro e mo sorriu à boca.
Quem me deu a boca e me embalou nos braços.
Talvez a morte do amarelinho nos salve. E a nossa morte
salve mais alguém. Mas salve de quê, em nome de deus?
Gostava tanto de saber do que estou a falar,
do que andamos todos a falar há séculos.
E muitos acreditam piamente e piamente sofrem.
E outros fazem sofrer e assim dizes Tu eternamente: ámen.
Dias depois o Carlos contou-me que tinha enterrado o pássaro
no quintal da mãe. Mas nessa tarde e sem morrer
salvou-me com o mesmo amor que nos morreste.