A paz no apogeu, 1922-1931
Durante o ano de 1922, surgiu um novo líder na Inglaterra. Mr. Stanley Baldwin passara desconhecido ou despercebido no drama mundial e desempenhara um papel modesto nos assuntos internos. Tinha sido secretário de Finanças do Tesouro durante a guerra e, nessa ocasião, era ministro do Comércio. Tornou-se a força preponderante da política inglesa desde outubro de 1922, quando derrubou Mr. Lloyd George, até maio de 1937, quando, coberto de honrarias e cultuado pela estima da opinião pública, entregou seu pesado cargo e se retirou, com dignidade e em silêncio, para sua casa no Worcestershire. Meu relacionamento com esse estadista é uma parte bem-definida da história que pretendo contar. Nossas divergências foram sérias em algumas ocasiões, mas, em todos aqueles anos e em épocas posteriores, nunca tive uma conversa ou contato pessoal desagradável com ele e em nenhum momento senti que não pudéssemos falar com boa-fé e compreensão, de homem para homem.
Logo no começo de 1923, ele se tornou primeiro-ministro pelo Partido Conservador, assim se iniciando o período de 14 anos que bem podemos denominar o “Regime Baldwin-MacDonald”. Mr. Ramsay MacDonald era o líder do Partido Socialista e, de início alternadamente, mas depois em fraternidade política, esses dois estadistas governaram o país. Nominalmente representantes de partidos opostos, de doutrinas contrárias e de interesses antagônicos, eles se revelaram, na verdade, mais afins na aparência, no temperamento e nos métodos do que quaisquer outros dois homens que tenham sido primeiros-ministros desde que esse cargo foi reconhecido na constituição. Curiosamente, as simpatias de cada um estendiam-se a grande parte do território do outro. Ramsay MacDonald nutria muitos dos sentimentos dos antigos torys. Stanley Baldwin, salvo por uma arraigada aprovação do protecionismo característica dos industriais, era, por inclinação, um representante mais autêntico de um socialismo brando do que muitos dos que se encontravam nas fileiras trabalhistas.
Em 1924, houve uma eleição geral. Os conservadores foram reconduzidos com uma maioria de 222 cadeiras sobre todos os outros partidos juntos. Eu mesmo me elegi deputado por Epping, por uma maioria de dez mil votos, porém como “constitucionalista”. Nessa época, não adotava o nome de “conservador”. Tivera alguns contatos amistosos com Mr. Baldwin nesse intervalo, mas não achava que ele chegasse a se tornar primeiro-ministro. Então, logo após sua vitória, eu não tinha ideia de como ele se sentia a meu respeito. Fiquei surpreso, pois — e o Partido Conservador, boquiaberto — quando ele me convidou para ser Chancellor of the Exchequer [ministro das Finanças], cargo que meu pai um dia ocupara. Um ano depois, com a aprovação de meus eleitores no distrito e sem haver sofrido nenhum tipo de pressão pessoal, reingressei formalmente no Partido Conservador e no Carlton Club, que deixara vinte anos antes.
Durante quase cinco anos, morei na casa vizinha à de Mr. Baldwin, no n° 11 de Downing Street. Quase todas as manhãs, passando através da casa dele a caminho do ministério, eu o visitava para alguns minutos de conversa na sala do Gabinete. Como fui um de seus principais colegas, assumo minha parcela de responsabilidade em tudo o que aconteceu. Aqueles cinco anos foram marcados por uma retomada muito expressiva no país. Foi um governo competente e tranquilo, durante um período em que, ano a ano, gradualmente houve melhoras e uma recuperação acentuada. Nada houve de sensacional ou controvertido de que pudéssemos nos gabar nos palanques. Porém, avaliada por qualquer parâmetro econômico e financeiro, a massa da população ficou em situação decididamente melhor, e as condições do país e do mundo mostraram-se mais tranquilas e mais férteis no final de nosso mandato do que em seu começo. Eis uma afirmação modesta, mas sólida.
Foi na Europa que aquele governo fez o que o distinguiu.
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Hindenburg agora ascende ao poder na Alemanha. No fim de fevereiro de 1925, morreu Friedrich Ebert, líder do partido social-democrata alemão antes da guerra e primeiro presidente da República da Alemanha após a derrota. Um novo presidente tinha de ser escolhido. Fazia muito tempo que todos os alemães eram criados num regime de despotismo paternal, temperado por extensos hábitos de liberdade de opinião e oposição parlamentar. A derrota lhes trouxera, em suas asas, formas e liberdades democráticas no mais alto grau. Mas a nação estava dilacerada e atônita com tudo aquilo por que havia passado. Muitos partidos e grupos disputavam a liderança e o governo. Desse tumulto emergiu um intenso desejo de recorrer ao velho marechal de campo von Hindenburg, que então vivia em sóbrio retraimento. Hindenburg era fiel ao Kaiser exilado e favorável ao restabelecimento de uma monarquia imperial “pautada no modelo inglês”. Era, claro, de longe a coisa mais sensata a fazer, embora fosse a que menos estava na moda. Quando lhe suplicaram que se candidatasse à presidência nos termos da constituição de Weimar, ele ficou profundamente perturbado. “Deixem-me em paz”, disse várias vezes.
Mas a pressão foi contínua e só o grande almirante von Tirpitz finalmente foi capaz de persuadi-lo a abandonar seus escrúpulos e suas inclinações diante do cumprimento do dever, ao qual ele sempre atendera. Os adversários de Hindenburg foram Marx, do Centro Católico, e Thälmann, o comunista. No domingo, 16 de abril, a Alemanha inteira votou. O resultado foi inesperadamente apertado: Hindenburg, 14.655.766 votos; Marx, 13.751.615; e Thälmann, 1.931.151. Hindenburg, que se erguia acima dos adversários por ser ilustre, relutante e desinteressado, foi eleito por uma margem inferior a um milhão de votos e sem maioria absoluta na contagem geral. Ele repreendeu seu filho Oskar por acordá-lo às sete horas para lhe dar a notícia: “Por que você quis me acordar uma hora antes? Continuaria a ser verdade às oito horas.” E voltou a dormir até seu horário habitual de levantar-se.
Na França, a eleição de Hindenburg foi vista, a princípio, como um ressurgimento do perigo alemão. Na Inglaterra houve reação mais serena. Eu, sempre desejoso de ver a Alemanha recuperar sua honra e seu respeito próprio e deixar morrer a amargura da guerra, não fiquei nem um pouco perturbado com a notícia. “É um velho muito sensato”, disse-me Lloyd George em nosso encontro seguinte; e realmente comprovou ser, enquanto teve suas faculdades. Até alguns de seus mais ferozes adversários foram forçados a admitir que era “melhor um Zero do que um Nero”.1 Todavia, Hindenburg tinha 77 anos e seu mandato deveria durar sete. Poucos esperavam que pudesse ser reeleito. Ele fez o melhor que pôde para ser imparcial com os diversos partidos e, certamente, seu exercício na presidência conferiu à Alemanha um vigor e um bem-estar mais sóbrios, sem ameaçar os vizinhos.
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Entrementes, em fevereiro de 1925, o governo alemão sugeriu um pacto mediante o qual as potências interessadas no Reno — sobretudo a Inglaterra, a França, a Itália e a Alemanha — firmassem um compromisso solene e duradouro com o governo americano, este na condição de fiador, no sentido de não travarem nenhuma guerra entre si. Propuseram também um pacto que garantisse expressamente a situação territorial existente no Reno. Era um acontecimento notável. Os Domínios Britânicos não se entusiasmaram. O general Smuts ansiava por evitar arranjos regionais. Os canadenses mostraram-se indiferentes, e apenas a Nova Zelândia dispôs-se incondicionalmente a aceitar a opinião do governo inglês. Mesmo assim, perseveramos. Para mim, a meta de pôr termo aos mil anos de conflito entre a França e a Alemanha afigurava-se um objetivo supremo. Se ao menos conseguíssemos entrelaçar tão estreitamente gauleses e teutônicos, em termos econômicos, sociais e morais, a ponto de impedir novas oportunidades de brigas e de fazer com que os velhos antagonismos perecessem na realização da prosperidade mútua e da interdependência, a Europa voltaria a se erguer. Parecia-me que o interesse supremo do povo inglês na Europa estava em aplacar a rixa franco-alemã, e que ele não tinha nenhum outro interesse equiparável ou contrário a esse. Essa ainda é minha opinião hoje em dia.
Em agosto, os franceses, com plena concordância da Inglaterra, responderam oficialmente à Alemanha. Ela deveria ingressar sem restrições na Liga das Nações, como passo inicial e indispensável. O governo alemão aceitou essa exigência. Isso significava que as condições dos tratados deveriam continuar em vigor, a menos ou até que fossem modificadas por acordo mútuo, e que nenhuma reivindicação específica de redução de armamentos aliados tivesse sido atendida. Outras exigências dos alemães, promovidas sob intensa pressão e excitação nacionalistas, para que se erradicasse do Tratado de Paz a cláusula da “culpa pela guerra”, para que se mantivesse em aberto a questão da Alsácia-Lorena e para a imediata evacuação de Colônia pelas tropas aliadas, não tiveram insistência do governo alemão e não teriam sido aceitas pelos aliados.
Com base nisso, a Conferência de Locarno foi formalmente aberta em 4 de outubro. Às margens desse lago sereno, os representantes de Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e Itália se reuniram. A conferência obteve: primeiro, um tratado de garantia mútua entre as cinco nações; segundo, tratados de arbitragem entre Alemanha e França, Alemanha e Bélgica, Alemanha e Polônia, e Alemanha e Tchecoslováquia; terceiro, acordos especiais entre a França e a Polônia e entre a França e a Tchecoslováquia, mediante os quais a França se comprometia a lhes prestar assistência, caso um rompimento do Pacto Ocidental fosse seguido de um recurso às armas não provocado. Assim foi que as democracias europeias ocidentais concordaram em assegurar a paz entre si em qualquer circunstância e em se manter unidas contra qualquer dentre elas que viesse a romper o contrato e marchasse agressivamente sobre território irmão. Quanto às relações entre a França e a Alemanha, a Inglaterra comprometeu-se solenemente a ir em socorro de qualquer desses dois estados que viesse a ser alvo de uma agressão não provocada. Esse amplo compromisso militar foi aceito pelo parlamento e calorosamente endossado pela nação. Em vão se podem perscrutar os livros de história em busca de um paralelo para empreitada dessa monta.
A questão de saber se havia por parte da França ou da Inglaterra qualquer obrigação de desarmar-se, ou de um desarmamento até algum nível específico, não foi tratada. Eu fora introduzido nessas questões numa etapa inicial, como ministro das Finanças. Minha opinião sobre essa garantia bilateral era que, enquanto a França continuasse armada e a Alemanha desarmada, esta não poderia atacar aquela; e que, por outro lado, a França nunca atacaria a Alemanha, caso isso implicasse automaticamente a transformação da Inglaterra numa aliada alemã. Assim, embora a proposta parecesse perigosa em tese — comprometendo-nos, de fato, a tomar partido de um lado ou de outro em qualquer guerra franco-alemã que pudesse eclodir — havia pouca probabilidade de tal desastre um dia vir a ocorrer; e essa era a melhor maneira de impedi-lo. Assim, sempre fui igualmente contrário ao desarmamento da França e ao rearmamento da Alemanha, em virtude do perigo muito maior que isso representaria, de imediato, para a Inglaterra. Por outro lado, a Inglaterra e a Liga das Nações — na qual, como parte do acordo, a Alemanha ingressou — ofereciam uma proteção real ao povo alemão. Assim, criou-se um equilíbrio em que a Inglaterra, cujo grande interesse era a cessação da querela entre a Alemanha e a França, tornou-se, em grande parte, mediadora e juiz. Esperava-se que esse equilíbrio pudesse durar vinte anos, durante os quais o armamento dos aliados se reduziria, gradativa e naturalmente, sob a influência da paz prolongada, da confiança crescente e do ônus financeiro. Evidente que haveria perigo se algum dia a Alemanha ficasse mais ou menos equiparada à França, e mais ainda caso se tornasse mais forte do que esta. Mas tudo isso parecia afastado pelos solenes compromissos do tratado.
O Pacto de Locarno concernia apenas à paz no Ocidente. Havia esperança de que abrisse caminho a um “Locarno do leste”. Muito nos alegraria que o perigo de uma guerra futura entre a Alemanha e a Rússia pudesse ter sido controlado dentro do mesmo espírito e por medidas semelhantes às adotadas quanto à possibilidade de uma guerra entre a Alemanha e a França. Mesmo a Alemanha de Stresemann,2 entretanto, estava pouco inclinada a fechar a porta às reivindicações alemãs no Leste ou a aceitar a situação territorial do tratado no tocante à Polônia, a Danzig, ao Corredor Polonês e à Alta Silésia. A Rússia soviética remoía ideias em seu isolamento, por trás do cordon sanitaire dos países antibolcheviques. Embora nossos esforços continuassem, nenhum progresso houve no Leste. Em momento algum abandonei minha ideia de tentar dar à Alemanha uma satisfação maior em sua fronteira oriental. Mas nenhuma oportunidade surgiu nesses curtos anos de esperança.
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Houve grande regozijo, no fim de 1925, acerca do tratado que emergiu da Conferência de Locarno. Mr. Baldwin foi o primeiro a assiná-lo, no Foreign Office. O ministro do Exterior, Mr. Austen Chamberlain, não dispondo de residência oficial, pediu-me que lhe emprestasse minha sala de jantar, no n° 11 de Downing Street, para um almoço íntimo e amistoso com Herr Stresemann. Todos nos reunimos num clima de grande amizade e pensamos no maravilhoso futuro que estaria reservado à Europa, se suas maiores nações se tornassem realmente unidas e se sentissem seguras. Depois que esse memorável documento recebeu a cordial anuência do parlamento, Mr. Austen Chamberlain foi agraciado com a Ordem da Jarreteira e o Prêmio Nobel da Paz. Sua realização foi o ponto alto da restauração da Europa e inaugurou três anos de paz e recuperação. Embora os velhos antagonismos estivessem apenas adormecidos e o rufar dos tambores de novos recrutamentos já se fizesse ouvir, tínhamos razão de esperar que o terreno assim solidamente conquistado abrisse a via de um novo passo adiante.
Em 1929, a situação da Europa era tranquila como não fora em vinte anos e não voltaria a ser em outros vinte. Havia um sentimento amistoso em relação à Alemanha após o nosso Tratado de Locarno e após a evacuação da Renânia pelo exército francês e pelas tropas aliadas, em data muito anterior à prevista em Versalhes. A nova Alemanha assumiu seu lugar na mutilada Liga das Nações. Sob a benigna influência dos empréstimos americanos e ingleses, a Alemanha estava renascendo rapidamente. Seus novos navios transoceânicos ganhavam o prêmio Blue Riband do Atlântico. Seu comércio dava saltos e a prosperidade interna amadurecia. A França e seu sistema de alianças também pareciam seguros na Europa. As cláusulas de desarmamento do Tratado de Versalhes não eram abertamente violadas. A marinha alemã era inexistente. Sua força aérea estava proibida e ainda não nascera. Havia na Alemanha muitas influências que se opunham firmemente, nem que fosse apenas por prudência, à ideia da guerra, e o Estado-Maior alemão não acreditava que os aliados lhe permitissem rearmar-se. Por outro lado, lá estava, à nossa frente, o que mais tarde chamei de “nevasca econômica”. O conhecimento dela estava restrito a alguns raros círculos financeiros, e estes foram intimidados a guardar silêncio sobre o que anteviram.
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A eleição geral de 1929 mostrou que a “oscilação do pêndulo” e o desejo normal de mudança eram fatores poderosos no eleitorado inglês. Os socialistas obtiveram uma pequena maioria sobre os conservadores na nova Câmara dos Comuns. Mr. Baldwin apresentou ao rei sua demissão. Todos nos dirigimos a Windsor, num trem especial, para entregar nossos selos de ofício e nossos cargos. Em 7 de junho, Mr. Ramsay MacDonald tornou-se primeiro-ministro, à testa de um governo minoritário, que dependia do voto dos liberais.
O primeiro-ministro socialista desejava que seu governo trabalhista se distinguisse por grandes concessões ao Egito, por uma ampla mudança constitucional na Índia e por um novo esforço de desarmamento mundial, ou, pelo menos, inglês. Eram metas em que ele podia contar com a ajuda liberal e em relação às quais, portanto, tinha maioria parlamentar. Nesse ponto começaram minhas divergências com Mr. Baldwin e, a partir de então, a relação em que havíamos trabalhado desde que ele me escolhera para ministro das Finanças, cinco anos antes, ficou sensivelmente alterada. Continuamos, é claro, a manter um contato pessoal afável, mas sabíamos não ter as mesmas coisas em mente. Minha ideia era que a oposição conservadora devia opor-se vivamente ao governo trabalhista em todas as grandes questões imperiais e nacionais, identificar-se com a majestade da Inglaterra, como fizera nos governos de Disraeli, Lord Beaconsfield, e de Lord Salisbury, e não hesitar em enfrentar controvérsias, mesmo que elas não evocassem imediata resposta da nação. Tanto quanto eu podia perceber, Mr. Baldwin achava que já iam muito longe os dias de qualquer afirmação vigorosa da grandeza imperial inglesa, e que a esperança do Partido Conservador estava numa composição com as forças liberais e trabalhistas e em manobras hábeis e oportunas, a fim de granjear para si fortes inclinações de opinião pública e grandes blocos de eleitores. Ele, sem dúvida, teve muito sucesso. Foi o maior dirigente partidário que os conservadores jamais tiveram. Disputou, como seu líder, cinco eleições gerais, das quais venceu três.
No tocante à Índia, ocorreu nossa dissensão definitiva. O primeiro-ministro, firmemente apoiado e até incentivado pelo vice-rei conservador, Lord Irwin (mais tarde, Lord Halifax), pressionou pela aprovação de seu plano de autogoverno indiano. Realizou-se em Londres uma portentosa conferência, na qual Mr. Gandhi, recém-liberto de um período de cômoda prisão, foi a figura central. Não é necessário acompanharmos nestas páginas os detalhes da controvérsia que ocupou as sessões parlamentares de 1929 e 1930. Quando da libertação de Mr. Gandhi, para que ele pudesse tornar-se o delegado da Índia nacionalista à conferência de Londres, atingi o ponto de ruptura em minhas relações com Mr. Baldwin. Ele parecia muito satisfeito com essa marcha dos acontecimentos, concordava em termos gerais com o primeiro-ministro e com o vice-rei, e liderou a oposição conservadora decididamente por esse caminho. Eu tinha certeza de que, como resultado final, perderíamos a Índia e de que imensas desgraças se abateriam sobre os povos hindus. Assim, depois de algum tempo, demiti-me do shadow cabinet3 em torno dessa questão, mas assegurei a Mr. Baldwin que lhe daria toda a ajuda que estivesse ao meu alcance na oposição ao governo socialista na Câmara dos Comuns, e que faria tudo o que fosse possível para garantir a derrota dos socialistas em qualquer eleição geral.
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O ano de 1929 chegou quase ao final de seu terceiro trimestre com a promessa e a aparência de uma prosperidade crescente, sobretudo nos EUA. Um otimismo extraordinário sustentou uma orgia de especulação. Escreveram-se livros para provar que a crise econômica era uma fase que fora finalmente dominada pela organização empresarial em expansão e pela ciência. “Parece que acabamos de uma vez por todas com os ciclos econômicos, tal como os conhecíamos”, disse o presidente da Bolsa de Valores de Nova York em setembro. Mas, em outubro, uma súbita e violenta tempestade varreu Wall Street. A intervenção dos mais poderosos instrumentos não conseguiu deter a maré das vendas em pânico. Um grupo de grandes bancos formou um pool de um bilhão de dólares para manter e estabilizar o mercado. Foi tudo em vão.
Toda a riqueza tão velozmente acumulada nas carteiras de títulos dos anos anteriores desfez-se em fumaça. A prosperidade de milhões de lares americanos havia crescido sobre uma estrutura gigantesca de crédito inflado, que subitamente se revelou um fantasma. Afora a especulação com ações em âmbito nacional, que até os mais famosos bancos haviam incentivado através de empréstimos fáceis, um vasto sistema de crediário na compra de casas, móveis, automóveis e inúmeros tipos de utensílios e artigos domésticos de luxo havia crescido. Ruíram juntos. As poderosas linhas de produção foram lançadas na tormenta e na paralisia. Apenas dias antes, tinha-se discutido a premente questão de saber onde estacionar os automóveis em que milhares de artífices e operários começavam a ir para seu trabalho cotidiano. Agora, as dores atrozes dos salários em declínio e do crescente desemprego afligiam a comunidade inteira, até então empenhada na mais ativa criação de toda sorte de artigos desejáveis a serem usufruídos por milhões. O sistema bancário americano era muito menos concentrado e menos solidamente ancorado do que o inglês. Vinte mil bancos locais suspenderam os pagamentos. O meio de troca de bens e serviços entre os homens caiu por terra, e a quebra de Wall Street reverberou tanto nos lares modestos quanto nos ricos.
Não se deve supor, no entanto, que a bela visão de riqueza e conforto muito maiores e mais amplamente compartilhados que havia arrebatado o povo americano nada tinha para sustentá-la senão a ilusão e o frenesi mercantil. Nunca, em nenhuma sociedade, quantidades tão imensas de toda sorte de produtos tinham sido fabricadas, comercializadas e consumidas. Na verdade, não há limite para os benefícios que os seres humanos são capazes de proporcionar uns aos outros através do mais alto exercício de sua diligência e habilidade. Essa esplêndida manifestação fora esfacelada e desperdiçada por fúteis processos imaginativos e por uma ganância de lucros que superava em muito a própria grande realização. Na esteira do colapso do mercado de ações, durante os anos de 1929 a 1932, vieram uma queda inexorável dos preços e os consequentes cortes na produção, provocando o desemprego em massa.
As consequências dessa perturbação da vida econômica tornaram-se mundiais. Seguiu-se uma contração generalizada do comércio, em virtude do desemprego e da produção decrescente. Impuseram-se restrições tarifárias para proteger os mercados internos. A crise generalizada trouxe consigo graves dificuldades monetárias e paralisou o crédito interno. Isso espalhou a ruína e o desemprego por todas as partes do mundo. O governo trabalhista-socialista de Mr. MacDonald, com todas as suas promessas abandonadas, viu o desemprego saltar diante de seus olhos, durante 1930 e 1931, de um para quase três milhões de pessoas. Dizia-se que nos Estados Unidos havia dez milhões de desempregados. Todo o sistema bancário da grande república foi lançado na confusão e no colapso temporário. Os desastres daí decorrentes recaíram sobre a Alemanha e outros países europeus. Mas ninguém morreu de fome no mundo de língua inglesa.
É sempre difícil, para um governo ou um partido que se fundamenta no ataque ao capital, preservar a confiança e o crédito que são tão importantes para a economia altamente artificial de uma ilha como a Inglaterra. O governo de Mr. MacDonald foi inteiramente incapaz de lidar com os problemas com que se confrontou. Não conseguiu obter a disciplina partidária ou produzir o vigor necessário sequer para equilibrar o orçamento. Nessas condições, um governo já minoritário e privado de toda a confiança financeira não podia sobreviver.
A incapacidade do Partido Trabalhista de enfrentar essa tempestade, o súbito colapso do crédito financeiro inglês e a fragmentação do Partido Liberal com seu pernicioso poder de fiel da balança levaram a uma coalizão nacional. Ao que parecia, somente um governo formado por todos os partidos seria capaz de enfrentar a crise. Mr. MacDonald e seu ministro das Finanças, com intensa emoção patriótica, tentaram arrastar a massa do Partido Trabalhista para essa composição. Mr. Baldwin, sempre disposto a deixar que outros ocupassem o cargo, desde que ele preservasse o poder, prontificou-se a servir sob Mr. MacDonald. Foi uma atitude que, embora merecedora de respeito, não correspondia aos fatos. Mr. Lloyd George ainda se recuperava de uma operação — grave, na idade dele — e Sir Herbert Samuel levou o grosso dos liberais para a composição pluripartidária.
Não fui convidado a participar do governo de coalizão. Eu estava politicamente afastado de Mr. Baldwin devido à questão da Índia. Opunha-me à política do governo trabalhista de Mr. MacDonald. Como muitos outros, sentira a necessidade de uma concentração nacional. Mas não fiquei surpreso nem insatisfeito ao ser deixado fora dela. Na verdade, continuei pintando em Cannes enquanto durou a crise política. Se tivesse sido chamado a participar, não sei dizer o que teria feito. É supérfluo discutir tentações duvidosas que nunca existiram. Mas fiquei em situação incômoda no cenário político. Eu passara 15 anos em funções ministeriais e, naquele momento, estava ocupado com minha biografia de Marlborough. Os dramas políticos são muito excitantes, na hora em que acontecem, para os que estão envolvidos no tumulto e no redemoinho da política, mas posso afirmar com sinceridade que nunca tive ressentimento e, menos ainda, dor, por ter sido tão decididamente descartado num momento de tensão nacional. Havia um inconveniente, porém. Durante todos aqueles anos, desde 1905, eu me sentara num ou noutro dos bancos da frente do parlamento, e sempre tivera a vantagem de falar do box4 no qual o orador pode apoiar suas anotações e fingir, com maior ou menor sucesso, que está improvisando, à medida que fala. Agora, com certa dificuldade, tive de encontrar um lugar nos bancos de antes dos degraus do lado do governo, onde precisava segurar minhas notas na mão todas as vezes que falava e concorrer, para falar, com outros conhecidos ex-ministros. Vez por outra, no entanto, eu era chamado.
A formação do novo governo não pôs fim à crise financeira. Voltando do exterior, encontrei tudo na dependência de uma inevitável eleição geral. O veredicto do eleitorado foi digno da nação inglesa. Formara-se um governo nacional sob a chefia de Mr. Ramsay MacDonald, fundador do Partido Trabalhista-Socialista. Eles propuseram ao povo um programa de severa austeridade e sacrifício. Foi uma primeira versão do “sangue, trabalho, suor e lágrimas”, sem o estímulo ou as exigências da guerra e do perigo mortal. Teve-se que praticar a mais rígida economia. Todos teriam seus vencimentos, salários ou rendas reduzidos. A massa da população foi solicitada a votar por regime de abnegação. E respondeu como sempre faz quando provocada em seu espírito heroico. Embora, ao contrário de suas declarações, o governo abandonasse o padrão-ouro, e embora Mr. Baldwin fosse obrigado a suspender — para sempre, como se veio a constatar — justamente os pagamentos da dívida americana que ele havia imposto ao Gabinete de 1923, a confiança e o crédito foram restabelecidos. Houve uma esmagadora maioria favorável ao novo governo. Mr. MacDonald, como primeiro-ministro, foi seguido por apenas sete ou oito membros de seu próprio partido, mas somente cinquenta de seus adversários trabalhistas e de seus ex-seguidores foram reeleitos para o parlamento. Sua saúde e suas faculdades estavam decaindo rapidamente, e ele reinou em crescente decrepitude, no topo do sistema inglês, por quase quatro fatídicos anos. E logo no início desses quatro anos, chegou Hitler.