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A cena escurece, 1934

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A ascensão de Hitler à Chancelaria, em 1933, não fora vista com entu­siasmo em Roma. O nazismo era encarado como uma versão cruenta e bru­talizada da tese fascista. As ambições de uma Grande Alemanha em relação à Áustria e no Sudeste Europeu eram bem conhecidas. Mussolini anteviu que em nenhuma dessas regiões os interesses italianos coincidiriam com os da nova Alemanha. E não teve de esperar muito pela confirmação.

A conquista da Áustria pela Alemanha era uma das ambições mais acalentadas por Hitler. A primeira página de Mein Kampf contém a frase: “A Áustria alemã deve retornar à Grande Pátria alemã.” Assim, desde o momento da conquista do poder em janeiro de 1933, o governo nazista alemão voltou os olhos para Viena. Hitler ainda não podia arcar com um choque com Mussolini, cujos interesses na Áustria tinham sido ruidosa­mente proclamados. Até a infiltração e as atividades secretas tinham de ser empregadas com cautela por uma Alemanha ainda militarmente fraca. A pressão sobre a Áustria, no entanto, teve início logo nos primeiros meses. Fizeram-se pedidos incessantes ao governo austríaco para forçar a entrada de membros do Partido Nazi austríaco, satélite do alemão, tanto no ministério quanto em postos-chave da administração central. Os nazis da Áustria eram treinados numa legião austríaca organizada na Baviera. Atentados a bomba contra ferrovias e centros de turismo, bem como aviões alemães despejando panfletos sobre Salzburgo e Innsbruck, perturbavam a vida cotidiana da república. Dollfuss, o chanceler austríaco, era igualmente alvo de oposição por parte dos socialistas, dentro do país, e das intenções externas alemãs, contrárias à independência da Áustria. E essa não era a única ameaça ao estado austríaco. Seguindo o mau exemplo de seus vizinhos alemães, os socialistas da Áustria haviam organizado um exército particular para der­rubar a decisão das urnas. Esses dois perigos haviam pairado sobre Dollfuss durante 1933. A única fonte para a qual ele podia voltar-se em busca de proteção, e da qual já recebera garantias de apoio, era a Itália fascista. Em agosto, ele se encontrou com Mussolini em Riccione. Um estrito acordo pessoal e político foi firmado entre os dois. Dollfuss acreditou que a Itália garantiria o ringue da luta e sentiu-se com força suficiente para agir contra um de seus adversários — os socialistas austríacos.

Em janeiro de 1934, Suvich, principal assessor de Mussolini para assuntos externos, visitou Viena e declarou, num gesto de advertência à Alemanha, que a Itália apoiava publicamente a independência da Áustria. Três semanas depois, o governo de Dollfuss tomou providências contra as organizações socialistas de Viena. O Heimwehr,1 sob a chefia do major Fey, que pertencia ao partido de Dollfuss, recebeu ordens de desarmar a força equivalente e igualmente ilegal controlada pelos socialistas austríacos. Estes resistiram energicamente. Em 12 de fevereiro, eclodiram combates de rua na capital. Em poucas horas, as forças socialistas foram batidas. Esse evento não só levou Dollfuss a se aproximar mais da Itália, como também o fortaleceu na etapa seguinte de sua tarefa contra a conspiração nazista. Por outro lado, muitos dos socialistas ou comunistas derrotados, em sua amargura, bandearam-se para o campo nazista. Na Áustria, tal como na Alemanha, a rixa católico-socialista ajudou os nazis.

Até meados de 1934, o controle dos acontecimentos ainda estava nas mãos do governo de Sua Majestade, sem risco de guerra. A qualquer mo­mento, em parceria com a França e por intermédio da Liga das Nações, ele poderia influir com um poder esmagador no movimento hitlerista, em relação ao qual a Alemanha estava profundamente dividida. Isso não teria implicado nenhum derramamento de sangue. Mas essa fase estava se es­gotando. Aproximava-se o limiar de uma Alemanha armada, sob controle nazi. Mesmo assim, por mais incrível que pareça, durante boa parte desse ano fundamental, Mr. MacDonald, armado com o poder político de Mr. Baldwin, continuou a trabalhar pelo desarmamento da França. Houve, na verdade, um lampejo de união europeia contra a ameaça alemã. Em 17 de fevereiro de 1934, os governos inglês, francês e italiano fizeram uma declaração conjunta a favor da manutenção da independência austríaca e, um mês depois, a Itália, a Hungria e a Áustria assinaram os chamados Protocolos de Roma, que estipulavam a consulta mútua na eventualidade de uma ameaça a qualquer das três partes. Mas Hitler tornava-se cada vez mais forte e, em maio e junho, aumentaram as atividades subversivas por toda a Áustria. Dollfuss enviou imediatamente relatórios sobre esses atos terroristas a Suvich, com uma nota deplorando seus efeitos prejudiciais para o comércio e o turismo austríacos.

Com esse dossiê na mão, Mussolini foi a Veneza, em 14 de junho, para se encontrar com Hitler pela primeira vez. O chanceler alemão desceu de sua aeronave trajando uma capa impermeável marrom e um chapéu comum, e andou para o meio de uma plêiade de reluzentes uniformes fascistas, com um Duce resplandecente e majestoso à testa. Ao avistar o convidado, Mussolini murmurou para seu ajudante: Non mi piace [Não me agrada]. Nesse estranho encontro, houve apenas uma troca geral de ideias, com dissertações mútuas sobre as virtudes da ditadura segundo os modelos alemão e italiano. Mussolini ficou claramente perplexo com a personalidade e o linguajar de seu convidado. Resumiu sua impressão final nestas palavras: “Um monge tagarela.” Mas obteve algumas garantias de relaxamento da pressão alemã sobre Dollfuss. Ciano, o genro de Mussolini, disse aos jornalistas após a reunião: “Vocês vão ver. Não acontecerá mais nada.”

Mas a pausa que se seguiu nas atividades alemãs não se deveu ao apelo de Mussolini e sim às próprias preocupações internas de Hitler.

A conquista do poder havia exposto uma divergência profunda entre o Führer e muitos dos que o tinham impulsionado para o topo. Sob a lide­rança de Röhm, a SA representava cada vez mais os elementos revolucioná­rios do movimento. Havia membros destacados do partido, como Gregor Strasser, ardoroso defensor da revolução social, temendo que, ao chegar ao topo, Hitler fosse simplesmente dominado pela hierarquia existente, pelo Reichswehr, pelos banqueiros e pelos industriais. Não seria o primeiro líder revolucionário a derrubar a escada pela qual havia ascendido às alturas. Para a tropa da SA “camisa parda”, a vitória de janeiro de 1933 deveria trazer no bojo a liberdade de pilhagem, não apenas dos judeus e dos espe­culadores, mas também das classes abastadas e estabelecidas da sociedade. Rumores sobre uma grande traição por parte de seu líder começaram a se espalhar por alguns círculos do partido. Röhm, o chefe de estado-maior, agiu com energia a partir desse impulso. Em janeiro de 1933, a SA contava com um efetivo de 400 mil homens. Na primavera de 1934, ele já havia recrutado e organizado quase três milhões de homens. Em sua nova posição, Hitler estava inquieto com o crescimento dessa máquina gigantesca, que, embora professasse uma fervorosa lealdade ao seu nome e, em sua maioria, fosse profundamente apegada a ele, começava a escapar de seu controle pessoal. Até então, ele possuíra um exército particular. Agora, dispunha do exército nacional. Não tinha intenção de trocar um pelo outro. Queria os dois e queria poder usá-los, conforme os acontecimentos exigissem, para controlar um ao outro. Por conseguinte, cabia-lhe agora lidar com Röhm. “Estou decidido”, declarou Hitler aos líderes da SA nessa ocasião, “a repri­mir severamente qualquer tentativa de subversão da ordem vigente. Com a mais severa energia, serei contra uma segunda onda revolucionária, pois ela traria consigo o caos inevitável. Qualquer um que levantar a cabeça contra a autoridade estabelecida do estado será tratado com rigor, seja qual for sua posição.”

Apesar de suas desconfianças, Hitler não se convenceu facilmente da deslealdade de seu companheiro do putsch de Munique, que fora, nos sete anos anteriores, o chefe do estado-maior de seu exército de camisas pardas. Em dezembro de 1933, quando a união do partido com o estado fora proclamada, Röhm tornara-se membro do ministério alemão. Uma das consequências dessa união deveria ser a fusão dos camisas pardas com o Reichswehr. O rápido progresso do rearmamento nacional trouxe a questão do status e do controle de todas as forças armadas alemãs para o primeiro plano da política. Em fevereiro de 1934, Mr. Eden chegou a Berlim e, no decorrer das conversações, Hitler concordou provisoriamente em dar certas garantias sobre o caráter não militar da SA. Röhm já estava em atritos cons­tantes com o general von Blomberg, chefe do Estado-Maior do Exército. A essa altura, ele temia o sacrifício do exército partidário que levara tantos anos para construir e, apesar das advertências acerca da gravidade de sua conduta, publicou, no dia 18 de abril, um inconfundível desafio:

A Revolução que fizemos não foi uma revolução nacional, mas uma Re­volução Nacional-Socialista. Chegaríamos até a grifar esta última palavra, “Socialista”. O único baluarte que existe contra a reação é representado por nossas tropas de choque, pois elas são a encarnação absoluta da ideia revolucionária. O militante Camisa Parda, desde o primeiro dia, compro­meteu-se com o caminho da revolução e não se desviará um milímetro dele enquanto nossa meta final não for atingida.

Nessa ocasião, Röhm omitiu o “Heil Hitler!” que era a conclusão invariável dos discursos bombásticos dos camisas pardas.

No decorrer de abril e maio, Blomberg queixou-se continuamente a Hitler da insolência e das atividades da SA. O Führer tinha que escolher entre os generais que o detestavam e os capangas de camisa parda a quem tanto devia. Escolheu os generais. No início de junho, numa conversa de cinco horas, Hitler fez um último esforço de conciliação e entendimento com Röhm. Mas nenhum acordo era possível com aquele fanático anormal, devorado pela ambição. A Grande Alemanha mística e hierárquica com que Hitler sonhava e a República Proletária do Exército do Povo, desejada por Röhm, eram separadas por um abismo intransponível.

Dentro da estrutura dos camisas pardas formara-se uma pequena elite altamente treinada, que usava uniformes negros e era conhecida como SS, ou, mais tarde, “os camisas pretas”. Essas unidades destinavam-se à proteção pessoal do Führer e a algumas tarefas especiais e confidenciais. Eram comandadas por um ex-avicultor malsucedido, Heinrich Himmler. Antevendo o choque iminente entre Hitler e o Exército, de um lado, e Röhm e os camisas pardas, de outro, Himmler tomou o cuidado de transportar a SS para o campo de Hitler. Por outro lado, Röhm tinha defensores de grande influência dentro do partido, que, como Gregor Strasser, estavam vendo seus planos ferozes de uma revolução social postos de lado. O Reichswehr também tinha seus rebeldes. O ex-chanceler von Schleicher nunca perdoara a derrota em janeiro de 1933 e não o terem os comandantes do exército escolhido como suces­sor de Hindenburg. Num choque entre Röhm e Hitler, Schleicher viu uma oportunidade. Foi tão imprudente que chegou a insinuar ao embaixador francês em Berlim que a queda de Hitler não estava longe. Repetia a linha de ação que havia adotado no caso de Brüning. Mas os tempos tinham-se tornado mais perigosos.

Por muito tempo se há de discutir, na Alemanha, se Hitler foi forçado a partir para o ataque pela iminência de uma conspiração de Röhm, ou se ele e os generais, temendo o que pudesse ocorrer, optaram por uma liquidação completa enquanto detinham o poder. Claramente, era do interesse de Hitler e da facção vitoriosa defender a ideia de um complô. É improvável que Röhm e os camisas pardas tivessem realmente chegado a esse ponto. Eles eram mais uma movimentação ameaçadora do que uma conspiração, embora a linha divisória pudesse ser cruzada a qualquer momento. É certo que estavam reunindo forças. Também é certo que foram detidos.

Os fatos sucederam-se, então, com rapidez. Em 25 de junho, o Reichswehr entrou em prontidão e distribuiu munição aos camisas pretas. Do lado oposto, os camisas pardas receberam ordens de ficar em estado de alerta e, com o consentimento de Hitler, Röhm convocou uma reunião para o dia 30 de junho, para que todos os seus principais líderes se reunissem em Wiessee, nos lagos da Baviera. Hitler recebeu advertências sobre um grande perigo no dia 29. Voou para Godesberg, onde Goebbels foi ao seu encontro com notícias alarmantes de uma rebelião iminente em Berlim. Segundo Goebbels, o ajudante de Röhm, Karl Ernst, recebera ordens de tentar um levante. Isso parece improvável. Na verdade, Ernst estava em Bremen, prestes a embarcar desse porto em lua de mel.

De posse dessa informação, verdadeira ou falsa, Hitler tomou decisões instantâneas. Ordenou a Göring que assumisse o controle em Berlim. Embarcou em seu avião rumo a Munique, decidido a deter pessoalmente seus principais oponentes. No clímax de vida ou morte em que a situação então se transformara, ele se revelou uma personalidade terrível. Imerso em obscuros pensamentos, ocupou o assento do copiloto durante toda a viagem. O avião aterrissou num campo de pouso perto de Munique às quatro horas de 30 de junho. Hitler tinha consigo, além de Goebbels, cerca de meia dúzia de homens de sua escolta pessoal. Dirigiu-se à Braunhaus, a Casa Parda, em Munique, convocou os líderes da SA local à sua presença e lhes deu voz de prisão. Às seis horas, acompanhado apenas por Goebbels e sua pequena escolta, seguiu de carro para o lago Wiessee.

Röhm estivera doente no verão de 1934 e fora para o Wiessee tratar-se. Às sete horas, o cortejo de automóveis do Führer chegou à frente do chalé de Röhm. Sozinho e desarmado, Hitler subiu as escadas e entrou no quarto dele. Nunca saberemos o que houve entre os dois. Röhm foi apanhado totalmente de surpresa, e ele e sua escolta pessoal foram presos sem incidentes. O pequeno grupo, levando seus prisioneiros, partiu então para Munique pela estrada. Sucede que logo deparou com uma fileira de caminhões repletos de camisas pardas armados, a caminho da aclamação de Röhm na conferência convocada para a hora do almoço em Wiessee. Hitler saltou de seu carro, chamou o oficial que estava no comando e, com confiante autoridade, ordenou-lhe que levasse seus homens para casa. Foi prontamente obedecido. Se tivesse chegado uma hora depois — ou eles, uma hora antes — alguns importantes acontecimentos teriam tomado um rumo diferente.

Na chegada a Munique, Röhm e sua comitiva foram postos na mesma prisão em que ele e Hitler tinham estado confinados juntos, dez anos antes. Naquela tarde, começaram as execuções. Foi posto um revólver na cela de Röhm, mas, como ele declinasse do convite, a porta foi aberta minutos depois e ele crivado de balas. A tarde inteira, as execuções prosseguiram em Munique, com pequenos intervalos. Os pelotões de fuzilamento, compostos de oito homens, tinham que ser substituídos de tempos em tempos, em vir­tude da tensão mental dos soldados. Durante várias horas, porém, repetidos disparos fizeram-se ouvir, aproximadamente a cada dez minutos.

Enquanto isso, em Berlim, tendo recebido notícias de Hitler, Göring seguiu procedimento semelhante. Ali, porém, na capital, a fuzilaria espa­lhou-se para além da hierarquia da SA. Schleicher e sua mulher, que se atirou na frente dele, foram alvejados em casa. Gregor Strasser foi preso e executado. O secretário particular e o círculo mais íntimo de Papen também foram mortos a tiros, mas, por alguma razão desconhecida, ele próprio foi poupado. No quartel de Lichterfelde, em Berlim, Karl Ernst, capturado em Bremen e trazido de volta, foi ao encontro de seu destino; e ali, tal como em Munique, as saraivadas dos executores foram ouvidas o dia inteiro. Em toda a Alemanha, durante essas 24 horas, pereceram muitos homens não relacionados com a conspiração de Röhm, vítimas de atos pessoais de vingança, em alguns casos por rixas muito antigas. A estimativa do total de pessoas “liquidadas” varia entre cinco e sete mil.

No fim da tarde desse dia sangrento, Hitler retornou a Berlim de avião. Era hora de pôr fim à matança, que se espalhava a cada momento. Naquela noite, um certo número de membros da SS, que, por excesso de zelo, havia exagerado um pouco na execução dos prisioneiros, foi por sua vez executa­do. Por volta de uma hora da manhã de 1° de julho, os sons de disparos cessaram. Mais tarde, no mesmo dia, o Führer apareceu na sacada da Chancelaria para receber a aclamação das multidões de Berlim, onde muitos supunham que ele mesmo tinha sido uma vítima. Uns dizem que ele parecia desfigurado, outros, que tinha um ar triunfante. É bem possível que fossem as duas coisas. Sua presteza e implacabilidade tinham salvo seus objetivos e, sem dúvida, sua vida. Nessa “Noite dos Longos Punhais”, como ficou sendo chamada, a unidade da Alemanha nacional-socialista foi preservada para estender sua maldição ao mundo inteiro.

O massacre, por mais explicável que fosse pelas forças hediondas em ação, mostrou que o novo senhor da Alemanha não se deteria diante de nada e que a situação na Alemanha não tinha nenhuma semelhança com a de um país civilizado. Uma ditadura baseada no terror e exalando um cheiro fétido de sangue havia se apresentado ao mundo. O antissemitismo era feroz e ostensivo, e o sistema dos campos de concentração já estava em pleno funcio­namento para todas as classes desagradáveis ou politicamente dissidentes. Fui profundamente afetado por esse episódio. Todo o processo do rearmamento alemão, do qual havia agora uma prova esmagadora, pareceu-me investido de uma coloração implacável e sinistra. Reluzia e ofuscava.

No início de julho de 1934, houve muitas idas e vindas pelas trilhas montanhosas que ligam a Baviera ao território austríaco. No fim do mês, um mensageiro alemão caiu em mãos da polícia austríaca de fronteira. Carregava documentos, inclusive cifras de códigos secretos, que mostravam um plano completo de revolta chegando à maturação. O organizador do coup d’état deveria ser Anton von Rintelen, ao tempo embaixador austríaco na Itália. Dollfuss e seus ministros demoraram a reagir às advertências de uma crise próxima e aos sinais de uma revolta iminente, que se evidenciaram nas pri­meiras horas do dia 25 de julho. Os adeptos dos nazis em Viena mobilizaram-se durante a manhã. Pouco antes de 13 horas, um pelotão de rebeldes armados entrou na Chancelaria, e Dollfuss, atingido por dois tiros de revólver, foi deixado ali para se esvair em sangue até a morte. Outro destacamento de nazistas tomou a estação de rádio local e anunciou a renúncia do governo de Dollfuss e a assunção de Rintelen à chancelaria.

Mas os outros membros do gabinete de Dollfuss reagiram com firmeza e energia. O presidente, dr. Miklas, emitiu uma determinação formal de que a ordem fosse restabelecida a qualquer preço. O dr. Schuschnigg assumiu o governo. A maioria dos componentes do exército e da polícia austríacos cerrou fileiras em torno de seu governo e sitiou o prédio da Chancelaria, onde, cercado por um pequeno grupo de rebeldes, Dollfuss agonizava. A revolta também havia eclodido nas províncias, e alguns pelotões da legião austríaca na Baviera cruzaram a fronteira. A essa altura, Mussolini havia recebido a notícia. Telegrafou imediatamente, prometendo o apoio italiano à independência austríaca. Voando especialmente até Veneza, o Duce recebeu a viúva do dr. Dollfuss com todas as pompas da solidariedade. Ao mesmo tempo, três divisões italianas foram despachadas para o Passo de Brenner. Diante disso, Hitler, que conhecia os limites de sua força, retrocedeu. O embaixador alemão em Viena e outros altos funcionários implicados no levante foram chamados de volta ou demitidos. A tentativa havia fracassado. Seria preciso um processo mais longo. Papen, recém-poupado do banho de sangue, foi nomeado embaixador da Alemanha em Viena, com instruções de trabalhar com mais sutileza.

Em meio a essas tragédias e sobressaltos, o idoso marechal Hindenburg, havia alguns meses quase completamente senil e, desse modo, mais do que nunca um instrumento do Reichswehr, expirou. Hitler tornou-se o chefe de estado alemão, mantendo ao mesmo tempo o cargo de primeiro-ministro. Agora, era o soberano da Alemanha. Seu acordo com o Reichswehr fora selado e mantido pelo expurgo de sangue. Os camisas pardas tinham sido reduzidos à obediência e reafirmaram sua lealdade ao Führer. Todos os ini­migos e rivais em potencial tinham sido extirpados de suas fileiras. Daí por diante, perderam sua influência e se transformaram numa espécie de guarda-civil especial para ocasiões de cerimônia. Os camisas pretas, por outro lado, com seu número aumentado e fortalecidos pelo privilégio e pela disciplina, tornaram-se, sob a chefia de Himmler, uma guarda pretoriana da pessoa do Führer, um contrapeso para os comandantes e a casta militar do exército e também uma tropa política apta a armar com considerável força militar as atividades da polícia secreta, a Gestapo, então em expansão. Bastava apenas recobrir esses poderes com a sanção formal de um plebiscito previamente manipulado para tornar a ditadura de Hitler absoluta e perfeita.

Os acontecimentos na Áustria aproximaram a França e a Itália, e o choque do assassinato de Dollfuss levou a contatos de estado-maior. A ameaça à independência austríaca promoveu uma revisão das relações franco-italianas, abrangendo não apenas o equilíbrio do poder no Mediterrâneo e na África do Norte, mas também as posições relativas da França e da Itália no sudeste europeu. Mas Mussolini estava ansioso não apenas por salvaguardar a posição da Itália na Europa contra a potencial ameaça alemã, como também por ga­rantir seu futuro imperial na África. Contra a Alemanha, um relacionamento estreito com a França e a Inglaterra seria útil; mas, no Mediterrâneo e na África, as discordâncias com essas duas nações talvez fossem inevitáveis. O Duce pôs-se a imaginar se a necessidade comum de segurança sentida pela Itália, a França e a Inglaterra não induziria esses dois ex-aliados da Itália a aceitarem o programa imperialista italiano na África. De qualquer modo, esse parecia ser um curso promissor para a política italiana.

A França, então governada por M. Doumergue no cargo de primeiro-ministro, e tendo M. Barthou como ministro do Exterior, ansiava de longa data por chegar a um acordo formal sobre medidas de segurança no Leste. A relutância inglesa em assumir compromissos além do Reno, a recusa alemã a firmar acordos com a Polônia e a Tchecoslováquia, os temores da “Pequena Entente”2 acerca das intenções russas e a desconfiança russa em relação ao Ocidente capitalista, tudo isso se uniu para frustrar esse projeto. Em setembro de 1934, entretanto, Louis Barthou decidiu ir adiante. Seu plano original era propor um “pacto oriental” que agrupasse a Alemanha, a Rússia, a Polônia, a Tchecoslováquia e os países bálticos, com base numa garantia francesa para as fronteiras europeias da Rússia e numa garantia russa para as fronteiras orientais da Alemanha. A Alemanha e a Polônia opuseram-se ao “pacto oriental”, mas Barthou conseguiu obter o ingresso da Rússia na Liga das Nações em 18 de setembro de 1934. Foi um passo importante. Litvinov, que representava o governo soviético, era versado em todos os aspectos das relações exteriores. Adaptou-se ao ambiente da Liga das Nações e enunciou com tanto sucesso o discurso moral que ela professava, que logo se transformou numa figura de destaque.

Em sua busca de aliados contra a nova Alemanha, à qual se dera a possi­bilidade de crescer, era natural que a França voltasse os olhos para a Rússia e tentasse recriar o equilíbrio de poder que havia existido antes da guerra. Mas, em outubro, ocorreu uma tragédia. O rei Alexandre, da Iugoslávia, fora convidado a uma visita oficial a Paris. Desembarcou em Marselha, foi recepcionado por M. Barthou e com ele partiu de automóvel, acompanha­do ainda pelo general Georges, através da multidão que se aglomerava nas ruas para dar as boas-vindas, colorida por suas bandeiras e flores. Mais uma vez, dos tenebrosos recônditos do submundo sérvio e croata irrompeu um hediondo complô homicida no palco europeu, e, tal como em Sarajevo em 1914, um bando de assassinos dispostos a dar sua vida estava ao alcance da mão. As providências francesas de policiamento tinham sido descuidadas e informais. Uma figura arremessou-se da multidão ovacionante, subiu no estribo do carro e descarregou sua pistola automática no rei e nos outros ocupantes do veículo, sendo todos atingidos. O assassino foi imediatamente derrubado e morto pelos guardas republicanos montados, por trás dos quais havia-se infiltrado. Sucedeu-se uma cena de desvairada confusão. O rei Alexandre expirou quase imediatamente. O general Georges e M. Barthou desceram do carro banhados de sangue. O general estava fraco demais para se mexer, mas logo recebeu socorros médicos. O ministro saiu vagando pela multidão. Passaram-se vinte minutos antes que fosse atendido. Ele já havia perdido muito sangue; tinha 72 anos e morreu em poucas horas. Foi um duro golpe para a política externa francesa, que, sob a direção dele, começava a assumir uma forma coerente. M. Barthou foi sucedido como ministro do Exterior por Pierre Laval.

A trajetória e o destino vergonhosos reservados a Laval não devem obscurecer a realidade de sua força e capacidade pessoais. Ele tinha uma visão clara e nítida. Acreditava que a França devia evitar a guerra a todo custo e tinha a esperança de conseguir isso por meio de acordos com os ditadores da Itália e da Alemanha, contra cujos sistemas não alimentava nenhum preconceito. Laval desconfiava da Rússia soviética. Apesar de seus protestos ocasionais de amizade, não gostava da Inglaterra e a julgava uma aliada sem valor. Nessa ocasião, de fato, a reputação inglesa não estava muito alta na França. O objetivo primordial de Laval era chegar a um entendimento de­finitivo com a Itália e o momento lhe pareceu adequado. O governo francês estava obcecado com o perigo alemão e disposto a fazer grandes concessões para conquistar a simpatia da Itália. Em janeiro de 1935, Laval foi a Roma e assinou uma série de acordos com o objetivo de eliminar os principais obstáculos entre os dois países. Os dois governos estavam unidos no tocante à ilegalidade do rearmamento alemão. Concordaram em consultar-se um ao outro na eventualidade de futuras ameaças à independência da Áustria. Na esfera colonial, a França dispôs-se a fazer concessões governamentais no tocante à situação dos italianos na Tunísia e entregou à Itália algumas faixas de território nas fronteiras da Líbia e da Somália, junto com uma participação de 20% na ferrovia Djibuti-Adis-Abeba. Essas conversações destinavam-se a lançar as bases de discussões mais formais entre a França, a Itália e a Inglaterra sobre uma frente comum contra a crescente ameaça alemã. Todas foram inutilizadas, nos meses subsequentes, pela ocorrência da agressão italiana na Abissínia.

Em dezembro de 1934, houve um choque entre soldados italianos e abissínios nas fronteiras da Abissínia e da Somália italiana. Seria o pretexto para que se apresentassem claramente ao mundo as reivindicações italianas sobre o reino etíope. Assim, o problema de conter a Alemanha na Europa passou, desde então, a ser confundido e distorcido pelo destino da Abissínia.

1 Grupo paramilitar nacionalista de “vo­luntários da manutenção da ordem”. (N.T.)

2 Aliança entre Sérvia, Croácia, Eslovênia, Tchecoslováquia e Romênia para manter as fronteiras de 1920. (N.T.)