Hitler dá o bote, 1936
Quando retornei, no fim de janeiro de 1936, percebi um novo clima na Inglaterra. A conquista da Abissínia por Mussolini e os métodos brutais pelos quais fora obtida, o choque das negociações de Hoare-Laval, o desconcerto da Liga das Nações e a evidente ruptura da “segurança coletiva” haviam alterado o estado de ânimo, não apenas dos partidos Trabalhista e Liberal, mas de uma grande parcela da opinião bem-intencionada, mas até então inútil. Todas essas forças dispunham-se agora a considerar a guerra contra a tirania fascista ou nazista. Longe de ser excluído do pensamento legítimo, o uso da força tornou-se, pouco a pouco, um ponto decisivo na mente de uma vasta massa de pessoas amantes da paz, e mesmo de muitos que até então haviam-se orgulhado de ser chamados pacifistas. Mas a força, de acordo com os princípios a que eles se submetiam, só poderia ser usada por iniciativa e com a autorização da Liga das Nações. Embora os dois partidos oposicionistas continuassem a se opor a todas as providências de rearmamento, abriu-se um imenso espaço para o acordo. Tivesse o governo de Sua Majestade estado à altura da ocasião, poderia ter conduzido um povo unido para a tarefa dos preparativos, dentro de um espírito de emergência.
O governo reafirmou sua política de moderação, meias medidas e manutenção da calma. Para mim, era espantoso que o governo não procurasse utilizar toda a crescente harmonia então existente na nação. Por meio disso, ele teria fortalecido enormemente a si mesmo e obtido o poder de fortalecer o país. Mas Mr. Baldwin não tinha essas inclinações. Estava envelhecendo depressa. Apoiava-se na grande maioria que a eleição lhe concedera, e o Partido Conservador continuou tranquilo em suas mãos.
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Depois de se haver permitido que a Alemanha de Hitler se rearmasse, sem uma interferência ativa dos aliados e das antigas potências associadas, uma Segunda Guerra Mundial era quase certa. Quanto mais se adiasse um decisivo teste de força, piores seriam nossas chances, primeiro, de deter Hitler sem uma luta séria, e, numa segunda etapa, de sairmos vitoriosos após uma terrível provação. No verão de 1935, a Alemanha havia restabelecido o recrutamento militar, em desobediência aos tratados. A Inglaterra havia perdoado isso e, através de um acordo separado, permitira que ela reconstruísse uma marinha dotada de submarinos, se assim desejasse, na escala da inglesa. A Alemanha nazista havia criado, secreta e ilegalmente, uma força aérea militar que, na primavera de 1935, declarara abertamente ser igual à inglesa. Agora, ela estava no segundo ano da produção ativa de material bélico, depois de longos preparativos ocultos. A Inglaterra e a Europa inteira, bem como o que então era visto como a distante América, viram-se confrontadas com o poder organizado e a intenção belicosa de setenta milhões de componentes da raça mais eficiente da Europa, ansiosos por reconquistar sua glória nacional e impulsionados, caso fraquejassem, por um implacável regime militar, social e partidário.
Talvez ainda houvesse tempo para uma afirmação da segurança coletiva, baseada na disposição confessa de todos os membros implicados de fazer valer pela espada as decisões da Liga das Nações. As democracias e seus estados dependentes ainda eram, de fato e potencialmente, muito mais fortes do que as ditaduras, mas sua posição em relação aos seus adversários era menos da metade do que tinha sido 12 meses antes. As motivações virtuosas, entravadas pela inércia e pela timidez, não são páreo para a perversidade armada e resoluta. O amor sincero pela paz não é desculpa para se enredar centenas de milhões de pessoas humildes numa guerra total. Os aplausos e vivas de plateias fracas e bem-intencionadas logo param de ressoar, e seus votos logo deixam de ter importância. A perdição prossegue em sua marcha.
A Alemanha, no decorrer de 1935, havia repelido e sabotado os esforços das nações ocidentais de negociar um Locarno do leste. O novo Reich, naquele momento, havia-se declarado um baluarte contra o bolchevismo, e para seus membros, segundo eles diziam, não havia como trabalhar com os soviéticos. Hitler asseverou ao embaixador polonês em Berlim, em 18 de dezembro, que “era decididamente contrário a qualquer cooperação do Ocidente com a Rússia”. Nesse clima, ele havia procurado prejudicar e solapar as tentativas francesas de chegar a um acordo direto com Moscou. O Pacto Franco-Soviético tinha sido assinado em maio, mas não fora ratificado por nenhuma das partes. Impedir essa ratificação tornou-se um objetivo primordial da diplomacia alemã. Laval foi avisado por Berlim de que, se essa providência fosse tomada, não poderia haver esperança de qualquer reaproximação franco-alemã. A partir de então, a relutância de Laval em perseverar tornou-se acentuada, mas não afetou os acontecimentos.
Em 27 de fevereiro, o parlamento francês ratificou o pacto e, no dia seguinte, o embaixador francês em Berlim foi instruído a abordar o governo alemão e indagar em que bases seria possível iniciar negociações para um entendimento franco-alemão. Hitler, em resposta, pediu alguns dias para refletir. Às dez horas da manhã de 7 de março, Herr von Neurath, o ministro do Exterior da Alemanha, convocou os embaixadores inglês, francês, belga e italiano à Wilhelmstrasse, para lhes anunciar a proposta de um pacto por 25 anos, com a desmilitarização de ambos os lados da fronteira do Reno, um acordo de limitação das forças aéreas e alguns pactos de não agressão a serem negociados com os vizinhos orientais e ocidentais.
A “zona desmilitarizada” da Renânia fora estabelecida pelos artigos 42, 43 e 44 do Tratado de Versalhes. Esses artigos declaravam que a Alemanha não deveria ter ou criar fortificações na margem esquerda do Reno ou a menos de 50km de sua margem direita. Tampouco deveria ter quaisquer forças militares nessa zona, nem realizar manobras militares em momento algum, nem manter qualquer agência de mobilização militar. Acima disso havia o Tratado de Locarno, livremente negociado pelas duas partes. Nele, os países signatários garantiam, individual e coletivamente, a manutenção das fronteiras entre a Alemanha e a Bélgica e entre a Alemanha e a França. O artigo 2 do Tratado de Locarno estabelecia que a Alemanha, a França e a Bélgica nunca invadiriam ou atacariam essas fronteiras. Caso, entretanto, os artigos 42 ou 43 do Tratado de Versalhes fossem infringidos, tal violação constituiria “um ato não provocado de agressão” e se exigiria uma ação imediata por parte dos signatários ofendidos, em virtude da reunião de forças armadas na zona desmilitarizada. Essa violação deveria ser imediatamente comunicada à Liga das Nações e esta, depois de verificar a realidade da violação, deveria informar aos países signatários que eles estavam obrigados a oferecer ajuda militar ao país contra o qual a ofensa tivesse sido perpetrada.
Ao meio-dia desse mesmo 7 de março de 1936, duas horas após sua proposta de um pacto de 25 anos, Hitler anunciou ao Reichstag que tencionava reocupar a Renânia e, exatamente no momento em que falava, colunas alemãs passaram a fronteira e entraram em todas as principais cidades alemãs. Em toda parte foram recebidas com júbilo, temperado pelo temor da reação dos aliados. Simultaneamente, para confundir a opinião pública inglesa e americana, Hitler declarou que a ocupação era puramente simbólica. O embaixador alemão em Londres entregou a Mr. Eden propostas semelhantes às que Neurath, em Berlim, fizera aos embaixadores das outras nações de Locarno naquela manhã. Isso proporcionou alívio nos dois lados do Atlântico a todos os que desejavam ser tapeados. Mr. Eden deu uma resposta severa ao embaixador. Hoje sabemos, é claro, que Hitler estava meramente usando essas propostas conciliatórias como parte de seu projeto e como uma capa para o ato de violência que havia praticado, cujo sucesso era vital para seu prestígio e, com isso, para o passo seguinte de seu programa.
Esse ato constituiu não só o descumprimento de uma obrigação extraída na guerra pela força das armas, e também do Tratado de Locarno, livremente assinado em completa vigência da paz, como foi ainda uma forma de tirar proveito da amistosa evacuação da Renânia pelos aliados vários anos antes da data pactuada. A notícia causou sensação no mundo inteiro. O governo francês, sob a chefia de M. Sarraut, e no qual M. Flandin era ministro do Exterior, levantou-se, vociferando sua ira, e apelou para todos os seus aliados e para a Liga. Acima de tudo, a França também tinha o direito de recorrer à Inglaterra, considerando a garantia que havíamos dado à fronteira francesa contra a agressão alemã e a pressão que havíamos exercido sobre a França em prol da evacuação antecipada da Renânia. Ali estavam, mais do que nunca, a violação não somente do Tratado de Paz, mas também do Tratado de Locarno, e uma obrigação que comprometia todas as nações interessadas.
Os senhores Sarraut e Flandin tiveram o impulso de agir de imediato, através da mobilização geral. Se houvessem ficado à altura de sua tarefa, tê-lo-iam feito e, com isso, teriam obrigado todos os outros a se alinhar com eles. Mas pareceram incapazes de fazer um só gesto sem a anuência da Inglaterra. Isso é uma explicação, mas não justifica. A questão era vital para a França, e qualquer governo francês digno desse nome deveria ter tomado sua própria decisão e confiado nas obrigações do Tratado. Por mais de uma vez nesses anos cambiantes, os ministros franceses, em seus governos em perene mutação, contentaram-se em encontrar no pacifismo inglês uma desculpa para o deles mesmos. Seja como for, eles não receberam dos ingleses nenhum incentivo para resistir à agressão alemã. Ao contrário, se eles haviam hesitado em agir, seus aliados ingleses não hesitaram em dissuadi-los de agir. Durante todo o domingo, houve conversas telefônicas agitadas entre Londres e Paris. O governo de Sua Majestade exortou os franceses a esperar, para que os dois países pudessem agir em conjunto e depois de plenas deliberações. Um tapete vermelho para o recuo!
As reações não oficiais vindas de Londres foram de esfriar. Mr. Lloyd George apressou-se a dizer: “A meu juízo, o maior crime de Herr Hitler não foi o descumprimento de um tratado, pois houve uma provocação.” E acrescentou esperar “que mantivéssemos a cabeça fria”. A provocação, presumivelmente, teria sido a incapacidade dos aliados de se desarmarem mais do que tinham feito. Lord Snowden, socialista, concentrou-se no proposto pacto de não agressão e disse que as iniciativas de paz anteriores de Hitler tinham sido ignoradas, mas os povos não permitiriam que esta oferta de paz fosse desprezada. É possível que essas declarações tenham expressado a mal-orientada opinião pública inglesa naquele momento, mas não hão de ser consideradas honrosas para seus autores. O gabinete inglês, adotando a lei do menor esforço, julgou que a saída mais fácil era pressionar a França a fazer mais um apelo à Liga das Nações.
Também houve uma grande divisão na França. De modo geral, os políticos desejavam mobilizar o exército e enviar um ultimato a Hitler, enquanto os generais, como seus pares alemães, pediam calma, paciência e delonga. Hoje sabemos dos conflitos de opinião surgidos nessa época entre Hitler e o Alto Comando alemão. Se o governo francês tivesse mobilizado o exército do país, com suas quase cem divisões, e também sua força aérea (que então ainda se acreditava, erroneamente, ser a mais forte da Europa), não há dúvida de que Hitler teria sido forçado por seu próprio Estado-Maior a recuar, e ter-se-ia erguido contra suas pretensões uma barreira que bem poderia revelar-se fatal para seu governo. Convém lembrar que a França, sozinha, tinha nessa época força perfeitamente suficiente para expulsar os alemães da Renânia. Em vez disso, o governo francês foi instado pelos ingleses a transferir seu fardo para a Liga das Nações, já enfraquecida e desalentada pelo fiasco das sanções e pelo acordo naval anglo-alemão do ano anterior.
Na segunda-feira, 9 de março, Mr. Eden foi a Paris, acompanhado por Lord Halifax e Ralph Wigram. O plano original tinha sido convocar uma reunião da Liga em Paris, mas Wigram, pouco depois, com a autorização de Eden, foi encontrar Flandin para lhe dizer que viesse a Londres para realizar na Inglaterra a reunião da Liga, já que, desse modo, ele obteria um apoio mais eficaz da Inglaterra. Foi uma missão ingrata para aquele dedicado servidor. Imediatamente após seu retorno a Londres, no dia 11 de março, ele veio me visitar e me contou a história. O próprio Flandin chegou nessa mesma noite, mais tarde, e, por volta das 8h30 de quinta-feira, veio a meu apartamento em Morpeth Mansions. Disse-me haver proposto exigir do governo inglês uma mobilização simultânea das forças terrestres, marítimas e aéreas dos dois países, e ter recebido garantias de apoio de todas as nações da “Pequena Entente” e de outros estados. Não havia dúvida de que o poderio superior ainda estava com os aliados da guerra anterior. Bastava que agissem para vencer. Embora não soubéssemos o que estava se passando entre Hitler e seus generais, era evidente que uma força esmagadora estava do nosso lado.
Mr. Neville Chamberlain, nessa época Chancellor of the Exchequer, ministro das Finanças, era o membro de maior peso no governo. Seu competente biógrafo, Mr. Keith Feiling, cita o seguinte excerto de seu diário: “12 de março, falei com Flandin, enfatizando que a opinião pública não nos apoiaria em nenhum tipo de sanção. A opinião dele é que, se for mantida uma frente firme, a Alemanha cederá sem guerra. Não podemos aceitar isso como uma estimativa confiável da reação de um ditador louco.” Quando Flandin insistiu pelo menos num boicote econômico, Chamberlain retrucou sugerindo uma força internacional durante as negociações, concordou com um pacto de assistência mútua e declarou que se pudéssemos, através da concessão de uma colônia, garantir uma paz duradoura, ele consideraria essa ideia.
Enquanto isso, a maior parte da imprensa inglesa, com o Times e o Daily Herald à frente, expressava sua confiança na sinceridade das propostas de Hitler para um pacto de não agressão. Austen Chamberlain, num discurso em Cambridge, expôs o ponto de vista contrário. Wigram julgou que estava no âmbito de seu dever colocar Flandin em contato com todos aqueles em quem pudesse pensar, da City, da imprensa e do governo, e também com Lord Lothian. A todos com quem se encontrou na casa dos Wigrams, Flandin falou nos seguintes termos:
“O mundo inteiro, especialmente as pequenas nações, hoje volta seus olhos para a Inglaterra. Se a Inglaterra agir agora, poderá liderar a Europa. Vocês terão uma política e o mundo os seguirá, e, desse modo, vocês impedirão a guerra. É vossa última oportunidade. Se não detiverem a Alemanha agora, estará tudo acabado. A França não pode mais garantir a Tchecoslováquia, porque isso se tornará geograficamente impossível. Se vocês não mantiverem o Tratado de Locarno, tudo o que lhes restará será esperar pelo rearmamento da Alemanha, contra o qual a França nada poderá fazer. Se vocês não detiverem a Alemanha à força, hoje, a guerra será inevitável, mesmo que vocês estabeleçam uma amizade temporária com eles. Por mim, não creio que seja possível uma amizade entre a França e a Alemanha; os dois países estarão sempre em tensão. Mesmo assim, se vocês desistirem de Locarno, mudarei minha política, pois não haverá mais nada a fazer.” Palavras corajosas. Mas a ação teria falado mais alto.
A contribuição de Lord Lothian foi: “Afinal, eles estão apenas entrando em seu próprio quintal.” Era uma visão representativa da Inglaterra.
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Quando eu soube como as coisas estavam indo mal, e depois de uma conversa com Wigram, aconselhei M. Flandin a solicitar uma entrevista com Mr. Baldwin antes de partir. Ela ocorreu em Downing Street. O primeiro-ministro recebeu M. Flandin com extrema cortesia. Mr. Baldwin explicou que, embora tivesse pouco conhecimento dos assuntos externos, interpretava bem o sentimento do povo inglês. E o povo queria paz. M. Flandin afirma haver retrucado que a única maneira de garanti-la era deter a agressão hitlerista enquanto essa medida ainda era possível. A França não tinha nenhum desejo de arrastar a Inglaterra para uma guerra; não estava pedindo nenhuma ajuda prática, e ela mesma providenciaria o que seria uma simples operação policial, já que, segundo as informações francesas, as tropas alemãs na Renânia tinham ordens de recuar se encontrassem oposição pela força. Flandin afirma ter dito que tudo o que a França estava pedindo à sua aliada era carta branca para agir. Isso certamente não é verdade. Como poderia a Inglaterra impedir a França de praticar uma ação para a qual, nos termos do Tratado de Locarno, ela estava legalmente autorizada? O primeiro-ministro inglês repetiu que seu país não poderia aceitar o risco da guerra. Perguntou o que o governo francês decidira fazer. Nenhuma resposta clara foi dada a isso. Segundo Flandin,1 Mr. Baldwin então declarou: “Talvez o senhor tenha razão, mas, se houver até mesmo uma chance em cem de que haja guerra em decorrência de vossa operação policial, não tenho o direito de comprometer a Inglaterra.” E, após uma pausa, acrescentou: “A Inglaterra não está em condições de entrar em guerra.” Não há confirmação disso. M. Flandin retornou à França convencido, em primeiro lugar, de que seu próprio país, dividido como estava, não poderia unir-se a não ser na presença de uma grande força de vontade na Inglaterra, e, em segundo, de que, longe de estar surgindo essa força de vontade, não se podia esperar da Inglaterra qualquer impulsão. Muito equivocadamente, ele mergulhou na desalentadora conclusão de que a única esperança para a França estava num acordo com uma Alemanha cada vez mais agressiva.
Não obstante, em razão do que eu vira da atitude de Flandin durante esses dias angustiantes, julguei ser meu dever, apesar de seus erros subsequentes, ir em socorro dele tanto quanto me foi possível, anos depois. Usei meu poder, no inverno de 1943-44, para protegê-lo quando ele foi preso na Argélia pelo governo de de Gaulle. Nessa ocasião, invoquei e recebi uma ajuda ativa do presidente Roosevelt. Depois da guerra, quando Flandin foi levado a julgamento, meu filho Randolph, que estivera muitas vezes com ele durante a campanha da África, foi convocado como testemunha, e me agrada pensar que seu depoimento, bem como uma carta que escrevi para que Flandin usasse em sua defesa, não deixaram de influir na absolvição que ele recebeu do tribunal francês. Fraqueza não é traição, embora possa ser igualmente desastrosa. Nada, entretanto, pode inocentar o governo francês por ter falhado em sua responsabilidade primordial. Clemenceau ou Poincaré não teriam deixado nenhuma alternativa a Mr. Baldwin.
A submissão inglesa e francesa à violação dos tratados de Versalhes e Locarno, expressa na reocupação da Renânia por Hitler, foi um golpe mortal para Wigram. “Depois que a delegação francesa se foi”, escreveu-me sua mulher, “Ralph voltou, sentou-se num canto da sala onde nunca se havia sentado e me disse: ‘Agora a guerra é inevitável, e será a guerra mais terrível que já aconteceu. Não creio que eu a veja, mas você verá. Fique esperando pelas bombas nesta casinha.’2 Fiquei assustada com suas palavras, e ele prosseguiu: ‘Todo o meu trabalho de tantos anos foi inútil. Sou um fracasso. Não consegui fazer as pessoas daqui se aperceberem do que está em jogo. Acho que não sou forte o bastante. Não pude fazer com que entendessem. Winston sempre, sempre compreendeu, e ele é forte e irá até o fim.’”
Meu amigo nunca pareceu recuperar-se desse choque. Abalou-se demais com ele. Afinal, sempre se pode continuar fazendo o que se acredita ser o próprio dever e correr riscos cada vez maiores, até ser derrubado. A profunda compreensão de Wigram teve um efeito nefasto em sua natureza sensível. Sua morte prematura, em dezembro de 1936, foi uma perda irreparável para o Foreign Office e contribuiu para o lastimável declínio de nossa sorte.
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Quando Hitler se reuniu com seus generais após a vitoriosa reocupação da Renânia, pôde confrontá-los com o erro dos temores que haviam sentido e provar-lhes quão superior era seu julgamento, ou “intuição”, comparado ao dos militares comuns. Os generais se curvaram. Como bons alemães, estavam contentes em ver seu país ganhar terreno tão depressa na Europa e em ver seus antigos adversários tão divididos e mansos. Indubitavelmente, o prestígio e a autoridade de Hitler no círculo mais alto do poder alemão foram tão ampliados por esse episódio que o encorajaram e lhe permitiram marchar adiante em direção a testes maiores. Ao mundo, ele declarou: “Todas as ambições territoriais da Alemanha estão satisfeitas agora.”
A França foi lançada na incoerência, em meio à qual predominaram o medo da guerra e o alívio por ela ter sido evitada. O homem simples da Inglaterra foi ensinado por sua imprensa simples a se consolar com a reflexão de que “afinal, os alemães estão apenas voltando para seu próprio país. Como nos sentiríamos se fôssemos mantidos fora, digamos, do Yorkshire por dez ou 15 anos?” Ninguém parou para reparar que os pontos de desembarque de trens a partir dos quais o exército alemão poderia invadir a França tinham sido avançados em cem milhas. Ninguém se preocupou com a demonstração, dada a todas as nações da Pequena Entente e da Europa, de que a França não lutaria e de que a Inglaterra a deteria, mesmo que ela quisesse lutar. O episódio confirmou o poder de Hitler sobre o Reich e desacreditou, de maneira ignominiosa e desabonadora para seu patriotismo, os generais que até então haviam procurado contê-lo.