A pausa carregada, 1936-1938
Dois anos inteiros se passaram entre a ocupação da Renânia por Hitler, em março de 1936, e sua violenta entrada na Áustria, em março de 1938. Foi um intervalo mais longo do que eu havia esperado. Durante esse período, nenhum tempo foi desperdiçado pela Alemanha. A fortificação da Renânia, ou “o Muro do Oeste”, avançou em ritmo acelerado, e uma imensa linha de fortificações permanentes e semipermanentes continuou a crescer sem interrupção. O exército alemão, já então plena e metodicamente baseado no serviço militar obrigatório e reforçado por ardorosas adesões voluntárias, tornava-se mais forte mês após mês, tanto em termos numéricos quanto na maturidade e qualidade de suas tropas. A força aérea alemã manteve e aprimorou sistematicamente a liderança que havia conseguido em relação à Inglaterra. As fábricas de material bélico alemãs funcionavam a pleno vapor. As rodas giravam e os martelos batiam dia e noite na Alemanha, transformando toda a sua indústria num arsenal e unindo toda a sua população numa única e disciplinada máquina de guerra. Internamente, no outono de 1936, Hitler inaugurou um Plano Quadrienal para reorganizar a economia alemã, de modo a ter maior autossuficiência em guerra. No exterior, conseguiu a “vigorosa aliança” que, em Mein Kampf, afirmara ser necessária para a política externa do país. Entrou em acordo com Mussolini, formando o Eixo Roma-Berlim.
Até meados de 1936, a política agressiva de Hitler e sua quebra dos tratados haviam-se apoiado não no poderio da Alemanha, mas na desunião e timidez da França e da Inglaterra e no isolamento americano. Todos os seus passos preliminares tinham sido apostas arriscadas, nas quais ele sabia que não poderia resistir a uma contestação séria. A entrada na Renânia e sua posterior fortificação fora a maior aposta de todas. Alcançara brilhante sucesso. Seus adversários eram indecisos demais para pagar para ver. Quando ele voltou a agir, em 1938, seu blefe já não era blefe. A agressão estava escorada na força, e era bem possível que fosse uma força superior. Quando os governos da França e da Inglaterra se aperceberam da terrível transformação ocorrida, era tarde demais.
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No fim de julho de 1936, a crescente deterioração do regime parlamentarista na Espanha e a força cada vez maior dos movimentos favoráveis a uma revolução comunista — ou, alternadamente, anarquista — causaram uma rebelião militar que vinha sendo preparada havia muito tempo. Faz parte da doutrina e do manual de treinamento comunistas, estabelecidos pelo próprio Lênin, que os comunistas devem ajudar todos os movimentos em direção à esquerda e contribuir para levar ao poder governos fracos constitucionalistas, radicais ou socialistas. Em seguida, devem solapá-los e arrancar de suas mãos decadentes o poder absoluto, fundando o estado marxista. Na verdade, uma perfeita reprodução do período de Kerensky na Rússia estava ocorrendo na Espanha. Mas a força da Espanha não fora desmantelada por uma guerra no exterior. O exército ainda preservava certa coesão. Paralelamente à conspiração comunista, elaborou-se em sigilo um profundo contragolpe militar. Nenhum dos lados poderia reivindicar com justiça ser o detentor da legalidade, e os espanhóis de todas as classes estavam fadados a pensar na sobrevivência da Espanha.
Muitas das garantias corriqueiras da sociedade civilizada já tinham sido eliminadas pela penetração comunista no decadente governo parlamentarista. Começaram a ocorrer assassinatos de ambos os lados, e a pestilência comunista havia atingido um ponto em que era capaz de retirar os adversários políticos das ruas ou de suas camas e matá-los. Um grande número desses assassinatos já havia ocorrido em Madri e seus arredores. O clímax surgiu com o assassinato do Senor Sotelo, o líder conservador que correspondia aproximadamente a Sir Edward Carson na política inglesa de antes da guerra de 1914. Esse crime foi o sinal para que os generais do exército entrassem em ação. O general Franco, um mês antes, escrevera uma carta ao ministro da Guerra espanhol, deixando claro que, se o governo da Espanha não conseguisse manter as garantias normais da lei na vida cotidiana, o exército teria que intervir. No passado, a Espanha havia assistido a muitos pronunciamientos de chefes militares. Quando o general Franco levantou a bandeira da rebelião, foi apoiado pelo exército, em todos os níveis. A Igreja, com a notável exceção dos dominicanos, e quase todos os elementos da direita e do centro aderiram a ele, que logo controlou diversas províncias importantes. Os marinheiros espanhóis mataram seus oficiais e juntaram-se ao que logo se transformou no lado comunista. No colapso do governo civilizado, a seita comunista tomou o controle e passou a agir de acordo com sua prática. Iniciou-se então uma violenta guerra civil. Massacres em massa de seus adversários políticos e dos ricos, a sangue-frio, foram perpetrados pelos comunistas que haviam empolgado o poder. E foram cobrados com juros pelas forças comandadas por Franco. Todos os espanhóis morriam com extraordinária dignidade, e grande número deles, de ambos os lados, foi fuzilado. Os cadetes do exército defenderam sua escola no Alcázar de Toledo com suprema tenacidade, e as tropas de Franco, abrindo caminho vindas do sul e deixando atrás de si um rastro de vingança em todos os vilarejos comunistas, acabaram conseguindo libertá-los. Esse episódio merece a atenção dos historiadores.
Fiquei neutro nesse conflito. Naturalmente, não era a favor dos comunistas. Como poderia sê-lo, uma vez que, se eu fosse espanhol, eles teriam assassinado a mim, minha família e meus amigos? Mas eu estava certo de que, com tanta coisa a preocupá-lo, o governo inglês tinha razão de se manter fora da Espanha. A França propôs um plano de não intervenção, pelo qual os dois lados decidiriam o desfecho de sua luta sem nenhuma ajuda externa. Os governos inglês, alemão, italiano e russo subscreveram essa proposta. Em consequência disso, o governo espanhol, agora nas mãos dos mais extremados revolucionários, viu-se privado até mesmo do direito de comprar as armas encomendadas com o ouro que possuía fisicamente. Teria sido mais racional seguir o curso normal e reconhecer a beligerância de ambos os lados, como foi feito na Guerra Civil americana de 1861-65. Em vez disso, porém, a política de não intervenção foi adotada e formalmente apoiada por todas as grandes potências. Esse acordo foi estritamente cumprido pela Inglaterra, mas a Itália e a Alemanha, de um lado, e a Rússia soviética, do outro, romperam o compromisso repetidamente e jogaram seu peso na luta, umas contra as outras. A Alemanha, em particular, usou seu poderio aéreo para cometer horrores experimentais como o bombardeio da indefesa cidadezinha de Guernica.
O governo de M. Léon Blum, que sucedera o ministério de M. Albert Sarraut em 4 de junho, estava pressionado por seus defensores comunistas na Câmara a apoiar o governo espanhol com material bélico. O ministro da Aviação, M. Cot, sem levar muito em conta o poderio da força aérea francesa, então em estado de decadência, estava fornecendo aviões e equipamentos, secretamente, aos exércitos republicanos. Fiquei perturbado com esses acontecimentos e, em 31 de julho de 1936, escrevi ao embaixador francês:
Uma das maiores dificuldades com que me deparo na tentativa de manter a antiga posição é o discurso alemão de que os países anticomunistas devem manter-se unidos. Estou certo de que, se a França enviasse aviões e tudo o mais ao atual governo de Madri, e se os alemães e italianos pressionassem pelo lado oposto, as forças dominantes daqui ficariam satisfeitas com a Alemanha e a Itália e afastadas da França. Espero que o senhor não se importe por eu escrever isto, o que faço, é claro, inteiramente por minha conta. Não gosto de ouvir dizerem que a Inglaterra, a Alemanha e a Itália estão-se alinhando contra o comunismo europeu.1 É fácil demais para ser verdade.
Estou certo de que uma neutralidade absolutamente rígida, com o mais vigoroso protesto contra qualquer ruptura, é o único rumo correto e seguro no momento atual. Talvez chegue um dia, se houver um impasse, em que a Liga das Nações possa intervir para pôr fim aos horrores. Mas até isso é muito duvidoso.
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Tem-se a vantagem na guerra, e também na política externa e em outras coisas, escolhendo, dentre muitas alternativas atraentes ou desagradáveis, o ponto dominante. O pensamento militar americano cunhou a expressão “Objetivo Estratégico Geral”. Quando nossos oficiais ouviram isso pela primeira vez, riram; mais tarde, porém, a sabedoria dessa ideia se evidenciou e foi aceita. Evidentemente, essa deve ser a norma, deixando-se as outras grandes questões em subordinação a ela. A incapacidade de aderir a esse simples princípio gera confusão e inutilidade da ação e, mais tarde, quase sempre torna as coisas muito piores.
Pessoalmente, não tive nenhuma dificuldade de me conformar a essa regra, muito antes de ouvi-la enunciada. Minha mente estava obcecada com a impressão de que a pavorosa Alemanha, que eu vira e sentira em ação durante os anos de 1914 a 1918, estava subitamente recuperando a posse de todo o seu poder marcial, enquanto os aliados, que por pouco tinham conseguido sobreviver, restavam boquiabertos, ociosos e aturdidos. Assim, por todos os meios e em todas as oportunidades, continuei a usar qualquer influência que tivesse junto à Câmara dos Comuns, e também junto a ministros isolados, para instigar o avanço de nossos preparativos militares e conquistar aliados e associados para o que voltaria a se transformar, dentro de pouco tempo, na Causa Comum.
Um dia, um amigo meu, que ocupava um elevado cargo de confiança no governo, veio a Chartwell nadar comigo em minha piscina, numa ocasião em que o sol brilhava e a água estava razoavelmente quente. Não falamos de nada além da guerra vindoura, de cuja inexorabilidade ele não estava de todo convencido. Ao levá-lo à porta para nos despedirmos, ele se voltou subitamente para mim e, num impulso, disse: “Os alemães estão gastando um bilhão de libras esterlinas por ano em armamentos.” Achei que o parlamento e o público inglês deveriam ter conhecimento da verdade. Assim, pus-me a trabalhar no exame das finanças alemãs. Os orçamentos eram produzidos e ainda eram anualmente publicados na Alemanha; mas, a partir de sua profusão de cifras, era muito difícil dizer o que estava acontecendo. Entretanto, em abril de 1936, instituí em caráter particular duas linhas separadas de investigação. A primeira apoiava-se em dois refugiados alemães de alta capacidade e determinação inflexível. Eles entendiam todos os pormenores da apresentação dos orçamentos alemães, o valor do marco e assim por diante. Ao mesmo tempo, perguntei a um amigo meu, Sir Henry Strakosch, se ele não conseguiria descobrir o que realmente estava acontecendo. Strakosch era presidente da empresa chamada Union Corporation, dotada de grandes recursos e de um pessoal altamente qualificado e dedicado. Os cérebros dessa empresa da City voltaram-se para esse problema por várias semanas. Em pouco tempo, relataram com detalhes precisos e extensos que os gastos militares alemães certamente estavam em torno de um bilhão de libras esterlinas por ano. Ao mesmo tempo, os refugiados alemães, por uma série de argumentos totalmente diferentes, chegaram independentemente à mesma conclusão. Um bilhão de libras esterlinas por ano, em valores monetários de 1936!
Portanto, eu contava com duas estruturas separadas de dados em que basear um pronunciamento público. Na véspera de um debate, abordei no saguão Mr. Neville Chamberlain, ainda ministro das Finanças, e lhe disse: “Amanhã pretendo perguntar-lhe se não é fato que os alemães estão gastando um bilhão de libras por ano em preparativos de guerra, e vou pedir-lhe que confirme ou negue.” Chamberlain respondeu: “Não posso negá-lo e, se você trouxer o assunto à baila, confirmarei.”
Usei a cifra de oitocentos milhões, em vez de um bilhão de libras, para encobrir minha informação secreta e também para me pôr a salvo de riscos, e Mr. Chamberlain admitiu no parlamento que minha estimativa “não era exagerada”.
Procurei por vários meios pôr o estado relativo dos armamentos ingleses e alemães em termos claros. Pedi um debate em sessão secreta. Foi recusado. “Causaria alarme desnecessário.” Tive pouco apoio. Todas as sessões secretas são impopulares com a imprensa. Então, em 20 de julho, perguntei ao primeiro-ministro se ele receberia uma delegação de membros do Conselho Privado e mais alguns outros, que lhe exporiam os fatos até onde os conheciam. Lord Salisbury solicitou que uma delegação da Câmara dos Lordes também comparecesse. Houve acordo em relação a isso. Embora eu fizesse apelos pessoais a Mr. Attlee e a Sir Archibald Sinclair, os partidos Trabalhista e Liberal declinaram da oportunidade de se fazer representar. Então, em 28 de julho, na sala do primeiro-ministro na Câmara dos Comuns, fomos recebidos por Mr. Baldwin, por Lord Halifax e por Sir Thomas Inskip, um competente advogado que tinha a vantagem de ser pouco conhecido e não saber coisa alguma sobre assuntos militares, a quem Mr. Baldwin fizera ministro da Coordenação da Defesa. Um grupo do Partido Conservador e de notáveis não partidários foi comigo. Sir Austen Chamberlain nos apresentou. Foi uma grande ocasião. Não me lembro de nada semelhante no que pude ver da vida pública inglesa. Aquele grupo de homens eminentes, sem nenhuma pretensão de vantagens pessoais, mas cujas vidas tinham-se centrado nos assuntos de interesse público, representava um peso de opinião conservadora que não era fácil desconhecer. Se os líderes da oposição trabalhista e liberal tivessem ido conosco, poderia ter havido uma situação política suficientemente tensa para impor medidas corretivas. O processo ocupou três ou quatro horas de cada um de dois dias consecutivos. Sempre afirmei que Mr. Baldwin era um bom ouvinte. Ele certamente pareceu escutar com extremo interesse e atenção. Com ele estavam vários membros da equipe do Comitê de Defesa Imperial. No primeiro dia, abri a exposição com um pronunciamento de uma hora e um quarto e encerrei da seguinte maneira:
Primeiro, estamos enfrentando o maior perigo e emergência de nossa história. Segundo, não temos qualquer esperança de solucionar nosso problema, a não ser em conjunto com a República Francesa. A união da esquadra inglesa e do exército francês, junto com suas forças aéreas conjuntas, operando a partir de pontos situados logo atrás das fronteiras da França e da Bélgica, com tudo o mais que a Inglaterra e a França representam, constituem um meio de dissuasão em que pode estar a salvação. Pelo menos, essa é nossa esperança. Entrando nos detalhes, devemos deixar de lado qualquer obstáculo ao aumento de nossa força. Não temos nenhuma possibilidade de nos precaver contra todos os perigos possíveis. Devemos concentrar-nos no que é vital e sofrer nosso castigo no resto. Para chegar a propostas ainda mais claras, devemos ampliar o desenvolvimento de nosso poder aéreo, prioritariamente a qualquer outra consideração. Devemos a todo custo atrair a nata de nossa juventude para pilotar aviões. Não importa que atrativos sejam oferecidos; devemos recorrer a todas as fontes, por todos os meios. Devemos acelerar e simplificar nossa produção de aviões e impulsioná-la para a mais alta escala possível, sem hesitar em fazer contratos com os Estados Unidos e em outros lugares para obter a maior quantidade possível de toda sorte de materiais e equipamentos de aviação. Estamos em perigo, como nunca estivemos antes — não, nem mesmo no auge da campanha submarina [1917].
Este pensamento me persegue: Os meses passam depressa. Se demorarmos muito para recompor nossas defesas, talvez sejamos impedidos por um poder superior de concluir o processo.
Muito nos desapontou o fato de o ministro das Finanças não poder estar presente. Era evidente que a saúde de Mr. Baldwin estava fraquejando, e era sabido que ele logo buscaria descansar de suas cargas. Não havia dúvida sobre quem seria seu sucessor. Infelizmente, Mr. Neville Chamberlain estava ausente, em merecidas férias, e não teve a oportunidade desse confronto direto com os fatos trazidos por membros do Partido Conservador, inclusive seu irmão e muitos de seus mais diletos amigos pessoais.
A mais atenta consideração foi dada pelos ministros à nossa exposição, mas só depois do recesso parlamentar, em 23 de novembro de 1936, é que todos fomos convidados por Mr. Baldwin a ouvir um pronunciamento mais ponderado sobre toda a situação. Sir Thomas Inskip fez então uma exposição franca e competente, na qual não nos ocultou a gravidade da situação a que havíamos chegado. Em síntese, essa exposição consistiu em dizer que nossas estimativas, e particularmente minhas afirmações, tinham uma visão demasiadamente sombria de nossas possibilidades; que grandes esforços estavam sendo feitos (como de fato estavam) para recuperar o terreno perdido; mas que não havia razão que justificasse a adoção de medidas de emergência pelo governo; que estas teriam necessariamente um caráter perturbador em toda a vida industrial do país, causariam um grande sobressalto por toda parte e divulgariam quaisquer deficiências existentes; e que, dentro desses limites, tudo o que era possível fazer estava sendo feito. Diante disso, Sir Austen Chamberlain registrou nossa impressão geral de que nossas angústias não tinham sido aliviadas e de que não estávamos nem um pouco satisfeitos. E assim nos despedimos.
Durante todo o ano de 1936, a inquietação do país e do parlamento continuou a aumentar e se concentrou, em especial, em nossas defesas aéreas. No debate sobre a Fala do Trono ao Parlamento de 12 de novembro, censurei duramente Mr. Baldwin por não ter mantido sua promessa de que “qualquer governo deste país — um governo de coalizão nacional mais do que qualquer outro, e este governo em particular — irá certificar-se de que, na força aérea e no poderio aéreo, esta nação não mais fique em situação inferior à de qualquer país situado a uma distância de ataque de suas linhas costeiras”. Disse eu: “O governo simplesmente não consegue chegar a uma decisão ou não consegue fazer com que o primeiro-ministro se decida. E assim vai ele num estranho paradoxo, decidido só a não decidir, resolvido só a não resolver, firme na deriva, sólido na fluidez, onipotente na impotência. E assim continuamos a preparar mais meses e anos — preciosos, talvez vitais para a grandeza da Inglaterra — para serem comidos pelos gafanhotos.”
Mr. Baldwin me respondeu com um discurso sem precedentes, no qual disse:
Lembraria à Câmara que não uma vez, mas em muitas ocasiões, em discursos e em vários lugares, quando falei e defendi, tanto quanto sou capaz, o princípio democrático, afirmei que uma democracia está sempre dois anos atrás dos ditadores. Creio que isso é uma verdade. Tem sido verdade neste caso. Exponho a toda a Casa minhas opiniões com uma franqueza para estarrecer. Os senhores hão de estar lembrados da época em que a Conferência do Desarmamento estava reunida em Genebra. Hão de estar lembrados de que, naquela época [1931-32], este país era perpassado por um sentimento pacifista, provavelmente mais intenso do que em qualquer ocasião desde a guerra. Hão de estar lembrados da eleição de Fulham, no outono de 1933, em que uma cadeira que o governo de Coalizão Nacional tinha foi perdida por cerca de sete mil votos, unicamente em torno da questão pacifista. (...) Minha posição, como líder de um grande partido, não era inteiramente cômoda. Perguntei-me que probabilidade haveria — uma vez que aquele sentimento que se expressara em Fulham era comum a todo o país —, que probabilidade haveria, dentro de um ou dois anos, de que aquele sentimento se alterasse a ponto de o país conceder um mandato em favor do rearmamento. Supondo-se que eu me houvesse dirigido ao país e dito que a Alemanha estava se rearmando, e que deveríamos nos rearmar, alguém acha que esta pacífica democracia teria atendido a uma convocação dessas naquele momento? Nada me ocorre que tornasse mais certa a derrota na eleição, do meu ponto de vista.
Realmente uma franqueza de estarrecer. Levou à indecência a verdade nua e crua sobre suas motivações. O fato de um primeiro-ministro confessar que não havia cumprido seu dever para com a segurança nacional por ter tido medo de perder a eleição foi um incidente sem paralelos em nossa história parlamentar. Mr. Baldwin, é claro, não era movido por nenhum desejo ignóbil de permanecer no cargo. Na verdade, em 1936, estava sinceramente desejoso de se aposentar. Sua política era ditada pelo medo de que, se os socialistas chegassem ao poder, fosse feito ainda menos do que seu governo pretendia. Todos os pronunciamentos e votos dos socialistas contra as medidas de defesa encontram-se registrados. Mas não foi uma defesa completa e não fez justiça ao espírito do povo inglês. O sucesso que havia acompanhado a ingênua confissão dos erros de cálculo cometidos quanto à paridade aérea, no ano anterior, não se repetiu nessa ocasião. A Câmara ficou espantada. Na verdade, a impressão causada foi tão dolorosa que bem poderia ter sido fatal para Mr. Baldwin, cuja saúde também andava fraquejando nessa época, não fosse pela intervenção do inesperado.
Nessa época, houve uma grande aproximação de homens e mulheres de todos os partidos da Inglaterra que viam os perigos do futuro e que estavam decididos a tomar medidas práticas para garantir nossa segurança e a causa da liberdade, igualmente ameaçadas por ambos os impulsos totalitários e pela complacência de nosso governo. Nosso plano era o mais rápido rearmamento possível da Inglaterra, em larga escala, combinado com a completa aceitação e emprego da autoridade da Liga das Nações. Chamei essa política de “Armas e o Covenant”. O desempenho de Mr. Baldwin na Câmara dos Comuns era visto com desdém por todos nós. A culminação dessa campanha deveria ser uma reunião no Albert Hall. Ali, em 3 de dezembro, reunimos muitos dos principais nomes de todos os partidos — torys da ala direita, firmemente convencidos do perigo nacional; líderes da União da Liga das Nações; representantes de muitos grandes sindicatos, inclusive, na presidência, meu antigo adversário da greve geral, Sir Walter Citrine; o Partido Liberal e seu líder, Sir Archibald Sinclair. Tínhamos a sensação de estar prestes não apenas a granjear respeito para nossas opiniões, mas também a fazê-las prevalecer. Foi nesse momento que a apaixonada insistência do rei em desposar a mulher a quem amava fez com que tudo o mais fosse jogado para segundo plano. Estava chegando a crise da abdicação.
Antes que eu respondesse ao voto de agradecimento, houve um grito — “God Save the King!” — que provocou vivas e aplausos prolongados. Assim, no calor do momento, expliquei minha posição pessoal:
Há outra grave questão que domina nossa mente esta noite. Dentro de poucos minutos, estaremos cantando “Deus salve o rei”. Cantarei com um fervor mais profundo do que jamais fiz em minha vida. Rezo e espero que nenhuma decisão irrevogável seja tomada apressadamente, mas que o tempo e a opinião pública tenham a possibilidade de desempenhar seu papel, e que uma personalidade querida e singular não seja separada do povo a que tanto ama. Espero que o parlamento possa desempenhar sua função nessas elevadas questões constitucionais. Confio em que nosso rei possa ser guiado pelas opiniões que, pela primeira vez, estão agora sendo expressas pela nação inglesa e pelo Império Britânico, e que o povo inglês, por seu turno, não se mostre carente de generosa consideração pelo ocupante do trono.
Não é relevante para esta narrativa descrever a controvérsia breve, mas violenta, que se seguiu. Eu conhecia o rei Eduardo VIII desde sua infância. Em 1910, como ministro do Interior, tinha lido perante uma esplêndida assembleia a proclamação que o fizera príncipe de Gales, no castelo de Carnarvon. Sentia-me obrigado a colocar no mais alto plano minha lealdade pessoal para com ele. Embora, durante o verão, eu tivesse sido plenamente informado do que estava ocorrendo, não interferi de nenhum modo nem me comuniquei com ele em nenhuma ocasião. Entretanto, pouco tempo depois, em meio a sua aflição, ele pediu permissão ao primeiro-ministro para me consultar. Mr. Baldwin deu seu consentimento formal e, quando isso me foi transmitido, fui ter com o rei no Fort Belvedere. Permaneci em contato com ele até sua abdicação e fiz o que pude para apelar ao rei e ao público por paciência e vagar. Nunca me arrependi disso — na verdade, não poderia ter feito outra coisa.
O primeiro-ministro revelou-se um juiz arguto dos sentimentos nacionais dos ingleses. Sem dúvida, percebeu e expressou a vontade profunda da nação. Seu manejo competente e habilidoso da questão da abdicação elevou-o, numa quinzena, do abismo às alturas. Houve vários momentos em que pareci estar inteiramente sozinho contra uma irada Câmara dos Comuns. Não sou, quando estou em ação, exageradamente afetado pelas correntes hostis de sentimento, porém, em mais de uma ocasião, foi quase fisicamente impossível me fazer ouvir. Todas as forças que eu havia congregado em torno da política de “Armas e o Covenant”, da qual eu me imaginava a mola mestra, afastaram-se ou se dissolveram, e eu mesmo fui tão atacado pela opinião pública, que a visão quase universal era que minha vida política estava finalmente encerrada. Como é estranho que essa mesma Câmara dos Comuns, que me encarara com tanta hostilidade, tenha sido o mesmo órgão que seguiu minha orientação e me apoiou durante os longos e adversos anos da guerra, até chegarmos à vitória sobre todos os nossos inimigos! Que grande prova isso representa de que o único caminho sensato e seguro consiste em agir, dia após dia, de acordo com o que a própria consciência parece ditar!
Da abdicação de um rei passamos à coroação de outro e, até o final de maio de 1937, o cerimonial e o aparato de um solene ato nacional de fidelidade e de consagração das lealdades inglesas ao novo Soberano, no país e por todo o Império, ocuparam todas as mentes. Os assuntos externos e a situação de nossas defesas perderam todo o interesse para o espírito popular. Era como se nossa ilha estivesse a dez mil milhas da Europa. Entretanto, é-me possível registrar que, em 18 de maio de 1937, no dia seguinte à coroação, recebi do novo rei uma carta redigida de seu próprio punho:
The Royal Lodge,
The Great Park,
Windsor, Berks.
18.V. 37
Meu caro Mr. Churchill,
Escrevo para agradecer-lhe a gentilíssima carta que me enviou. Sei quão devotado o senhor foi e ainda é a meu querido irmão, e me faltam palavras para expressar o quanto me comovem sua solidariedade e compreensão nos dificílimos problemas surgidos desde que ele nos deixou, em dezembro. Estou plenamente cônscio das grandes responsabilidades e incumbências que assumi como rei e encoraja-me sumamente receber seus votos auspiciosos, vindos de um de nossos grandes estadistas e de alguém que tem servido a seu país com tanta fidelidade. Espero e confio em que o ânimo e a esperança hoje existentes no país e no Império possam revelar-se um bom exemplo para as outras nações do mundo.
Creia-me
Mui sinceramente seu
George R.I.
Esse gesto de magnanimidade com alguém cuja influência, naquele momento, havia caído a zero será para sempre uma experiência carinhosamente relembrada em minha vida.
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Em 28 de maio de 1937, depois que o rei George VI foi coroado, Mr. Baldwin aposentou-se. Seus serviços públicos, de tão longa data, foram apropriadamente recompensados com um título de conde e a Ordem da Jarreteira. Ele abriu mão da vasta autoridade que havia conquistado e mantido cuidadosamente, mas que usara tão pouco quanto possível. Retirou-se envolto num halo de gratidão e estima popular. Não havia dúvida de quem seria seu sucessor. Mr. Neville Chamberlain, como ministro das Finanças, havia não apenas exercido a principal função do governo nos cinco anos anteriores, como era também o ministro mais competente e vigoroso, de habilidades superiores e com um nome histórico. Um ano antes, em Birmingham, eu o descrevera, nas palavras de Shakespeare, como o “cargueiro de nossas grandes questões”, e ele havia aceito essa descrição como um elogio. Eu não tinha nenhuma expectativa de que desejasse trabalhar comigo, nem tampouco ele teria sido sensato se o fizesse nessa ocasião. Suas ideias eram muito diferentes das minhas quanto ao trato das questões dominantes da época. Mas acolhi de bom grado a ascensão ao poder de uma figura executiva competente e cheia de vida. Nossas relações continuaram frias, afáveis e polidas, tanto em público quanto em particular.
Posso expor aqui uma apreciação comparativa desses dois primeiros-ministros, Baldwin e Chamberlain, a quem eu conhecera por tanto tempo e sob cujas ordens havia trabalhado ou iria trabalhar. Stanley Baldwin era a figura mais perspicaz e preparada, porém desprovida de uma capacidade executiva minuciosa. Era largamente desligado das questões estrangeiras e militares. Conhecia pouco da Europa e do que conhecia não gostava. Tinha profundo conhecimento da política partidária inglesa e representava, em termos gerais, alguns dos pontos fortes e muitas das fraquezas de nossa raça. Havia lutado em cinco eleições gerais como líder do Partido Conservador e vencera três delas. Tinha um talento especial para servir aos acontecimentos e imperturbabilidade diante das críticas adversas. Era singularmente hábil em deixar que os acontecimentos trabalhassem a seu favor e sabia aproveitar o momento certo quando ele chegava. Parecia-me reviver as impressões que a história nos dá de Sir Robert Walpole, sem, é claro, a corrupção do século XVIII, e foi o mastro da política inglesa por quase o mesmo longo período.
Neville Chamberlain, por outro lado, era alerta, metódico, de opiniões firmes e possuía um altíssimo grau de autoconfiança. Diversamente de Baldwin, imaginava-se capaz de compreender todo o quadro da situação na Europa e, a rigor, do mundo inteiro. Em vez de uma intuição vaga, mas, ainda assim, arraigada, tínhamos agora uma eficiência estrita e aguçada, dentro dos limites da política em que ele confiava. Como ministro das Finanças e como primeiro-ministro, ele manteve o mais estreito e rígido controle sobre os gastos militares. Durante todo esse período, foi o magistral opositor a todas as medidas de emergência. Havia formado juízos decididos sobre todas as personalidades políticas da época, no país e no exterior, e sentia-se capaz de lidar com elas. Sua esperança, que a tudo passava, era entrar para a história como o grande pacificador, e para esse fim estava disposto a se esforçar sem trégua, a despeito dos acontecimentos, e a enfrentar grandes riscos para ele mesmo e para seu país. Infelizmente, deparou com correntezas cuja força não soube aquilatar e enfrentou furacões diante dos quais não recuou, mas com os quais não pôde lidar. Nesses últimos anos antes da guerra, ter-me-ia sido mais fácil trabalhar com Baldwin, tal como eu o conhecia, do que com Chamberlain; mas nenhum dos dois tinha qualquer desejo de trabalhar comigo, a não ser em último caso.
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Certo dia, em 1937, tive uma reunião com Herr von Ribbentrop, o embaixador alemão na Inglaterra. Em um de meus artigos quinzenais, eu havia assinalado que sua fala fora deturpada num discurso que ele havia feito. Em sociedade, é claro, eu o havia encontrado diversas vezes. Foi então que ele me perguntou se eu poderia visitá-lo para conversarmos. Recebeu-me no amplo salão do andar superior da embaixada da Alemanha. Tivemos uma conversa que durou mais de duas horas. Ribbentrop foi muito polido e discorremos sobre o cenário europeu, no tocante aos armamentos e à política. A essência das declarações que ele me fez foi no sentido de que a Alemanha estava em busca da amizade da Inglaterra (no continente, ainda somos frequentemente chamados de “Inglaterra”). Disse-me que poderia ter sido ministro do Exterior da Alemanha, mas pedira a Hitler que o deixasse vir para Londres, a fim de trabalhar plenamente por um entendimento ou até uma aliança anglo-alemã. A Alemanha seria guardiã do Império Britânico em toda a sua grandeza e extensão. Talvez pleiteasse a devolução das colônias alemãs, mas isso, evidentemente, não era fundamental. O necessário era que a Inglaterra desse carta branca à Alemanha no Leste Europeu. Ela precisava ter seu Lebensraum, espaço vital para sua população cada vez maior. Assim, a Polônia e o Corredor de Danzig deveriam ser absorvidos. A Rússia Branca e a Ucrânia eram indispensáveis para a vida futura do Reich alemão de setenta milhões de habitantes. Nada aquém disso seria suficiente. Tudo o que se pleiteava da Commonwealth Britânica de Nações e do Império Britânico era não interferência. Havia um mapa grande na parede e, por várias vezes, o embaixador levou-me até ele para ilustrar seus projetos.
Depois de ouvir tudo isso, afirmei ter certeza de que o governo inglês não concordaria em dar carta branca à Alemanha na Europa oriental. Era verdade que nossas relações com a Rússia soviética estavam ruins e que odiávamos o comunismo tanto quanto Hitler, mas ele podia ter certeza de que, mesmo que a França fosse bem-tratada, a Inglaterra jamais se desinteressaria dos destinos do continente europeu a ponto de permitir à Alemanha obter o domínio da Europa Central e Oriental. Estávamos justamente de pé, junto ao mapa, quando afirmei isso. Ribbentrop deu as costas para o mapa abruptamente. Em seguida, disse: “Nesse caso, a guerra é inevitável. Não há saída. O Führer está decidido. Nada o deterá e nada nos deterá.” Voltamos então para nossas cadeiras. Eu era apenas um membro isolado do parlamento, mas tinha certa proeminência. Julguei apropriado dizer ao embaixador alemão — na verdade, lembro-me bem das palavras: “Ao falar em guerra, que sem dúvida seria uma guerra generalizada, o senhor não deve subestimar a Inglaterra. É um país curioso e poucos estrangeiros conseguem entender sua mentalidade. Não faça julgamentos com base na atitude do governo atual. Uma vez apresentada ao povo uma grande causa, toda sorte de atos inesperados pode ser praticada por esse mesmo governo e pela nação inglesa.”
E repeti: “Não subestime a Inglaterra. Ela é muito inteligente. Se vocês nos mergulharem a todos noutra Grande Guerra, ela porá o mundo inteiro contra vocês, como da última vez.” Diante disso, o embaixador ergueu-se de sua cadeira e disse: “Ah, a Inglaterra pode ser muito inteligente, mas, desta vez, não fará o mundo voltar-se contra a Alemanha.” Desviamos a conversa para assuntos mais amenos e não ocorreu mais nada que fosse digno de nota. Esse incidente, no entanto, ficou-me na memória e, uma vez que o relatei ao Foreign Office na época, sinto-me à vontade para registrá-lo por escrito.
Quando estava em julgamento, sujeito a ser condenado à morte pelos vencedores, Ribbentrop forneceu uma versão distorcida dessa conversa e alegou que eu deveria ser chamado como testemunha. O que registrei dela é o que teria dito, se tivesse sido convocado.
1 Todos os meus destaques gráficos são posteriores.