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A violação da Áustria, fevereiro de 1938

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Na era moderna, quando as nações são derrotadas na guerra, normalmente preservam sua estrutura, sua identidade e o sigilo de seus arquivos. Mas nesta oportunidade, tendo sido a guerra travada até seu mais completo fim, entra­mos em plena posse da história interna do inimigo. A partir dela, podemos verificar com alguma exatidão nossas próprias informações e nosso desem­penho. Em julho de 1936, Hitler havia instruído o Estado-Maior alemão a traçar planos militares de ocupação da Áustria quando fosse a hora. Essa operação se chamou Case Otto. E então, em 5 de novembro de 1937, ele revelou seus planos futuros aos chefes de suas forças armadas. A Alemanha precisava de mais “espaço vital”. O melhor lugar para encontrá-lo era no Leste europeu — na Polônia, na Rússia Branca e na Ucrânia. Consegui-lo implicaria uma grande guerra e, incidentalmente, o extermínio das gentes que então viviam nessas regiões. A Alemanha teria de se haver com seus dois “inimigos odiosos”, a Inglaterra e a França, para quem “um colosso alemão no centro da Europa seria intolerável”. A fim de tirar proveito da vantagem que havia conquistado na produção de material bélico e do fervor patriótico despertado e representado pelo Partido Nazi, portanto, ela deveria travar essa guerra na primeira oportunidade favorável, e lidar com seus dois adversários óbvios antes que eles estivessem prontos para lutar.

Neurath, Fritsch e até Blomberg, todos influenciados pelas opiniões do Ministério do Exterior, do Estado-Maior e do corpo de oficiais da Alema­nha, ficaram alarmados com essa política. Achavam os riscos altos demais. Reconheciam que, graças à audácia do Führer, estavam definitivamente à frente dos aliados em todas as formas de rearmamento. O exército amadu­recia mês a mês; a decadência interna da França e a falta de força de vontade da Inglaterra eram fatores favoráveis, que bem poderiam ser aproveitados ao máximo. Que eram um ou dois anos, quando tudo estava correndo tão bem? Eles precisavam de tempo para completar a máquina de guerra, e um discurso conciliatório do Führer, de quando em vez, manteria tagarelando aquelas democracias tolas e degeneradas. Mas Hitler não tinha essa certeza. Sua intuição lhe dizia que a vitória não seria atingida por processos de cer­teza. Tinha que correr riscos. Era preciso dar o bote. Ele estava alvoroçado com seus sucessos, primeiro no rearmamento, segundo, no recrutamento, terceiro, na Renânia, e quarto, na ascensão da Itália de Mussolini. Esperar até que tudo estivesse pronto significava, provavelmente, esperar até que fosse tarde demais. É muito fácil para os historiadores, e outros que não têm de viver e tomar decisões de um dia para o outro, afirmar que Hitler teria tido todo o destino do mundo nas mãos se houvesse continuado a aumentar sua força por mais dois ou três anos antes de atacar. Mas isso não procede. Não há certezas na vida humana ou na vida das nações. Hitler estava decidido a se apressar e a travar a guerra enquanto estava no auge.

Blomberg, enfraquecido diante do oficialato em função de um casamento inadequado, foi o primeiro a ser afastado; em seguida, em 4 de fevereiro de 1938, Hitler demitiu Fritsch e assumiu pessoalmente o comando supremo das forças armadas. Tanto quanto é possível para um só homem — por mais talentoso e poderoso que seja e por mais terríveis os castigos que possa infligir — fazer sua vontade prevalecer sobre esferas tão vastas, o Führer o fez, assumindo o controle direto, não apenas da política do estado, mas também da máquina militar. Nessa época, ele detinha algo semelhante ao poder de Napoleão depois de Austerlitz e Iena, obviamente sem a glória de ter vencido grandes batalhas sob sua orientação pessoal, montado a cavalo, mas com triunfos nos campos político e diplomático que seu círculo e todos os seus seguidores sabiam dever-se unicamente a ele, ao seu discernimento e ousadia.

Afora sua determinação, tão claramente exposta em Mein Kampf, de in­cluir todas as raças teutônicas no Reich, Hitler tinha duas razões para querer absorver a República da Áustria. Ela abria para a Alemanha tanto as portas da Tchecoslováquia quanto os portais mais espaçosos do sudeste europeu. Desde o assassinato do chanceler Dollfuss, em julho de 1934, perpetrado pelo setor austríaco do Partido Nazi, o processo de subversão do governo austríaco independente, através do dinheiro, da intriga e da força, nunca se interrompera. O movimento nazista na Áustria crescia a cada sucesso colhido por Hitler em outros lugares, fosse dentro da Alemanha ou contra os aliados. Tinha sido necessário avançar passo a passo. Oficialmente, Papen fora instruído a manter as mais cordiais relações com o governo austríaco e a obter dele o reconhecimento oficial do Partido Nazi como um órgão legal. Naquela ocasião, a atitude de Mussolini havia imposto um retraimento. Após o assassinato do dr. Dollfuss, o ditador italiano voara até Veneza para receber e consolar a viúva, que ali se refugiara, e forças italianas conside­ráveis tinham-se concentrado na fronteira meridional da Áustria. Agora, porém, na alba de 1938, haviam ocorrido mudanças decisivas nas coalizões e nos valores europeus. A Linha Siegfried confrontava a França com uma barreira crescente de aço e concreto, exigindo, ao que parecia, um enorme sacrifício de soldados franceses para ser penetrada. A porta do Ocidente estava fechada. Mussolini fora impelido para o sistema alemão por sanções tão ineficazes que o haviam enraivecido sem debilitar seu poder. Ele bem poderia ter ponderado, prazerosamente, sobre o célebre dito de Maquiavel: “Os homens se vingam das pequenas ofensas, mas não das grandes.” Acima de tudo, as democracias ocidentais pareciam ter dado provas reiteradas de que se curvariam ante a violência, desde que elas mesmas não fossem di­retamente atacadas. Papen trabalhava com habilidade dentro da estrutura política austríaca. Muitos notáveis da Áustria haviam cedido a sua pressão e suas intrigas. O turismo, tão importante para Viena, fora impedido pela insegurança vigente. Como pano de fundo, a atividade terrorista e os aten­tados a bomba abalavam a vida frágil da República Austríaca.

Considerou-se que era chegada a hora de ter o controle da política local, assegurando a entrada dos líderes do recém-legalizado Partido Nazi austríaco no Gabinete de Viena. Em 12 de fevereiro de 1938, oito dias depois de assumir o comando supremo, Hitler convocou a Berchtesgaden o chanceler austríaco, Herr von Schuschnigg. Ele obedeceu e foi acompanhado por seu ministro do Exterior, Guido Schmidt. Dispomos hoje dos registros de Schuschnigg,1 e neles ocorre o diálogo citado adiante. Hitler havia men­cionado as defesas da fronteira austríaca. Elas eram apenas o suficiente para tornar necessária uma operação militar para derrubá-las e, com isso, levantar grandes questões de paz e guerra.

Hitler: Só preciso dar uma ordem e, da noite para o dia, todos aqueles espantalhos ridículos da fronteira vão desaparecer. Vocês não acreditam realmente que me possam deter por meia hora, não? Quem sabe... talvez, de repente, da noite para o dia, eu esteja em Viena, como uma tempestade de primavera. Aí vocês vão realmente ver como é. De bom grado eu pouparia isso aos austríacos; custará muitas vítimas. Depois dos soldados, virão a SA e a Legião! Ninguém poderá impedir a vingança deles, nem mesmo eu. Vocês querem transformar a Áustria noutra Espanha? Eu gostaria de evitar isso, se possível.

Schuschnigg: Vou pedir as informações necessárias e porei um paradeiro na construção de qualquer obra de defesa na fronteira alemã. Naturalmente, reconheço que o senhor pode marchar sobre a Áustria, mas, senhor chan­celer, queiramos ou não, isso levaria ao derramamento de sangue. Não estamos sozinhos no mundo. Provavelmente significaria a guerra.

Hitler: É muito fácil dizer isso neste momento, quando estamos aqui sentados em poltronas de salão, mas por trás disso tudo há uma soma de sofrimento e sangue. O senhor assumirá a responsabilidade por isso, Herr Schuschnigg? Não creia que alguém no mundo irá atrapalhar minhas deci­sões! A Itália? Tenho tudo muito claro com Mussolini: com a Itália, tenho as relações mais estreitas possíveis. A Inglaterra? A Inglaterra não erguerá um dedo pela Áustria... E a França? Bem, dois anos atrás, quando marchamos para a Renânia com um punhado de batalhões — naquele momento, eu arrisquei muito. Se a França tivesse avançado naquela ocasião, teríamos sido obrigados a recuar... Mas, agora, é tarde demais para a França!

Essa primeira entrevista ocorreu às 11 horas. Após um almoço formal, os austría­cos foram chamados a uma saleta e ali confrontados por Ribbentrop e Papen com um ultimato escrito. Os termos não estavam em discussão. Incluíam a nomeação do nazista austríaco Seyss-Inquart como ministro da Segurança do governo da Áustria, uma anistia geral para todos os nazis austríacos que estavam presos e a incorporação oficial do Partido Nacional-Socialista Austríaco à Frente Patriótica patrocinada pelo governo.

Mais tarde, Hitler recebeu o chanceler austríaco. “Repito-lhe que esta é a última chance. Dentro de três dias, espero a execução deste acordo.” No diário de Jodl, a anotação diz: “Von Schuschnigg e Guido Schmidt estão novamente sob a mais intensa pressão política e militar. Às 11 horas da noi­te, Schuschnigg assina o ‘protocolo.’”2 Quando Papen levava Schuschnigg de volta no trenó pelas estradas cobertas de neve, em direção a Salzburgo, comentou: “É assim, eis aí o Führer; agora o senhor experimentou por si mesmo. Mas, quando o senhor vier da próxima vez, terá momentos muito mais agradáveis. O Führer sabe ser realmente encantador.”

O drama seguiu seu curso. Mussolini enviou um recado verbal a Schuschnigg, dizendo que considerava a atitude austríaca em Berchtesgaden acertada e habilidosa. Assegurou-o da atitude inalterável da Itália para com a questão austríaca e de sua amizade pessoal. Em 24 de fevereiro, o próprio chanceler austríaco discursou no parlamento da Áustria, dando as boas-vindas ao acordo com a Alemanha, mas destacando com certa rispidez que a Áustria nunca iria além dos termos específicos do acordo. Em 3 de março, ele enviou uma mensagem confidencial a Mussolini através do adido militar austríaco em Roma, informando ao Duce que pretendia reforçar a posição política da Áustria através da realização de um plebiscito. Vinte e quatro horas depois, recebeu uma mensagem do adido descrevendo sua entrevista com Mussolini. Nesta, o Duce se expressara em termos otimistas. A situa­ção iria melhorar. Uma détente iminente entre Roma e Londres garantiria um abrandamento da pressão existente... Quanto ao plebiscito, Mussolini dava um aviso: “È un errore. Se o resultado for satisfatório, dirão que não é autêntico. Se for ruim, a situação do governo ficará insustentável; e, se for inconclusivo, não tem valor.” Mas Schuschnigg estava decidido. Em 9 de março, anunciou oficialmente que se realizaria um plebiscito em toda a Áustria no domingo seguinte, 13 de março.

De início, nada aconteceu. Seyss-Inquart pareceu aceitar a ideia sem contestação. Às cinco e meia do dia 11, entretanto, Schuschnigg recebeu um telefonema da repartição central da polícia em Viena. Disseram-lhe: “A fronteira alemã em Salzburgo foi fechada há uma hora. Os funcionários da alfândega alemã foram retirados. As comunicações ferroviárias estão interrompidas.” A mensagem seguinte a chegar ao chanceler austríaco veio de seu cônsul-geral em Munique, dizendo que as tropas do exército alemão tinham sido mobilizadas; destino presumível: Áustria!

Mais tarde, naquela manhã, chegou Seyss-Inquart com o anúncio de que Göring acabara de lhe telefonar, dizendo que o plebiscito deveria ser cancelado dentro de uma hora. Se nenhuma resposta fosse recebida dentro desse prazo, Göring presumiria que Seyss-Inquart fora impedido de telefonar e tomaria providências consoantes com isso. Depois de ser informado por funcionários responsáveis de que a polícia e o exército não eram inteiramente confiáveis, Schuschnigg informou a Seyss-Inquart que o plebiscito seria adiado. Quinze minutos depois, este voltou com uma resposta de Göring, rabiscada num bloco de recados:

A única saída para a situação é o chanceler renunciar imediatamente e, dentro de duas horas, o dr. Seyss-Inquart ser nomeado chanceler. Se nada for feito dentro desse prazo, a invasão da Áustria pelos alemães virá em seguida.3

Schuschnigg foi ter com o presidente Miklas para submeter seu pedido de demissão. Enquanto estava na sala do presidente, recebeu uma mensa­gem do governo italiano, que declarava não ter nenhuma opinião a dar. O velho presidente mostrou-se obstinado: “Quer dizer que, na hora decisiva, fico sozinho.” Ele se recusava terminantemente a nomear um chanceler nazi. Estava decidido a forçar os alemães a praticarem um ato vergonhoso e violento. Mas eles estavam bem-preparados para isso. Hitler deu às forças armadas alemãs ordens de ocupar militarmente a Áustria. A Operação Otto, tão longamente estudada e tão criteriosamente preparada, teve início. O presidente Miklas enfrentou Seyss-Inquart e os líderes nazis austríacos com firmeza, em Viena, durante todo um dia febril. A conversa telefônica entre Hitler e o príncipe Philip de Hesse, seu enviado especial ao Duce, foi citada como prova em Nuremberg e é de interesse:

Hesse: Acabo de voltar do Palazzo Venezia. O Duce aceitou a coisa toda de maneira muito amistosa. Manda-lhe suas lembranças. Ele tinha recebido informações da Áustria; von Schuschnigg lhe comunicou. Nessa ocasião, disse que ela [i.e., uma intervenção italiana] seria uma completa impossibilidade; seria um blefe; não se podia fazer uma coisa dessas. Então, ele [Schuschnigg] foi informado de que, infelizmente, estava tudo acertado assim e não poderia mais ser modificado. Aí, Mussolini disse que a Áustria seria irrelevante para ele.

Hitler: Então, por favor, diga a Mussolini que nunca o esquecerei por isso.

Hesse: Sim.

Hitler: Nunca, nunca, nunca, haja o que houver. Ainda estou disposto a fazer um acordo bem diferente com ele.

Hesse: Sim, eu também lhe disse isso.

Hitler: Tão logo a questão da Áustria esteja resolvida, estarei pronto para fechar com ele, transpondo todo e qualquer obstáculo; nada tem importância.

Hesse: Sim, meu Führer.

Hitler: Escute. Farei qualquer acordo — não estou mais com medo da posição terrível que existiria, militarmente, se nos envolvêssemos num conflito. Você pode lhe dizer que sou sumamente grato a ele; nunca, nunca esquecerei isso.

Hesse: Sim, meu Führer.

Hitler: Nunca o esquecerei, aconteça o que acontecer. Se algum dia ele precisar de ajuda ou estiver correndo qualquer perigo, pode estar convencido de que ficarei ao lado dele, aconteça o que acontecer, nem que o mundo inteiro esteja contra ele.

Hesse: Sim, meu Führer.4

Sem dúvida, quando resgatou Mussolini das mãos do Governo Provisório italiano, em 1943, Hitler cumpriu sua palavra.

Uma entrada triunfal em Viena fora o sonho do cabo austríaco. Na noite de sábado, 12 de março, o Partido Nazi da capital havia planejado uma procissão à luz de tochas para recepcionar o herói conquistador. Mas ninguém apareceu. Três bávaros perplexos do serviço de suprimento, que haviam chegado de trem para providenciar alojamentos para o exército invasor, tiveram que ser carregados nos ombros pelas ruas. A causa desse retardamento transpirou aos poucos. A máquina de guerra alemã havia-se ar­rastado hesitantemente pela fronteira e parado por completo nas imediações de Linz. Apesar do tempo esplêndido e da perfeita condição das estradas, a maioria dos tanques havia enguiçado. Tinham surgido defeitos na artilharia pesada motorizada. A estrada que liga Linz a Viena ficara bloqueada por veículos pesados empacados. O general von Reichenau, grande favorito de Hitler e comandante do IV Grupo de Exércitos, foi responsabilizado pelo fiasco, que expôs as condições ainda imaturas do exército alemão nessa etapa de sua reconstrução.

O próprio Hitler, ao passar de automóvel por Linz, viu o engarrafamento e ficou furioso. Os tanques leves foram retirados da confusão e entraram em Viena, um aqui, outro ali, nas primeiras horas da manhã de domingo. Os veículos blindados e a artilharia pesada motorizada foram carregados em vagões ferroviários e só assim chegaram a tempo para a cerimônia. As fotografias de Hitler desfilando de carro por Viena, em meio a multidões exultantes ou aterrorizadas, são bastante conhecidas. Mas esse momento de glória mística teve um fundo de inquietação. O Führer, na verdade, es­tava tremendo de fúria ante as óbvias deficiências de sua máquina militar. Qualificou seus generais e estes retrucaram. Lembraram-lhe sua recusa a dar ouvidos a Fritsch e a suas advertências de que a Alemanha ainda não estava em condições de assumir o risco de um grande conflito. Mas as aparências foram salvas. As comemorações e paradas oficiais tiveram lugar. No domin­go, depois de um grande número de soldados alemães e nazis austríacos ter tomado posse de Viena, Hitler declarou a dissolução da República da Áustria e a anexação de seu território ao Reich alemão.

Herr von Ribbentrop estava prestes a deixar Londres para assumir o cargo de ministro do Exterior na Alemanha. Mr. Chamberlain deu um almoço de despedida em sua homenagem no n° 10 de Downing Street. Minha mulher e eu aceitamos o convite do primeiro-ministro para comparecer. Estavam presentes umas 16 pessoas, talvez. Minha mulher sentou-se ao lado de Sir Alexander Cadogan, perto de uma das extremidades da mesa. Quan­do a refeição ia mais ou menos a meio, um mensageiro do Foreign Office trouxe-lhe um envelope. Ele o abriu e ficou absorto, lendo seu conteúdo. Em seguida, levantou-se, circundou a mesa para chegar onde estava o pri­meiro-ministro e lhe entregou a mensagem. Embora a postura de Cadogan não indicasse que havia acontecido alguma coisa, não pude deixar de notar a evidente preocupação do primeiro-ministro. Pouco depois, Cadogan voltou com o papel e retomou seu lugar. Mais tarde, fui informado de seu conteúdo. Ele dizia que Hitler invadira a Áustria e que as forças mecanizadas alemãs estavam avançando rapidamente em direção a Viena. O almoço prosseguiu sem a menor interrupção, mas, logo depois, a senhora Chamberlain, que recebera algum sinal do marido, levantou-se dizendo: “Vamos todos tomar o café na sala de estar.” Bandeamo-nos para lá e, para mim e talvez alguns outros, ficou evidente que Mr. Chamberlain e sua senhora desejavam dar a função por encerrada. Uma espécie de inquietação geral perpassou o grupo e todos ficaram por ali, prontos para se despedir dos convidados de honra.

Mas Herr von Ribbentrop e sua mulher não pareciam minimamente conscientes desse clima. Ao contrário, retardaram-se por quase meia hora, retendo seus anfitriões numa conversa loquaz. Em certo momento, estive perto de Frau von Ribbentrop e, em tom de despedida, disse-lhe: “Espero que a Inglaterra e a Alemanha preservem sua amizade.” “Tome cuidado para não estragá-la”, foi sua graciosa réplica. Tenho certeza de que os dois sabiam perfeitamente o que havia acontecido, mas consideraram uma boa manobra manter o primeiro-ministro longe de seu trabalho e do telefone. Finalmente, Mr. Chamberlain disse ao embaixador: “Lamento, mas tenho que ir agora, para atender a alguns assuntos urgentes.” E, sem maior ceri­mônia, retirou-se da sala. Os Ribbentrop continuaram por ali, de modo que a maioria de nós pedimos licença e fomos para casa. Suponho que, em algum momento, eles tenham saído. Essa foi a última vez que vi Herr von Ribbentrop antes de ele ser enforcado.

Foram os russos que soaram o alarme e, em 18 de março, propuseram uma conferência para examinar a situação. Queriam discutir, nem que fosse apenas em linhas gerais, os meios e modos de implementar o Pacto Franco-Soviético de acordo com o sistema de ação da Liga, na eventualidade de uma grande ameaça à paz por parte da Alemanha. A proposta encontrou pouca receptividade em Paris e Londres. O governo francês estava tomado por outras preocupações. Havia sérias greves nas fábricas de aviões. Os exércitos de Franco estavam penetrando a fundo no território da Espanha comunista. Chamberlain estava cético e deprimido. Discordava profunda­mente de minha interpretação dos perigos que nos esperavam e dos meios de combatê-los. Eu viera insistindo na perspectiva de uma aliança franco-inglesa-russa, como única esperança de deter o avanço nazi.

Diz-nos Mr. Feiling que o primeiro-ministro expressou seu estado de ânimo numa carta dirigida a sua irmã em 20 de março:

O plano da “Grande Aliança”, como Winston a chama, havia-me ocorrido muito antes de ele o mencionar. (...) Conversei sobre ele com Halifax e nós o submetemos aos chefes de estado-maior e aos especialistas do Foreign Office. É uma ideia muito atraente; na verdade, pode-se dizer quase tudo a seu favor, até se examinar sua viabilidade. Desse momento em diante, sua atração desaparece. Basta olhar para o mapa para ver que nada do que a França ou nós possamos fazer teria qualquer possibilidade de impedir a Tchecoslováquia de ser invadida pelos alemães, se eles quisessem. Assim, abandonei qualquer ideia de dar garantias à Tchecoslováquia ou aos fran­ceses, no que tange às obrigações da França com aquele país.5

Pelo menos, era uma decisão. Foi tomada com base em argumentos errados. Nas guerras modernas das grandes nações ou alianças, as áreas específicas não são defendidas apenas por esforços locais. Todo o vasto equilíbrio da frente de guerra é envolvido. Isso é tanto mais verdadeiro em relação à política a ser adotada antes da guerra, enquanto ela ainda pode ser evitada. Sem dúvida, os “chefes de estado-maior e especialistas do Foreign Office” não precisavam refletir muito para dizer ao primeiro-ministro que a marinha inglesa e o exército francês não poderiam tomar posição na frente montanhosa da Boêmia para se colocar entre a República da Tchecoslováquia e o exército invasor de Hitler. De fato, isso era evidente no mapa. Mas a certeza de que a transposição da linha de fronteira boêmia acarretaria uma guerra europeia generalizada bem poderia, mesmo nessa ocasião, ter impe­dido ou retardado o ataque seguinte de Hitler. Quão errôneo se afigura o raciocínio particular e sincero de Mr. Chamberlain se pensarmos na garantia que ele daria à Polônia, um ano depois, quando todo o valor estratégico da Tchecoslováquia fora jogado fora e o poder e prestígio de Hitler haviam quase duplicado!

O leitor é agora convidado a rumar para oeste em direção à Ilha Esmeral­da, a verde Irlanda. “É uma longa estrada até Tipperary”,6 mas uma visita lá, em certos momentos, é irresistível. No intervalo entre a tomada da Áustria por Hitler e o desdobramento de seus planos na Tchecoslováquia, devemos voltar-nos para um tipo totalmente diferente de infortúnio que se abateu sobre nós.

Desde o início de 1938 ocorriam negociações entre o governo inglês e o de Mr. de Valera, na Irlanda do Sul, e em 25 de abril assinou-se um acordo pelo qual, entre outras questões, a Inglaterra renunciava a todos os direitos de ocupar, para fins navais, os portos de Queenstown e Berehaven, no sul da Irlanda, e a base em Lough Swilly. Esses dois portos sulistas eram um elo vital da defesa naval de nosso suprimento de gêneros alimentícios. Quando, em 1922, na posição de ministro das Colônias e Domínios, eu tratara dos detalhes do acordo irlandês feito pelo Gabinete daquela época, havia leva­do o almirante Beatty ao Ministério das Colônias para que ele explicasse a Michael Collins a importância desses portos para todo o nosso sistema de transporte de suprimentos para a Inglaterra. Collins se convencera pronta­mente. “É claro que devem ficar com os portos”, dissera. “São necessários para vossa vida.” Assim, o assunto fora acertado e tudo havia funcionado tranquilamente nos 16 anos decorridos desde então. É fácil entender a razão por que Queenstown e Berehaven eram necessários para nossa se­gurança. Eram as bases de abastecimento de combustível a partir das quais nossos contratorpedeiros deslocavam-se para oeste pelo Atlântico, para caçar submarinos e proteger os comboios que chegavam, à medida que eles se aproximavam da garganta dos mares próximos. Lough Swilly era necessária também para proteger a aproximação dos estuários do Clyde e do Mersey. Abandonar esses portos significava que nossas flotilhas teriam que partir de Lamlash, no norte, e de Pembroke Dock ou Falmouth, no sul, com isso reduzindo em mais de quatrocentas milhas seu raio de ação e a proteção que eram capazes de fornecer, dentro e fora de nossas águas.

Para mim, era incrível os chefes de estado-maior terem concordado em jogar fora essa segurança e, até o último momento, achei que ao menos tería­mos guardado direito a esses portos irlandeses em caso de guerra. Entretanto, Mr. de Valera anunciou no Dail7 que nenhuma condição de qualquer tipo fora imposta para essa cessão. Mais tarde, foi-me assegurado que Mr. de Valera ficara surpreso com a rapidez com que o governo inglês havia concordado com sua solicitação. Ele a havia incluído em suas propostas como elemento de barganha, que poderia ser dispensado quando os outros pontos fossem acertados.

Lord Chatfield dedicou um capítulo, em seu último livro, a explicar a linha de ação adotada por ele e os outros chefes de estado-maior.8 Ele cer­tamente deve ser lido pelos que desejem examinar o assunto. Pessoalmente, continuo convencido de que a cessão gratuita de nosso direito de usar os portos irlandeses na guerra foi um grande prejuízo para a vida e a segurança nacional inglesa. É difícil imaginar um ato mais irresponsável — e numa época como aquela. Verdade que, no final das contas, sobrevivemos sem os portos. Também é verdade que, se não tivéssemos podido fazê-lo sem eles, nós os teríamos retomado à força, em vez de morrer de fome. Mas isso não é desculpa. Muitos navios e muitas vidas logo seriam perdidos como resultado desse exemplo imprevidente de apaziguamento.

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1 Schuschnigg, Ein Requiem in Rot-Weiss-Rot, p. 37 seg.

2 Nuremberg Documents, H.M. Stationery Office, parte I, p. 249.

3 Schuschnigg, op. cit., pp. 51, 52, 66 e 67.

4 Schuschnigg, op. cit., pp. 102-3, e Nuremberg Documents, I, pp. 258-9.

5 Keith Feiling, Life of Neville Chamberlain, pp. 347-8.

6 “It’s a long, long way to Tipperary”, canção favorita dos soldados ingleses na Grande Guerra. (N.T.)

7 Câmara baixa do parlamento do Estado Livre Irlandês. (N.T.)

8 Lord Chatfield, It Might Happen Again, cap. XVIII.