A batalha da França
Na eclosão da guerra, em setembro de 1939, o poderio do exército e da força aérea alemães se concentrara na invasão e conquista da Polônia. Ao longo da frente ocidental, de Aix-la-Chapelle até a fronteira suíça, ficaram 42 divisões alemãs sem blindados. Depois da mobilização francesa, a França poderia ter disposto setenta divisões em oposição a elas. Por motivos que já foram explicados, não se considerara possível atacar os alemães nessa ocasião. Muito diferente foi a situação em 10 de maio de 1940. O inimigo, aproveitando a demora de oito meses e a destruição da Polônia, havia armado, equipado e treinado cerca de 155 divisões, das quais dez eram Panzer, divisões blindadas. O acordo de Hitler com Stalin permitiu-lhe reduzir as forças alemãs no Leste a ínfimas proporções. Em frente à Rússia, segundo o general Halder, chefe do Estado-Maior alemão, ficara nada mais do que “uma pequena força de cobertura, que mal se prestaria a coletar taxas de alfândega”. Sem qualquer premonição sobre seu próprio futuro, o governo soviético assistiu à destruição da “segunda frente” ocidental, pela qual mais tarde clamaria com tanta veemência e pela qual teria de esperar em agonia durante tanto tempo. Hitler, portanto, estava em condições de desferir seu ataque à França com 126 divisões e com a totalidade da imensa arma blindada de dez divisões Panzer, quase três mil carros de combate, pelo menos mil pesados.
Do lado oposto a esse conjunto, cuja força e disposição exatas obviamente nos eram desconhecidas, os franceses tinham um total equivalente a 103 divisões, incluindo as inglesas. Se os exércitos da Bélgica e da Holanda entrassem, esse número teria sido aumentado em 22 divisões belgas e dez divisões holandesas. Como esses dois países foram imediatamente atacados, em 10 de maio o total das divisões aliadas de todos os tipos nominalmente disponíveis era de 135, ou praticamente o mesmo número que hoje sabemos que o inimigo possuía. Adequadamente organizada e equipada, bem-treinada e bem-conduzida, essa força, pelos padrões da guerra anterior, teria tido uma boa probabilidade de conter a invasão.
Entretanto, os alemães tiveram plena liberdade de escolher o momento,a direção e a força de seu ataque. Mais da metade do exército francês encontrava-se nos setores sul e leste da França, e as 51 divisões francesas e inglesas do I Grupo de Exércitos do general Billotte, acrescidas pela ajuda belga e holandesa que pudesse chegar, tiveram de enfrentar o avanço de mais de setenta divisões inimigas, comandadas por Bock e Rundstedt, entre Longwy e o mar. A combinação de tanques quase à prova de tiros de canhões com aviões bombardeiros, que se revelara tão eficiente na Polônia em menor escala, formaria novamente a ponta de lança do grande ataque, e um grupo de cinco divisões Panzer e três motorizadas, sob o comando de Kleist, foi dirigido através das Ardenas para Sedan e Monthermé.
Para enfrentar essas formas modernas de guerra, os franceses tinham cerca de 2.300 tanques, em sua maioria leves. Suas formações mecanizadas incluíam alguns tipos modernos poderosos, porém mais da metade de toda a sua força blindada estava disseminada em batalhões dispersos de tanques ligeiros, voltados para a cooperação com a infantaria. Suas seis divisões blindadas,1 as únicas com que poderiam ter enfrentado o assalto em massa dos Panzers, estavam dispersas ao longo do front e não podiam ser concentradas para entrar em operação num combate coerente. A Inglaterra, berço do tanque, mal acabara de completar a formação e o treinamento de sua primeira divisão blindada (328 tanques), que ainda estava na ilha.
Os aviões de combate alemães, então concentrados no ocidente, eram muito superiores aos franceses em número e qualidade. A força aérea inglesa na França compunha-se dos dez esquadrões de caças Hurricane que puderam ser liberados da defesa interna vital, e mais 19 esquadrões de outros tipos. Nem as autoridades aeronáuticas francesas nem as inglesas haviam-se equipado com bombardeiros de mergulho, que, nessa época, como ocorrera na Polônia, passaram a ter destaque, e que iriam desempenhar um papel importante no abatimento moral da infantaria francesa.
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Durante a noite de 9-10 de maio, precedidas por vastos ataques aéreos contra aeródromos, comunicações, quartéis e depósitos, todas as forças alemãs arremessaram-se para a França pelas fronteiras da Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Conseguiram uma completa surpresa tática em quase todos os casos. Da escuridão brotaram, subitamente, inúmeros grupos de impetuosas tropas de assalto bem-armadas, muitas vezes com artilharia leve. Bem antes do amanhecer, 150 milhas de fronteira estavam em chamas. Atacadas sem o menor pretexto ou advertência, a Holanda e a Bélgica gritaram por socorro. Os holandeses haviam confiado em sua linha-d’água; todos os diques não capturados ou entregues ao inimigo foram abertos, e os guardas holandeses de fronteira abriram fogo contra os invasores.
Mr. Colijn, quando me visitara em 1937 como primeiro-ministro da Holanda, havia-me explicado a maravilhosa eficiência das inundações holandesas. Através de uma mensagem telefônica enviada dali, da mesa de almoço em Chartwell, ele poderia, explicou, dar uma ordem que colocaria o invasor diante de obstáculos aquáticos intransponíveis. Mas tudo isso era absurdo. Nas condições modernas, o poder de uma grande nação contra um pequeno país é esmagador. Os alemães irromperam por todos os pontos, lançando pontes sobre os canais ou capturando as represas e o comando das comportas. Num único dia, toda a linha externa das defesas holandesas foi dominada. Ao mesmo tempo, a força aérea alemã despejou seu poderio sobre um país indefeso. Rotterdam foi reduzida a uma pilha de escombros em chamas. Haia, Utrecht e Amsterdã estavam ameaçadas de ter o mesmo destino. A esperança holandesa de que o avanço do flanco direito alemão fosse desviado de seu país, como na guerra anterior, foi enganosa.
Ao longo do dia 14, as más notícias começaram a chegar. A princípio, tudo era vago. Às 19 horas, li para o Gabinete um telegrama, recebido de M. Reynaud, informando que os alemães haviam cruzado a fronteira em Sedan, que os franceses não estavam conseguindo resistir ao combinado de tanques e bombardeio de mergulho, e que eles solicitavam mais dez esquadrilhas de caças para restabelecer a fronteira. Outras mensagens recebidas pelos chefes de estado-maior davam informações semelhantes e acrescentavam que os generais Gamelin e Georges estavam apreensivos com a situação. Gamelin estava surpreso com a rapidez do avanço do inimigo. Em quase todos os pontos em que os exércitos haviam entrado em choque, o peso e a fúria do ataque alemão tinham sido esmagadores. Todas as esquadrilhas aéreas inglesas estavam lutando continuamente, sendo seu esforço principal contra as pontes flutuantes na área de Sedan. Várias foram destruídas e outras, danificadas, em ataques desesperados e audaciosos. As perdas no ataque às pontes em baixa altitude, causadas pela artilharia antiaérea alemã, foram cruéis. Num dos casos, dentre seis aviões, apenas um voltou da missão bem-sucedida. Só nesse dia, perdemos um total de 67 aeronaves e, sendo o combate principalmente com a artilharia antiaérea inimiga, respondemos pela derrubada de apenas 53 aviões alemães. Da RAF, naquela noite, restavam na França apenas 206 aviões em serviço, de um total de 474.
Essas informações detalhadas só chegaram aos poucos. Mas já estava claro que a continuação do combate, naquela escala, logo consumiria por completo a força aérea inglesa, a despeito de sua superioridade individual. A partir daí, estivemos pressionados pela dura questão de saber quanto poderíamos enviar da Inglaterra sem ficarmos indefesos e, com isso, perdermos a capacidade de continuar na guerra. Nossos próprios impulsos naturais e muitos argumentos militares de peso davam força aos incessantes e veementes apelos franceses. Por outro lado, havia um limite, e esse limite, desrespeitado, custaria a nossa vida.
Essas questões eram discutidas por todo o Gabinete de Guerra, que se reunia várias vezes por dia. O marechal do ar Dowding, no comando de caça de nossa defesa interna, havia-me declarado que, com 25 esquadrões de caças, ele defenderia a ilha contra todo o poderio da força aérea alemã. Porém, com menos do que isso, seria dominado. A derrota acarretaria não só a destruição de todos os nossos aeródromos e de nosso poder aéreo, mas também das fábricas de aviões, de que dependia todo o nosso futuro. Meus colegas e eu estávamos decididos a correr todos os riscos pela batalha até esse limite — e os riscos eram muito grandes —, mas não a ultrapassá-lo, fossem quais fossem as consequências.
Por volta das sete e meia do dia 15, fui acordado com a notícia de que M. Reynaud estava ao telefone de minha cabeceira. Ele falou em inglês e estava obviamente sob tensão: “Estamos derrotados.” Como eu não respondesse de imediato, voltou a dizer: “Fomos batidos, perdemos a batalha.” Respondi: “Mas, com certeza, isso não pode ter acontecido tão depressa, não é?” Ele retrucou: “A frente foi rompida perto de Sedan; eles estão entrando aos borbotões, em grande número, com tanques e carros blindados” — ou outras palavras nesse sentido. Disse-lhe então: “Toda a experiência mostra que a ofensiva para depois de algum tempo. Lembro-me de 21 de março de 1918. Depois de cinco ou seis dias, eles têm que parar por suprimentos, e surge a chance do contra-ataque. Aprendi tudo isso, na época, da boca do próprio marechal Foch.” Sem dúvida, isso era o que sempre tínhamos visto no passado e o que deveríamos estar vendo naquele momento. Mas o premier francês voltou à frase com que havia começado, e que se revelou verdadeira: “Fomos derrotados, perdemos a batalha.” Eu disse que estava disposto a ir até lá para uma conversa.
De fato, abrira-se um claro de umas cinquenta milhas, e por essa brecha a vasta massa dos blindados inimigos entrava em profusão. O IX Exército francês achava-se em estado de completa dissolução. Na noite de 15 de maio, informou-se que havia carros blindados alemães sessenta milhas aquém do front original. Também nesse dia, a luta na Holanda chegou ao fim. Devido à capitulação do alto-comando holandês às 11 horas, apenas uns poucos soldados holandeses puderam ser evacuados.
Claro que esse quadro dava a impressão geral de derrota. Eu tinha visto esse tipo de coisa muitas vezes na guerra anterior, e uma linha rompida, mesmo em ampla frente, não me transmitia a ideia das consequências aterradoras que estariam decorrendo disso. Sem acesso a informações oficiais por tantos anos, eu não compreendia a violência da revolução efetuada desde a guerra anterior pela incursão de uma massa de blindados pesados em grande velocidade. Eu tinha conhecimento deles, mas isso não havia alterado minhas convicções internas como deveria. E não havia o que eu pudesse fazer. Telefonei para o general Georges, que pareceu muito composto e informou que a brecha em Sedan estava sendo fechada. Um telegrama do general Gamelin também afirmou que, embora a situação entre Namur e Sedan fosse grave, ele a encarava com tranquilidade. Comuniquei a mensagem de Reynaud e as outras notícias ao Gabinete às 11 horas.
Mas, no dia 16, a penetração de mais de sessenta milhas, partindo da fronteira próxima a Sedan e afetando nossa posição, foi confirmada. Embora houvesse poucos detalhes disponíveis mesmo no Ministério da Guerra e fosse impossível formar uma visão clara do que estava acontecendo, a gravidade da crise era óbvia. Julguei imperativo ir a Paris naquela tarde.
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Por volta das 15 horas, embarquei num Flamingo, um avião de passageiros do governo, do qual havia três. Acompanharam-me o general Dill, subchefe do Estado-Maior Imperial, e Ismay.
Era um bom aparelho, muito confortável, que fazia cerca de 160 milhas por hora. Como não tivesse armamento, veio uma escolta, mas voamos numa nuvem de chuva e chegamos ao Le Bourget em pouco mais de uma hora. Desde o momento em que desembarcamos do Flamingo, ficou patente que a situação era incomparavelmente pior do que havíamos imaginado. Os oficiais que nos receberam disseram ao general Ismay que os alemães estariam em Paris dentro de alguns dias, no máximo. Depois de obter na embaixada informações sobre a situação, dirigi-me ao Quai d’Orsay, lá chegando às 17h30. Fui conduzido a um de seus belos salões. Reynaud estava presente, além de Daladier, ministro da Defesa Nacional e da Guerra, e do general Gamelin. Todos estavam de pé. Em momento algum nos sentamos ao redor de uma mesa. Havia um profundo abatimento em todos os rostos. Diante de Gamelin, num cavalete de estudante, havia um mapa de cerca de dois metros quadrados, onde uma linha traçada em tinta preta pretendia mostrar a frente aliada. Nessa linha estava desenhado um bolsão, pequeno mas sinistro, perto de Sedan.
O comandante em chefe explicou sucintamente o que havia acontecido. Os alemães haviam penetrado ao norte e ao sul de Sedan, numa frente de cinquenta ou sessenta milhas. O exército francês naquele ponto fora destruído ou dispersado. Uma pesada ofensiva de veículos blindados avançava com velocidade inaudita em direção a Amiens e Arras, aparentemente com a intenção de chegar ao litoral em Abbeville ou suas imediações. A alternativa era que rumassem para Paris. Por trás dos blindados, disse ele, oito ou dez divisões alemãs, todas motorizadas, iam avançando, criando flancos para elas mesmas à medida que investiam contra os dois exércitos franceses, desligados entre si, em ambos os lados. O general falou durante cerca de cinco minutos, sem que ninguém dissesse uma palavra. Quando parou, houve um silêncio considerável. Perguntei-lhe então: “Onde está a reserva estratégica?” — e, resvalando para o francês, que eu usava indiferentemente (indiferentemente em todos os sentidos): “Oú est la masse de manoeuvre?” O general Gamelin voltou-se para mim e, abanando a cabeça e encolhendo os ombros, respondeu: “Aucune” [Nenhuma].
Outra longa pausa. Do lado de fora, nos jardins do Quai d’Orsay, nuvens de fumaça subiam de grandes fogueiras. Pela janela, vi funcionários venerandos jogando nelas arquivos, levados até o fogo em carrinhos de mão. Já se preparava, pois, a evacuação de Paris.
A experiência passada, ao lado de suas vantagens, traz a desvantagem de que as coisas nunca acontecem da mesma forma uma segunda vez. De outro modo, creio que a vida seria fácil demais. Afinal, tínhamos tido nossos fronts rompidos muitas vezes antes; sempre fôramos capazes de ajeitar as coisas e vencer pela persistência o impacto do ataque. Mas ali estavam dois novos fatores que eu nunca havia imaginado ter de enfrentar. Primeiro, a devastação de todas as linhas de comunicação e do interior do país por uma incursão irresistível de carros de combate, e segundo, nenhuma reserva estratégica. “Aucune.” Eu estava perplexo. Que pensar do Grande Exército Francês e de seus altos comandantes? Nunca me havia ocorrido que um comandante, tendo que defender quinhentas milhas de front ativo, se permitisse ficar sem massa de manobra. Ninguém pode ter certeza de conseguir defender uma frente tão ampla, mas, quando o inimigo se lança numa grande ofensiva que rompe a linha, é sempre possível ter — sempre se deve ter — uma massa de divisões que venham num contra-ataque enérgico, no momento em que a fúria inicial da ofensiva desgaste as forças.
A que servia a Linha Maginot? Ela deveria ter economizado tropas num amplo setor da fronteira, não apenas oferecendo muitas vias de acesso para a realização de contra-ataques locais, mas também permitindo que grandes forças fossem mantidas em reserva; e esse é o único meio de fazer essas coisas. Mas, naquele momento, não havia reserva. Admito que essa foi uma das maiores surpresas que tive em minha vida. Por que eu não tivera mais informações a respeito, mesmo tendo estado tão atarefado no almirantado? Por que o governo inglês e, acima de tudo, o Ministério da Guerra não tinham sabido mais a esse respeito? Não era desculpa dizer que o Alto Comando francês não comunicava seus planos a nós ou a Lord Gort, a não ser em vagas linhas gerais. Tínhamos o direito de saber. Deveríamos ter insistido. Os dois exércitos estavam lutando juntos no front. Voltei para a janela e para os rolos ondulantes de fumaça das fogueiras alimentadas por documentos da República Francesa. Os vetustos senhores continuavam a empurrar seus carrinhos de mão e a lançar seu conteúdo nas chamas, diligentemente.
Pouco depois, o general Gamelin tornou a falar. Estava debatendo se agora deveriam reunir forças para atacar pelos flancos a penetração, ou o “bolsão”, como depois passamos a chamar essas coisas. Oito ou nove divisões estavam sendo retiradas de partes quietas do front, da Linha Maginot; havia duas ou três divisões blindadas que não tinham entrado em combate; mais oito ou nove divisões estavam sendo trazidas da África e chegariam à zona de batalha na quinzena seguinte, ou num prazo de três semanas. Os alemães avançariam, dali por diante, através de um corredor entre duas frentes, nas quais seria possível travar batalha à maneira de 1917 e 1918. Talvez os alemães não conseguissem manter o corredor, tendo que proteger cada vez mais seu flanco duplo e, ao mesmo tempo, alimentar sua incursão blindada. Gamelin pareceu estar dizendo algo nesse sentido, e tudo aquilo era muito sensato. Percebi, no entanto, que não havia convicção naquele grupo pequeno, mas, até então, influente e responsável. Pouco depois, perguntei ao general Gamelin quando e onde ele propunha atacar os flancos do bolsão. Sua resposta foi: “Inferioridade numérica, inferioridade de equipamento, inferioridade de método” — e, em seguida, um desolado encolher dos ombros. E onde estavam os ingleses, afinal, considerando-se nossa minúscula contribuição — dez divisões, depois de oito meses de guerra, e nem ao menos uma divisão moderna de tanques em ação?
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O refrão do general Gamelin e, a rigor, de todos os comentários subsequentes do Alto Comando francês foi a insistência em sua inferioridade aérea, bem como apelos ansiosos por mais esquadrilhas da RAF — bombardeiros e caças, mas, principalmente, estes últimos. Essas súplicas por mais apoio de aviões de caça estavam fadadas a se repetir em todas as conferências subsequentes, até a capitulação da França. No decorrer de seu apelo, o general Gamelin disse que os caças eram necessários não apenas para dar cobertura ao exército francês, mas também para deter os tanques alemães. Diante disso, retruquei: “Não. Deter os tanques é tarefa da artilharia. A missão dos caças é limpar o céu [nettoyer le ciel] acima da batalha.” Era vital que os caças de nossa força aérea não fossem arrastados para fora da Inglaterra sob pretexto algum. Nossa vida dependia disso. Não obstante, era preciso cortar até o osso. Pela manhã, antes de eu partir, o Gabinete já me autorizara a deslocar mais quatro esquadrões de caças para a França. Ao voltarmos para a embaixada, e depois de discutir o assunto com Dill, decidi pedir permissão para o envio de mais seis. Isso nos deixaria apenas 25 esquadrões de caças em casa, e esse era o limite final. Era uma opção dilacerante em qualquer das duas soluções. Eu disse ao general Ismay que telefonasse a Londres, a fim de que o Gabinete se reunisse de imediato para discutir um telegrama urgente que seria enviado dentro de mais ou menos uma hora.
A resposta veio por volta das 23h30. O Gabinete disse “sim”. Imediatamente, levei Ismay comigo de carro ao apartamento de M. Reynaud. Encontramo-lo meio às escuras. Após uns minutos, M. Reynaud saiu de seu quarto de pijama e eu lhe dei a boa notícia. Dez esquadrões de caças! Convenci-o então a chamar M. Daladier, que foi devidamente convocado e levado ao apartamento para ouvir a decisão do gabinete inglês. Dessa maneira, eu esperava restaurar o ânimo dos nossos amigos franceses, tanto quanto o permitiam nossos meios limitados. Daladier não disse palavra. Levantou-se lentamente da cadeira e apertou minha mão. Voltei para a embaixada por volta das duas horas da manhã e dormi bem, embora o canhoneio de pequenas incursões aéreas me fizesse mudar de posição de vez em quando. Pela manhã, voei de volta para casa e, apesar de outras preocupações, tratei de prosseguir na formação do segundo escalão do novo governo.
O Gabinete de Guerra reuniu-se às dez horas do dia 17 e fiz um relato de minha visita a Paris e da situação, tanto quanto conseguia avaliá-la.
Informei ter dito aos franceses que se não fizessem um esforço supremo, não haveria como aceitarmos o grave risco em que estávamos incorrendo, para a segurança de nosso país, ao despachar os esquadrões adicionais de caças para a França. Eu sentia que a questão do reforço aéreo era uma das mais graves que um gabinete inglês jamais tivera de enfrentar. Dizia-se que as perdas aéreas alemãs tinham sido quatro ou cinco vezes maiores que as nossas, mas eu fora informado de que aos franceses só restara um quarto de suas aeronaves de combate. Nesse dia, Gamelin considerou a situação “perdida” e afirma-se que teria dito: “Garantirei a segurança de Paris apenas hoje, amanhã [dia 18] e na noite seguinte.” A crise deflagrada pela batalha intensificava-se a cada hora. Naquela tarde, os alemães entraram em Bruxelas. No dia seguinte, chegaram a Cambrai, passaram por St. Quentin e rechaçaram nossas pequenas frações para fora de Péronne. Os exércitos belgas, ingleses e franceses envolvidos continuaram sua retirada rumo ao Schelde.
À meia-noite (18-19 de maio), Lord Gort foi visitado em seu QG pelo general Billotte. Nem a personalidade desse general francês nem suas propostas, por elas mesmas, inspiravam confiança em seus aliados. A partir daquele momento, a possibilidade de uma retirada para o litoral começou a se configurar para o comandante em chefe inglês. Em seu despacho divulgado em março de 1941, ele escreveu: “O quadro, a essa altura (na noite de 19), já não era de uma frente forçada ou temporariamente rompida, mas de uma fortaleza sitiada.”
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Grandes mudanças foram então feitas por M. Reynaud no gabinete e no alto comando francês. No dia 18, o marechal Pétain foi nomeado vice-presidente do conselho de ministros. O próprio Reynaud, transferindo Daladier para as Relações Exteriores, assumiu o Ministério da Defesa Nacional e da Guerra. Às 19 horas do dia 19, ele nomeou Weygand, que acabara de chegar do Levante, para substituir o general Gamelin. Eu conhecera Weygand quando ele era o braço direito do marechal Foch e havia admirado sua intervenção magistral na Batalha de Varsóvia, contra a invasão bolchevique da Polônia, em agosto de 1920 — acontecimento decisivo para a Europa, na época. Agora, ele contava 73 anos, mas dizia-se que era muito eficiente e estava em pleno vigor. A última ordem do general Gamelin (n° 12), datada de 19 de maio — 9h45, determinava que os exércitos do norte, em vez de se deixarem cercar, abrissem caminho a todo custo em direção ao sul, rumo ao Somme, atacando as divisões Panzer que haviam cortado suas comunicações. Ao mesmo tempo, o II Exército e o VI Exército, então em processo de formação, deveriam atacar em direção ao norte, rumando para Mézières. Eram decisões sensatas. Na verdade, uma ordem de retirada geral dos exércitos do norte em direção ao sul já estava atrasada em pelo menos quatro dias. Uma vez que a gravidade da crise no centro da frente francesa em Sedan era evidente, a única esperança dos exércitos do norte estava numa marcha imediata para o Somme. Em vez disso, sob o comando do general Billote, eles tinham feito apenas retiradas gradativas e parciais para o Schelde e formado o flanco defensivo à direita. Mesmo nesse momento, talvez tivesse havido tempo para a marcha em direção ao sul.
A confusão do comando do norte, a aparente paralisia do I Exército francês e a incerteza sobre o que estava acontecendo haviam causado extrema angústia ao Gabinete de Guerra. Todo o nosso funcionamento era sóbrio e sereno, mas tínhamos uma opinião unida e decidida, por trás da qual havia uma aflição silenciosa. No dia 19, fomos informados, às 16h30, de que Lord Gort estava “examinando uma possível retirada para Dunquerque, se isso lhe fosse imposto”. O CIGS (Ironside) não pôde aceitar essa proposta, já que, como a maioria de nós, era favorável ao deslocamento para o sul. Assim, mandamos que ele levasse a Lord Gort instruções de movimentar o exército inglês na direção sudoeste e de abrir caminho contra qualquer oposição para se juntar aos franceses no sul; os belgas deveriam ser instados a se ajustar a essa movimentação, ou, então, ser informados de que evacuaríamos tantos de seus soldados quanto fosse possível pelos portos do canal da Mancha. Gort deveria ser informado de que nós mesmos comunicaríamos ao governo francês o que fora decidido. Nessa mesma reunião do Gabinete, mandamos Dill para o QG do general Georges, com o qual tínhamos uma linha telefônica direta. Ele deveria ficar lá por quatro dias e nos dizer tudo o que conseguisse descobrir. Os contatos até mesmo com Lord Gort eram intermitentes e difíceis, mas havia informações de que só existiam provisões para quatro dias e munição para uma batalha.
Na reunião matutina do Gabinete de Guerra em 20 de maio, voltamos a discutir a situação de nosso exército. Mesmo supondo que houvesse sucesso na luta para recuar até o Somme, eu achava provável que um número considerável de soldados ficasse isolado ou fosse empurrado de volta para o mar. Está registrado na ata da reunião: “O primeiro-ministro considerou que, como medida de precaução, o almirantado deveria reunir grande número de pequenas embarcações e mantê-las prontas para seguirem para portos e enseadas da costa francesa.” Com respeito a isso, o almirantado tomou providências imediatas e com vigor cada vez maior, à medida que os dias passavam e se escureciam. O controle operacional fora delegado no dia 19 ao almirante Ramsay, comandante em Dover, e, na tarde do dia 20, em consequência das ordens recebidas de Londres, realizou-se em Dover a primeira conferência de todas as partes envolvidas, inclusive representantes do Ministério da Navegação, para discutir “a evacuação de emergência de grande efetivo de tropas através da Mancha”. Planejou-se, se necessário, fazer a evacuação por Calais, Boulogne e Dunquerque, a um ritmo de dez mil homens saindo de cada porto a cada 24 horas. De Harwich até Weymouth, os oficiais de transporte naval foram instruídos a listar todas as embarcações adequadas de até mil toneladas, e fez-se um levantamento completo de todos os navios nos portos ingleses. Esses planos para a chamada Operação Dynamo foram a salvação do exército, dez dias depois.
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A direção da ofensiva alemã tornara-se então mais óbvia. Os blindados e as divisões mecanizadas continuaram a entrar em profusão pela abertura, em direção a Amiens e Arras, descrevendo uma curva pelo oeste ao longo do Somme, em direção ao mar. Na noite de 20 de maio, eles entraram em Abbeville, depois de atravessar e cortar todas as comunicações dos exércitos do norte. Esses terríveis e mortais golpes de foice depararam com pouca ou nenhuma resistência depois da ruptura do front. Os carros de combate alemães — os temidos “chars allemands” — corriam livremente pelo campo aberto e, ajudados e abastecidos pelo transporte motorizado, avançavam trinta ou quarenta milhas por dia. Haviam passado por dezenas de cidades e centenas de vilarejos sem a menor oposição, com seus oficiais olhando pelas cúpulas levantadas e acenando elegantemente para os habitantes. Algumas testemunhas oculares falaram em multidões de prisioneiros franceses marchando ao lado deles, muitos ainda carregando seus fuzis, os quais, de tempos em tempos, eram recolhidos e quebrados sob as esteiras dos tanques. Fiquei chocado com a extrema incapacidade de se dar combate às divisões blindadas alemãs, que, com alguns milhares de veículos, estavam conseguindo a destruição completa de exércitos poderosos; e surpreso com o rápido colapso de toda a resistência francesa, tão logo o front foi rompido. Toda a movimentação alemã era pelas estradas principais, que não pareciam estar bloqueadas em nenhum ponto.
A primeira providência de Weygand foi conferenciar com seus principais comandantes. Não deixava de ser natural que ele desejasse ver pessoalmente a situação no Norte e estabelecer contato com os comandantes de lá. Há que se fazer concessões a um general que assume o comando na crise de uma batalha que está sendo perdida. Mas, naquele momento, não havia tempo para isso. Ele não deveria ter deixado o supremo comando dos controles que restavam e ter-se envolvido nas delongas e tensões de um deslocamento pessoal. Podemos registrar com detalhes o que se seguiu. Na manhã de 20 de maio, Weygand, instalado no lugar de Gamelin, marcou uma visita aos exércitos do norte para o dia 21. Depois de ser informado de que as estradas para o norte estavam bloqueadas pelos alemães, resolveu voar até lá. Seu avião foi atacado e forçado a pousar em Calais. O horário marcado para sua reunião em Ypres teve de ser alterado para as 15 horas do dia 21. Ali, ele se encontrou com o rei Leopoldo da Bélgica e com o general Billotte. Lord Gort, que não fora notificado da hora e local, não estava presente, nem havia lá nenhum oficial inglês. O rei descreveu essa conferência como “quatro horas de conversa confusa”. A reunião discutiu a coordenação dos três exércitos, a execução do plano Weygand e, caso este falhasse, a retirada dos ingleses e franceses para o rio Lys, e a dos belgas para o Yser. Às 19 horas, o general Weygand teve de partir. Lord Gort só chegou às vinte horas, quando recebeu do general Billotte um relato da reunião. Weygand voltou de carro para Calais, embarcou num submarino em direção a Dieppe e voltou a Paris. Billotte partiu em seu carro para lidar com a crise e, uma hora depois, morreu num desastre de automóvel. Assim, tudo voltou a ficar em suspenso.
No dia 21, Ironside voltou e informou que Lord Gort, ao receber as instruções do Gabinete, pareceu ser contra a marcha para o sul. Ela implicaria um combate de retaguarda a partir do Schelde e, ao mesmo tempo, um ataque a uma área já fortemente ocupada pelas formações mecanizadas e motorizadas do inimigo. Durante um movimento como esse, seria preciso proteger os dois flancos, e nem o I Exército francês nem os belgas tinham probabilidade de conseguir adaptar-se a essa manobra, se ela fosse tentada. Ironside acrescentou que reinava a confusão no alto comando francês do norte, que o general Billotte não conseguira desempenhar seus deveres de coordenação nos oito dias anteriores e não parecia ter plano algum, e que a Força Expedicionária Britânica estava com o moral elevado e, até então, tivera apenas cerca de quinhentas baixas na batalha. Forneceu uma descrição vívida da condição das estradas, entupidas de refugiados e castigadas pelo fogo dos aviões alemães. Ele mesmo havia passado um aperto.
Duas alternativas alarmantes apresentaram-se ao Gabinete de Guerra. A primeira era que o exército inglês abrisse caminho a todo custo, com ou sem a cooperação francesa e belga, em direção ao sul e ao Somme, tarefa que Lord Gort duvidava ser capaz de executar; a segunda era que recuasse para Dunquerque, para enfrentar uma retirada por mar sob ataque aéreo inimigo, com a certeza de perder toda a artilharia e todos os equipamentos, tão escassos e preciosos. Obviamente, haveria grandes riscos na primeira delas, mas não havia razão por que não fossem tomadas todas as precauções e preparativos possíveis para a evacuação pelo mar, se o plano em direção ao sul fracassasse. Propus a meus colegas que eu fosse à França reunir-me com Reynaud e Weygand para tomar uma decisão. Dill deveria encontrar-me lá, vindo do QG do general Georges.
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Quando cheguei a Paris em 22 de maio, havia um novo cenário. Gamelin se fora; Daladier saíra da cena de guerra. Reynaud era primeiro-ministro e ministro da Guerra. Como a ofensiva alemã se voltara decididamente para o mar, Paris não estava sob ameaça imediata. O GQG — Grand Quartier Général — ainda ficava em Vincennes. Reynaud levou-me até lá por volta do meio-dia. No jardim, algumas das figuras que eu vira em torno de Gamelin — uma delas, um oficial de cavalaria muito alto — andavam soturnamente de um lado para outro. “C’est l’ancien regime”, comentou o ajudante de ordens. Reynaud e eu fomos levados à sala de Weygand e, posteriormente, à sala de operações, onde tínhamos os grandes mapas do Supremo Comando. Weygand veio a nosso encontro. Apesar do esforço físico e de uma noite de viagem, parecia enérgico, animado e incisivo. Causou excelente impressão em todos. Expôs seu plano de guerra. Ele não estava satisfeito com a marcha para o sul ou a retirada dos exércitos do norte. Eles deveriam avançar para o sudeste, partindo da região em torno de Cambrai e Arras, na direção geral de St. Quentin, assim atacando pelo flanco as divisões blindadas alemãs, que naquele momento estavam em combate no que ele chamava o bolso de St. Quentin-Amiens. A retaguarda das tropas seria protegida pelo exército belga, que as cobriria em direção ao leste e, se necessário, ao norte. Enquanto isso, um novo exército francês comandado pelo general Frère, composto de 18 a vinte divisões trazidas da Alsácia, da Linha Maginot, da África e de qualquer outra região, deveria formar uma frente ao longo do Somme. Sua esquerda avançaria por Amiens para Arras e, desse modo, num esforço extremo, faria contato com os exércitos do norte. Os blindados inimigos deveriam ser mantidos sob constante pressão. “As divisões Panzer não devem ter a possibilidade de manter a iniciativa”, disse Weygand. Todas as ordens necessárias tinham sido dadas, tanto quanto era possível dar alguma ordem. Fomos então informados de que o general Billotte, a quem ele havia transmitido todo o seu plano, acabara de morrer num acidente de automóvel. Dill e eu concordamos em que não tínhamos outra escolha, e, a rigor, outra inclinação senão acolher o plano. Frisei que “era indispensável restabelecer a ligação entre os exércitos do norte e do sul através de Arras”. Expliquei que Lord Gort, embora avançando para o sul, deveria também guardar seu caminho para a costa. Para me certificar de que não houvesse erros sobre o que fora decidido, eu mesmo ditei um résumé da decisão e o mostrei a Weygand, que concordou com o texto. Fiz o relato correspondente ao Gabinete e transmiti a notícia a Lord Gort.
Podemos ver que o novo plano de Weygand não diferia, exceto na ênfase, da Instrução n° 12 do general Gamelin, que fora cancelada. Tampouco contrariava a veemente opinião que o Gabinete de Guerra havia expressado no dia 19. Os exércitos do norte deveriam forçar o caminho para o sul através de uma ação ofensiva, se possível destruindo a incursão blindada. Eles deveriam fazer junção na região de Amiens com o novo Exército francês comandado pelo general Frère, que vinha em seu socorro. Isso seria de suma importância, caso se concretizasse. Em particular, queixei-me a M. Reynaud de que Gort fora deixado inteiramente sem instruções por quatro dias consecutivos. Mesmo desde a assunção do comando por Weygand, três dias se haviam perdido na tomada de decisões. A mudança no Supremo Comando estava certa. Mas o atraso resultante foi péssimo.
Na falta de qualquer diretiva suprema da guerra, os acontecimentos e o inimigo haviam assumido o controle. Uma pequena e desesperada batalha foi travada pelos ingleses nas imediações de Arras entre os dias 21 e 23, mas os blindados inimigos, alguns deles comandados por um general chamado Rommel, eram fortes demais. Até aquele momento, o general Weygand havia contado com o avanço do exército do general Frère para o norte, em direção a Amiens, Albert e Péronne. Na verdade, esse exército não fizera nenhum progresso notável; ainda estava sendo concentrado e formado.
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Havia no Gabinete e nos altos círculos militares um sentimento muito forte de que a capacidade e o conhecimento estratégico de Sir John Dill, que desde 23 de abril era subchefe do Estado-Maior Imperial, seriam melhor utilizados se ele fosse nomeado nosso principal assessor do exército. Ninguém podia duvidar de que, sob muitos aspectos, sua capacitação profissional era superior à de Ironside.
À medida que a batalha adversa aproximava-se do clímax, eu e meus colegas desejávamos intensamente que Sir John Dill fosse o CIGS. Também teríamos de escolher um comandante em chefe para as Ilhas Inglesas, caso fôssemos invadidos. Tarde da noite, em 25 de maio, Ironside, Dill, Ismay, eu e mais uma ou duas pessoas, em minha sala na casa do almirantado, tentamos avaliar a situação. O general Ironside formulou voluntariamente a proposta de deixar o Estado Maior Imperial, mas se declarou muito interessado em comandar as forças internas inglesas. Considerando a tarefa ingrata que se julgava, na época, ter tal comando, foi um oferecimento corajoso e desprendido. Aceitei a proposta do general Ironside; e os elevados títulos e honrarias que depois lhe foram conferidos nasceram de minha apreciação de sua conduta nesse momento de nossa situação. Sir John Dill tornou-se chefe do Estado-Maior Imperial — CIGS em 27 de maio. As mudanças, de modo geral, foram julgadas adequadas para o instante vivido.
1 Esse número inclui as chamadas divisões motorizadas ligeiras, que possuíam carros de combate.