“Londres aguenta”
O ataque aéreo alemão à Inglaterra foi uma história de opiniões divididas, objetivos conflitantes e planos nunca inteiramente realizados. Em três ou quatro ocasiões, naqueles meses, o inimigo abandonou um método de ataque que nos estava causando imensa tensão e se voltou para alguma coisa nova. Mas todos esses estágios se superpunham e é impossível distingui-los rapidamente por datas precisas. Cada qual se fundia com o seguinte. As primeiras operações procuraram atrair nossa força aérea para a batalha acima do canal da Mancha e do litoral sul; em seguida, a luta continuou sobre nossos condados do sul, principalmente Kent e Sussex, com o inimigo querendo destruir a organização da nossa força aérea; depois, ele se aproximou de Londres e se voltou para ela; em seguida, Londres transformou-se no alvo supremo; e por fim, quando Londres triunfou, houve uma nova dispersão para as cidades do interior e para nossa única e vital linha de abastecimento pelo Atlântico, pelo Mersey e o Clyde.
Vimos com que violência eles nos haviam malhado nos ataques aos campos de aviação do litoral sul na última semana de agosto e na primeira de setembro. Mas, em 7 de setembro, Göring assumiu publicamente o comando da batalha aérea e passou dos ataques diurnos para os noturnos e dos aeródromos de caça em Kent e Sussex para as vastas áreas construídas de Londres. Os pequenos bombardeios diurnos continuaram frequentes — a rigor, constantes — e um grande ataque à luz do dia ainda estava por vir. Mas, de modo geral, todo o caráter da ofensiva alemã se alterou. Durante 57 noites, o bombardeio de Londres foi incessante. Isso constituiu uma provação para a maior cidade do mundo, cujos resultados ninguém era capaz de avaliar de antemão. Nunca uma extensão tão vasta de residências fora submetida a tamanho bombardeio, nem tantas famílias tinham sido obrigadas a enfrentar os problemas e terrores causados por ele.
Os bombardeios esporádicos de Londres no fim de agosto foram prontamente respondidos por nós num ataque retaliatório a Berlim. Em vista da distância que tínhamos de percorrer, isso só pôde ser feito em escala muito pequena, comparada aos ataques a Londres, desfechados de campos de aviação próximos, situados na França e na Bélgica. O Gabinete de Guerra mostrou-se muito disposto a revidar, a aumentar os riscos e desafiar o inimigo. Eu sabia que o Gabinete tinha razão e acreditava que nada deixava Hitler tão impressionado ou perturbado quanto reconhecer a ira e a força de vontade inglesas. No fundo, ele era um dos que nos admiravam. Naturalmente, tirou o máximo proveito de nossa represália contra Berlim e anunciou publicamente a política alemã, já previamente acertada, de reduzir Londres e outras cidades inglesas ao caos e à ruína. “Se eles atacarem nossas cidades”, declarou em 4 de setembro, “simplesmente arrasaremos as deles.” E tentou o melhor que pôde.
De 7 de setembro a 3 de novembro, uma média de duzentos bombardeiros alemães atacaram Londres noite após noite. Os vários ataques preliminares feitos contra nossas cidades das províncias nas três semanas anteriores haviam levado a uma considerável dispersão de nossa artilharia antiaérea, e quando, pela primeira vez, Londres tornou-se o alvo principal, havia apenas 92 canhões em posição. Achamos melhor deixar o espaço aéreo livre para nossos caças noturnos, que trabalhavam sob o comando do Grupo n° 11. Destes, havia seis esquadrilhas de aviões Blenheim e Defiant. As batalhas noturnas estavam em seus primórdios e muito poucas baixas foram infligidas ao inimigo. Assim, nossas baterias permaneceram em silêncio por três noites seguidas. A técnica dos próprios alemães, nessa época, era totalmente falha. Não obstante, em vista das deficiências de nossos caças noturnos e de seus problemas não solucionados, ficou decidido que os artilheiros dos canhões antiaéreos teriam carta branca para disparar contra alvos não visíveis, usando quaisquer métodos de controle que lhes aprouvessem. Em 48 horas, o general Pile, comandando a artilharia antiaérea, mais do que duplicou o número de canhões na capital, retirando-os das cidades das províncias. Nossas próprias aeronaves foram tiradas do caminho e as baterias tiveram sua vez.
Por três noites, os londrinos aguardaram em suas casas ou em abrigos inadequados, suportando o que parecia ser um ataque sem a menor resistência. Súbito, em 10 de setembro, toda a barragem antiaérea disparou, acompanhada pelos fachos de uma profusão de holofotes giratórios. Esse estrondoso canhoneio não causou grandes danos ao inimigo, mas deu uma enorme satisfação à população. Todos se animaram com o sentimento de que estávamos revidando. A partir desse momento, as baterias passaram a disparar regularmente e, é claro, a prática, a engenhosidade e a suprema necessidade foram aperfeiçoando cada vez mais a pontaria. Um tributo progressivamente maior foi cobrado dos bombardeiros alemães. Ocasionalmente, as baterias ficavam em silêncio, e os caças noturnos, cujos métodos também estavam sendo aprimorados, entravam em cena. Os bombardeios noturnos eram acompanhados por ataques diurnos mais ou menos contínuos de pequenos grupos de aviões inimigos, ou até de aviões isolados, e era comum as sirenes soarem a intervalos curtos durante cada período de 24 horas. Os sete milhões de habitantes de Londres se acostumaram a essa curiosa existência.
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Na esperança de que isso possa amenizar o curso penoso desta narrativa, registro algumas notas pessoais sobre a “Blitz”, sabendo bem quantos milhares de pessoas hão de ter histórias muito mais interessantes para contar.
Quando começou o bombardeio, a ideia era tratá-lo com desdém. No West End, todos continuaram a cuidar de seus afazeres e de seu lazer, oferecendo jantares e dormindo como era de costume. Os teatros se mantiveram cheios e as ruas, já escuras, repletas do tráfego corriqueiro. Tudo isso talvez fosse uma reação sadia ao assustador espalhafato feito pelos elementos derrotistas de Paris na ocasião em que a cidade fora seriamente atacada pela primeira vez, em maio. Lembro-me de uma noite em que estava jantando com um pequeno grupo, enquanto ocorriam bombardeios muito ativos e contínuos. As grandes janelas de Stornoway House davam para o Green Park, que tremeluzia sob os clarões dos canhões e, vez por outra, era iluminado pelo brilho da explosão de uma bomba. Achei que estávamos correndo riscos desnecessários. Depois do jantar, fomos para o prédio da Imperial Chemicals, que domina o Embankment. De suas altas sacadas de pedra tinha-se uma esplêndida visão do rio. Pelo menos uma dúzia de incêndios ardiam no lado sul e, enquanto estávamos ali, caíram várias bombas pesadas, uma delas perto o bastante para que meus amigos me puxassem para trás de uma sólida pilastra de pedra. Isso certamente confirmou minha opinião de que teríamos de aceitar muitas restrições às amenidades corriqueiras da vida.
O grupo de prédios do governo ao longo de Whitehall foi repetidamente atingido. Downing Street é formada por casas de 250 anos, sem solidez e construídas com displicência pelo empreiteiro imobiliário que lhe deu seu nome. Na época do susto de Munique, haviam-se construído abrigos para os ocupantes dos nos 10 e 11,1 e o teto das salas no nível do jardim fora escorado por um teto rebaixado de madeira e vigas resistentes. Acreditava-se que isso sustentaria os escombros, se o prédio fosse derrubado ou abalado, mas, evidentemente, nem essas salas nem os abrigos seriam eficazes contra um impacto direto. Na última quinzena de setembro, tomaram-se providências para que eu transferisse minha residência ministerial para os escritórios governamentais mais modernos e sólidos que dão para o parque St. James pelo Storey’s Gate. Demos a essas instalações o nome de “o Anexo”. Ali, durante o resto da guerra, minha mulher e eu moramos confortavelmente. Tínhamos confiança naquela sólida construção de pedra, e somente em raríssimas ocasiões descemos para o abrigo. Minha mulher chegou até a pendurar alguns quadros na sala de estar, que eu achava melhor manter despojada. A opinião dela prevaleceu e era justificada pela situação. Do terraço junto à cúpula do Anexo tinha-se uma vista esplêndida de Londres nas noites claras. Construíram um local para mim com uma cobertura leve contra estilhaços, onde era possível andar à luz da lua e observar o foguetório. Embaixo ficavam a sala de guerra e um certo número de alojamentos à prova de bombas, para dormir. Nessa época, é claro, as bombas eram menores do que as que vieram depois. Mesmo assim, no intervalo decorrido até que as novas acomodações ficassem prontas, a vida em Downing Street foi emocionante. Foi como se estivéssemos no posto de comando de um batalhão na linha de frente.
Uma noite (17 de outubro) destaca-se em minha lembrança. Estávamos jantando na sala do jardim do n° 10 quando começou o costumeiro ataque noturno. Meus companheiros eram Archie Sinclair, Oliver Lyttelton e Moore-Brabazon. As venezianas de aço tinham sido fechadas. Houve várias explosões ruidosas à nossa volta, a uma distância não muito grande, e, pouco depois, caiu uma bomba a umas cem jardas dali, no grande espaço de parada dos Horse Guards, fazendo um bocado de barulho. De repente, tive um impulso providencial. A cozinha do n° 10 da Downing Street é espaçosa, com uma grande janela envidraçada de uns 25 pés de altura. O mordomo e a copeira continuaram a servir o jantar com total impassividade, mas eu me senti agudamente cônscio daquela grande janela, atrás da qual a cozinheira, Mrs. Landemare, e a ajudante de cozinha, sem tomar conhecimento, continuavam trabalhando. Levantei-me abruptamente, fui até a cozinha, disse ao mordomo que pusesse a comida no réchaud da sala de jantar e mandei que a cozinheira e os outros criados fossem para o abrigo, por precário que fosse. Maldecorridos três minutos depois de eu me sentar outra vez à mesa, um estrondo realmente muito forte, bem próximo, e um abalo violento mostraram que a casa fora atingida. O detetive meu segurança entrou na sala e disse que tinha havido muitos estragos. A cozinha, a despensa e os escritórios do lado do Tesouro estavam em pedaços.
Fomos à cozinha examinar a cena. A devastação era completa. A bomba caíra a cinquenta jardas, sobre o Tesouro, e a explosão havia reduzido a cozinha ampla e impecável, com todas as suas caçarolas e louças reluzentes, a um monte de escombros e poeira escura. A grande janela envidraçada fora atirada, em fragmentos e estilhaços, para o lado oposto da cozinha e, obviamente, teria retalhado seus ocupantes, se houvesse algum. Mas meu feliz pressentimento, que eu poderia facilmente ter desprezado, viera na hora H. O abrigo subterrâneo do Tesouro, do outro lado do pátio, fora destroçado por um impacto direto, e os quatro funcionários que estavam de serviço noturno de vigias pela Home Guard estavam mortos. Todos, no entanto, estavam soterrados por toneladas de tijolos, e não soubemos quem estava desaparecido.
Como o ataque continuasse e parecesse aumentar de intensidade, pusemos nossos capacetes de estanho e saímos para ver a cena do alto do prédio do Anexo. Antes de fazê-lo, porém, não pude resistir a levar Mrs. Landemare até sua cozinha com os outros que estavam no abrigo, para que a vissem. Eles ficaram revoltados com os estragos, mas, principalmente, com a bagunça deixada!
Archie e eu subimos até a cúpula do Anexo. Era uma noite clara e tinha-se uma ampla visão de Londres. A maior parte do Pall Mall parecia estar em chamas. Pelo menos cinco incêndios ardiam ali impetuosamente, e havia outros na St. James’s Street e em Piccadilly. Atrás, do outro lado do rio, na direção oposta, havia muitos fogaréus. Mas Pall Mall era a imagem viva das chamas. Aos poucos, o ataque foi cessando e, não muito depois, soou a sirene de “tudo limpo”, deixando apenas as fogueiras flamejantes. Descemos para meus novos aposentos no andar térreo do Anexo e ali encontramos o capitão David Margesson, o whip chefe da bancada na Câmara, que se havia acostumado a morar no Carlton Club. Ele nos disse que o clube ficara em escombros e, de fato, pela localização dos incêndios, havíamos achado que fora atingido. Margesson estava no clube com cerca de 250 membros e empregados. Caiu nele e explodiu uma bomba pesada. Toda a fachada e a cumeeira maciça do lado de Pall Mall haviam desabado na rua, destruindo seu automóvel estacionado perto da porta da frente. O salão de fumantes estava repleto de membros e o teto inteiro havia despencado sobre eles. Quando examinei as ruínas no dia seguinte, pareceu-me incrível que a maioria não tivesse morrido. Contudo, por um milagre, ao que parece, todos haviam rastejado para fora da poeira, da fumaça e dos escombros e, embora muitos estivessem feridos, nem uma só vida se perdera. Quando, oportunamente, esses fatos chegaram ao conhecimento do Gabinete, nossos colegas trabalhistas comentaram em tom de pilhéria: “O diabo cuida dos seus.” Mr. Quintin Hogg retirara dos escombros seu próprio pai, um ex-presidente da Câmara dos Lordes, carregando-o nos ombros, tal como fizera Eneias ao retirar seu pai Anquises das ruínas de Troia. Como Margesson não tinha onde dormir, providenciamos cobertores e uma cama para ele no porão do anexo. No cômputo geral, foi uma noite sinistra. Considerando os estragos causados aos prédios, foi impressionante que não tivesse havido mais de quinhentos mortos e cerca de dois mil feridos.
Noutra ocasião, visitei Ramsgate. Sobreveio um ataque aéreo e fui levado para seu grande túnel, onde um imenso número de pessoas estava morando em caráter permanente. Quando saímos, depois de 15 minutos, olhamos para os estragos ainda envoltos em fumaça. Um pequeno hotel fora atingido. Ninguém ficara ferido, mas o lugar fora reduzido a uma pilha de louças, utensílios e móveis quebrados. O proprietário, sua mulher e os cozinheiros e garçonetes estavam em prantos. Onde estava seu lar? Onde estava seu ganha-pão? Eis aqui um privilégio do poder. Tomei uma decisão imediata. No caminho de volta, em meu trem, ditei uma carta para o ministro das Finanças, Kingsley Wood, estabelecendo o princípio de que todos os danos resultantes do fogo inimigo ficassem por conta do estado, e de que se pagassem indenizações integrais e em caráter imediato. Assim, o ônus não recairia apenas sobre aqueles cujas casas ou estabelecimentos comerciais fossem atingidos, mas seria equanimemente distribuído sobre os ombros da nação. Naturalmente, Kingsley Wood ficou meio preocupado com o caráter indefinido desse compromisso. Mas fiz uma pressão insistente e, em 15 dias, concebeu-se um plano de seguro que, posteriormente, veio a desempenhar um papel importante em nossos negócios de estado. O Tesouro passou por emoções variadas no tocante a esse plano de seguro. Primeiro, achou que ele o levaria à falência, mas quando, depois de maio de 1941, os bombardeios aéreos cessaram por mais de três anos e ele começou a ganhar muito dinheiro, considerou-o previdente e de estadista. Todavia, numa fase posterior da guerra, quando os doodle bugs — como chamavam as bombas voadoras V-1 — e os foguetes V-2 começaram a surgir, as contas penderam para o lado oposto: 890 milhões foram prontamente desembolsados. Muito me alegra que isso tenha acontecido.
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Nessa nova fase da guerra, tornou-se importante extrair o nível ótimo de trabalho não apenas das fábricas, porém, mais ainda, das repartições londrinas que ficavam sob frequente bombardeio, de dia e de noite. A princípio, sempre que as sirenes davam o alarme, todos os ocupantes de uma porção de ministérios eram prontamente reunidos e levados para os porões, por mais precários que estes fossem. Havia até quem se orgulhasse da eficiência e minúcia com que essa providência era executada. Em muitos casos, tratava-se apenas de meia dúzia de aviões se aproximando — às vezes, de apenas um. E era frequente eles não chegarem. Um bombardeio minúsculo podia levar à paralisação, por mais de uma hora, de toda a máquina executiva e administrativa de Londres.
Assim, propus que se estabelecesse no aviso das sirenes um estágio de “alerta”, diferenciado do “alarme”, que só deveria ser empregado quando os vigias nos telhados — os Jim Crows, como ficaram conhecidos — transmitissem o sinal de “perigo iminente”, que significava que o inimigo estava realmente nos sobrevoando, ou muito próximo disso. Criaram-se os esquemas pertinentes. O parlamento também precisou de orientação quanto à condução de seus trabalhos nesses dias de perigo. Os membros consideravam ser seu dever dar o exemplo. Tinham razão, mas isso podia ser levado longe demais; tive que argumentar com os deputados para fazê-los observar medidas comuns de prudência e se conformar às condições peculiares do momento. Convenci-os, numa sessão secreta, da necessidade de tomarem precauções indispensáveis e ponderadas. Eles concordaram em que seus dias e horários de reunião em plenário não fossem divulgados e aceitaram suspender seus debates sempre que o Jim Crow avisasse ao presidente da Câmara do “perigo iminente”. Nesse caso, todos desceriam obedientemente para os abrigos abarrotados e ineficazes que tinham sido providenciados. Um dado que sempre há de contribuir para a fama do Parlamento inglês é o fato de seus membros terem continuado a se reunir e a cumprir seus deveres durante todo aquele período. Os deputados são muito suscetíveis nessas questões e seria fácil julgar erroneamente seu estado de ânimo. Quando um plenário era danificado, eles se mudavam para outro, e fiz o que pude para persuadi-los a seguir de bom grado os conselhos da sensatez. Foi também uma sorte, quando o plenário foi destruído alguns meses depois, que isso ocorresse à noite, quando estava vazio, e não durante o dia, quando ficava repleto. No momento em que dominamos os ataques diurnos, houve um considerável alívio na comodidade pessoal. Mas, durante os primeiros meses, nunca deixei de me angustiar pela segurança dos membros da Casa. Afinal, um parlamento livre e soberano, legitimamente eleito pelo sufrágio universal, capaz de derrubar o governo a qualquer momento, mas orgulhoso de apoiá-lo nos dias mais sombrios, era um dos pontos em disputa com o inimigo. O parlamento venceu.
Duvido que algum dos ditadores tenha tido tanto poder efetivo, em sua nação inteira, quanto o Gabinete de Guerra inglês. Quando expressávamos nossos desejos, éramos apoiados pelos representantes do povo e calorosamente obedecidos por todos. No entanto, em momento algum o direito de crítica foi cerceado. Os críticos quase sempre respeitavam o interesse nacional. Nas ocasiões em que nos contestaram, foram derrubados pela votação de maiorias esmagadoras nas duas Câmaras — e isso, em contraste com os métodos totalitários, sem a menor coerção, intervenção ou uso da polícia ou do serviço secreto. Era um orgulho constatar que a democracia parlamentar, ou como quer que se possa chamar nossa vida pública inglesa, podia suportar, superar e sobreviver a todas as provações. Nem mesmo a ameaça de aniquilação intimidou nossos parlamentares; felizmente, porém, ela não se materializou.
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Em meados de setembro, uma nova e terrível forma de ataque foi usada contra nós. Um grande número de bombas de ação retardada foi larga e profusamente lançado sobre nós e se tornou um grave problema. Longos trechos de ferrovias, entroncamentos importantes, acessos a fábricas vitais, aeroportos e grandes rodovias tinham que ser bloqueados dezenas de vezes, ficando inacessíveis em momentos de necessidade. Essas bombas tinham que ser desenterradas e deflagradas ou desativadas. Tratava-se de uma tarefa de extremo perigo, especialmente no começo, quando todos os meios e métodos tinham de ser aprendidos, através de uma série de experiências decisivas. Já relatei o drama da desmontagem das minas magnéticas, mas essa forma de dedicação pessoal transformou-se então num lugar-comum, embora continuasse sublime. Eu sempre me interessara pelos detonadores de ação retardada, que me haviam impressionado pela primeira vez em 1918, quando os alemães os utilizaram em larga escala para nos impedir de usar as ferrovias pelas quais planejávamos penetrar na Alemanha. Eu havia insistido em que os usássemos na Noruega e no canal de Kiel e no Reno. Trata-se, sem dúvida, de um instrumento muito eficaz na guerra, em virtude da prolongada incerteza que gera. Estávamos prestes a ter, nós mesmos, uma prova dele. Criou-se uma organização especial para lidar com esse dispositivo. Criaram-se companhias especializadas em todas as metrópoles, municípios e comarcas. Apareceram voluntários para esse jogo mortal. Formaram-se equipes, que tinham sorte ou azar. Algumas sobreviveram a essa fase de nossas provações. Outras passaram por vinte, trinta ou quarenta experiências antes de chegarem à sua hora fatal. As equipes de bombas não deflagradas (UXB — unexploded bombs) apresentavam-se por onde quer que eu passasse em minhas viagens. De algum modo, seus rostos não se pareciam com os dos homens comuns, por mais valentes e devotados que fossem. Eles eram pálidos, magros, com rostos de expressão tristonha, um brilho reluzente no olhar e uma compressão excepcional dos lábios; e ainda um porte perfeito. Ao escrevermos sobre nossos tempos difíceis, tendemos a usar em demasia a palavra “terrível”. Ela deveria ser reservada à missão das esquadras UXB.
Lembro-me de uma equipe que pode ser tomada como símbolo de muitas outras. Compunha-se de três pessoas: o conde de Suffolk, sua secretária particular e seu motorista, já bastante idoso. Eles se denominavam “a Santíssima Trindade”. Sua perícia e continuada existência espalharam-se entre todos os conhecedores. Trinta e quatro bombas não deflagradas foram desativadas por eles, com polida e sorridente eficiência. Mas a 35ª cobrou seu tributo. Lá se foram o conde de Suffolk e sua Santíssima Trindade pelos ares. Mas estamos certos de que, assim como no caso de Master Valiant-for-the-truth, “todas as trombetas soaram para eles do outro lado”.2 Em pouco tempo, mas com o árduo sacrifício de mui nobres figuras, a dedicação das equipes de UXB dominou o perigo.
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É difícil comparar a provação dos londrinos no inverno de 1940-41 com a dos alemães nos três últimos anos da guerra. Nessa fase final, as bombas eram muito mais potentes e os bombardeios, muito mais intensos. Por outro lado, os longos preparativos e o rigor alemão haviam permitido a construção de um sistema completo de abrigos à prova de bombas, para onde todos eram forçados a ir, seguindo uma rotina férrea. Quando finalmente entramos na Alemanha, encontramos cidades completamente destruídas, mas também algumas construções sólidas que se mantinham de pé e espaçosas galerias subterrâneas onde os habitantes dormiam noite após noite, embora suas casas e suas propriedades fossem destruídas na superfície. Em muitos casos, apenas as pilhas de escombros eram atingidas. Em Londres, no entanto, embora o ataque fosse menos esmagador, os preparativos de segurança estavam muito menos desenvolvidos. Excetuado o metrô, não havia lugares realmente seguros. Pouquíssimos porões ou adegas eram capazes de suportar um impacto direto. Praticamente toda a massa da população londrina morava e dormia em seus próprios lares ou em abrigos Anderson, embaixo do fogo inimigo, arriscando a sorte com fleuma inglesa após um dia cansativo de trabalho. Nem sequer um em cada mil tinha qualquer tipo de proteção, a não ser contra o deslocamento de ar das explosões e os estilhaços. Mas houve tão pouco abatimento psicológico quanto dano físico. É claro que, se fossem as bombas de 1943 usadas contra a Londres de 1940, teríamos chegado a uma situação que talvez pulverizasse qualquer organização humana. Mas tudo acontece em sua hora e sua vez, e ninguém tem o direito de dizer que Londres, que certamente não foi vencida, não era também invencível.
Pouco ou nada se fizera antes da guerra ou durante o período passivo para providenciar fortificações à prova de bombas, de onde fosse possível continuar a exercer o governo central. Fizeram-se planos elaborados para mudar a sede do governo para fora de Londres. Ramos inteiros de muitos ministérios já tinham sido deslocados para Harrogate, Bath, Cheltenham e outros locais. Haviam-se requisitado acomodações, numa vasta área, para atender a todos os ministros e funcionários importantes, na eventualidade de uma evacuação de Londres. Mas, sob o bombardeio, o desejo e a determinação do governo e do parlamento de permanecer em Londres foram inconfundíveis, e eu partilhava plenamente desse sentimento. Como outros, eu havia muitas vezes imaginado que a destruição se tornasse tão devastadora, que fosse imperativo efetuar uma mudança e dispersão gerais. Mas, sob o impacto dos acontecimentos, todas as nossas reações foram em sentido contrário.
Naqueles meses, fazíamos nossas reuniões vespertinas do Gabinete na sala de guerra, no porão do Anexo. Para chegar até lá, saindo de Downing Street, era preciso atravessar a pé o quadrilátero do Foreign Office e passar com dificuldade por entre as turmas de operários que derramavam concreto para tornar mais seguros a sala de guerra e os escritórios do porão. Eu não me dera conta do esforço que isso representava para Mr. Chamberlain, consideradas as consequências da grande cirurgia que ele fizera. Nada conseguia detê-lo, e ele nunca esteve mais alinhado ou mais frio e decidido do que nas últimas reuniões do Gabinete a que compareceu.
Uma noite, no fim de setembro de 1940, olhei pela porta da frente de Downing Street e vi alguns operários empilhando sacos de areia junto às janelas baixas do porão do Foreign Office, em frente. Perguntei o que estavam fazendo. Fui informado de que, desde sua cirurgia, Mr. Neville Chamberlain tinha que receber um tratamento periódico especial, e era muito embaraçoso fazer isso no abrigo do n° 11, onde pelo menos vinte pessoas ficavam durante os bombardeios constantes, de modo que um pequeno espaço particular estava sendo preparado para ele naquele local. Todos os dias, ele cumpria todos os seus compromissos, reservado, eficiente, impecavelmente trajado. Mas ali estava o pano de fundo. Era demais. Usei minha autoridade. Atravessei a passagem entre o n° 10 e o n° 11 e encontrei a senhora Chamberlain. Disse-lhe: “Ele não deveria estar aqui nessas condições. Você precisa tirá-lo daqui até que ele volte a ficar bem. Mandarei todos os telegramas para ele diariamente.” Ela se retirou para falar com o marido. Uma hora depois, mandou-me um recado: “Ele vai fazer o que você quer. Partiremos esta noite.” Nunca mais tornei a vê-lo. Tenho certeza de que ele queria morrer trabalhando. Mas não seria assim.
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O retiro de Mr. Chamberlain levou a importantes mudanças ministeriais. Mr. Herbert Morrison tinha sido um eficiente e vigoroso ministro do Abastecimento, e Sir John Anderson havia enfrentado a blitz em Londres com uma administração firme e competente. Nos primeiros dias de outubro, o ataque contínuo à maior cidade do mundo foi tão grave e acarretou tantos problemas de natureza social e política na vasta e atormentada população londrina, que achei que seria útil ter um membro do parlamento de longa experiência no Ministério do Interior, a essa altura também Ministério da Segurança Interna. Londres estava aguentando o tranco. Herbert Morrison era londrino, versado em todos os aspectos da administração metropolitana. Tinha uma experiência ímpar no governo de Londres, tendo sido líder da assembleia do condado e a principal figura nas questões de sua alçada, sob muitos aspectos. Ao mesmo tempo, eu precisava de John Anderson, cujo trabalho no Ministério do Interior tinha sido excelente, como Lord presidente do Privy Council na esfera mais ampla do comitê de assuntos internos, para onde uma imensa massa de assuntos era encaminhada, com grande alívio para o Gabinete. Isso também aliviava meu próprio fardo e me permitia concentrar-me na condução militar da guerra, na qual meus colegas pareciam cada vez mais dispostos a me dar liberdade.
Assim, solicitei que esses dois importantes ministros trocassem de cargos. O que ofereci a Herbert Morrison não era nenhum mar de rosas. Estas páginas decerto não têm meios de tentar descrever os problemas do governo de Londres, numa época em que era comum, noite após noite, dez ou vinte mil pessoas ficarem desabrigadas, e em que nada além da vigilância incessante dos cidadãos, como sentinelas do fogo postados nos telhados, impedia os incêndios incontroláveis; numa época em que os hospitais, repletos de homens e mulheres mutilados, eram atingidos, eles mesmos, pelas bombas do inimigo; em que centenas de milhares de pessoas extenuadas acotovelavam-se em abrigos inseguros e insalubres; em que as comunicações rodoviárias e ferroviárias eram constantemente interrompidas; em que as redes de esgoto eram destroçadas e o fornecimento de luz e força e de gás ficava paralisado; e em que, ainda assim, toda a vida batalhadora e árdua de Londres tinha que seguir em frente, e quase um milhão de pessoas tinham que se deslocar de um lado para outro para trabalhar, todas as noites e todas as manhãs. Não sabíamos quanto tempo aquilo ia durar. Não tínhamos razões para supor que não fosse continuar piorando. Quando fiz a proposta a Mr. Morrison, ele sabia disso bem demais para tratá-la com displicência. Pediu algumas horas para pensar, mas em pouco tempo voltou e disse que teria orgulho em assumir o cargo. Aprovei com louvor sua decisão viril.
Logo depois das trocas ministeriais, uma mudança nos métodos do inimigo afetou nossa política geral. Até ali, o ataque inimigo restringira-se quase exclusivamente a bombas explosivas potentes, mas, na lua cheia de 15 de outubro, quando caiu sobre nós o ataque mais violento do mês, os aviões alemães despejaram também setenta mil bombas incendiárias. Até então, havíamos incentivado os londrinos a se abrigarem, e todos os esforços vinham sendo feitos para aperfeiçoar sua proteção. Mas, a essa altura, “para os porões!” teve de ser substituído por “para os telhados!” Coube ao novo ministro da Segurança Interna instituir essa política. Criou-se rapidamente uma organização de vigilantes do fogo e serviços de combate a incêndios, em escala gigantesca e abrangendo a totalidade de Londres (à parte as medidas tomadas nas cidades das províncias). A princípio, os vigilantes do fogo eram voluntários, mas o número necessário era tão grande, e tão intenso o sentimento de que todos os homens deveriam revezar-se no rol de colaboradores, que a vigilância contra incêndio logo se tornou compulsória. Essa forma de serviço surtiu um efeito revigorante e animador em todas as classes. As mulheres fizeram pressão para assumir sua quota de participação. Desenvolveram-se sistemas de treinamento em grande escala, para ensinar os vigilantes do fogo a lidar com os vários tipos de bombas incendiárias usados contra nós. Muitos tornaram-se peritos e milhares de incêndios foram extintos antes de assumirem grandes proporções. A experiência de permanecer nos telhados noite após noite, sob bombardeio, e sem nenhuma proteção além de um capacete de latão, logo se tornou habitual.
Mr. Morrison decidiu, pouco depois, consolidar as 1.400 brigadas de incêndio locais num único Corpo de Bombeiros Nacional, e suplementá-lo com uma grande guarda de incêndio formada por civis treinados, que trabalhariam em suas horas de folga. A guarda de incêndio, como os vigilantes dos telhados, foi inicialmente recrutada entre voluntários, mas, à semelhança deles, tornou-se compulsória por assentimento geral. O Corpo de Bombeiros Nacional deu-nos as vantagens de maior mobilidade, um padrão universal de treinamento e equipamentos, e graduações formalmente reconhecidas. As outras forças da Defesa Civil produziram colunas de prontidão para ir a qualquer lugar, mediante um minuto de aviso. O nome Serviço de Defesa Civil substituiu a denominação usada antes da guerra, Prevenção contra Ataques Aéreos (ARP — air raid precautions). Forneceram-se bons uniformes para um grande número de pessoas e elas se conscientizaram de constituir uma quarta força da Coroa.
Alegrava-me saber que, a termos qualquer de nossas cidades atacadas, o impacto maior recairia sobre Londres. Londres era uma espécie de imenso animal pré-histórico, capaz de suportar ferimentos terríveis, de ficar mutilado e sangrando por muitas feridas e, mesmo assim, preservar sua vida e seus movimentos. Os abrigos do tipo Anderson difundiram-se pelos bairros operários de casas de dois andares e tudo foi feito para torná-los habitáveis e para secá-los em tempo chuvoso. Mais tarde, criou-se o abrigo do tipo Morrison, que não passava de uma pesada mesa de cozinha, feita de aço e com fortes laterais de varas de aço, capaz de resistir os escombros de uma casa pequena e, com isso, dar uma certa proteção. Muitos deveram sua vida a ele. Quanto ao mais, “Londres aguentaria”. Suportou tudo o que veio, e mais teria suportado. Nessa ocasião, na verdade, não víamos outro fim senão a demolição da metrópole inteira. Mesmo assim, como assinalei na Câmara dos Comuns na época, a lei do rendimento decrescente funciona no caso da demolição de grandes cidades. Em pouco tempo, muitas das bombas cairiam apenas sobre casas já destruídas e sacudiriam somente o entulho. Em amplas áreas, não restaria mais nada para incendiar ou destruir e, ainda assim, os seres humanos fariam suas casas aqui e ali e continuariam seu trabalho, com habilidade e força infinitas.
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Na noite de 3 de novembro, pela primeira vez em quase dois meses, nenhuma sirene de alarme soou em Londres. O silêncio pareceu estranhíssimo para muitos. Ficaram imaginando o que estaria havendo de errado. Na noite seguinte, os ataques do inimigo espalharam-se largamente por toda a ilha, e isso continuou por algum tempo. Tinha havido outra mudança na política da ofensiva alemã. Embora Londres ainda fosse considerada o alvo principal, fizeram então um grande esforço para danificar os centros industriais da Inglaterra. Esquadrilhas especiais tinham sido treinadas, com novos dispositivos de navegação, para atacar centros fundamentais específicos. Por exemplo, uma formação foi treinada exclusivamente para destruir a fábrica de motores aéreos da Rolls-Royce em Hillington, Glasgow. Tudo isso compunha um plano improvisado e provisório. A invasão da Inglaterra fora temporariamente abandonada e o ataque contra a Rússia ainda não estava montado, nem era esperado fora do círculo íntimo de Hitler. Assim, os meses de inverno restantes seriam, para a força aérea alemã, um período de experimentação, tanto de dispositivos técnicos para bombardeio noturno quanto de ataques ao comércio marítimo inglês, paralelamente à tentativa de liquidar nossa produção militar e civil. Melhor teriam feito se se ativessem a uma coisa de cada vez, de modo a levá-la até o fim. Mas já estavam desconcertados e momentaneamente inseguros.
Essas novas táticas de bombardeio começaram pelo ataque a Coventry, na noite de 14 de novembro. Londres parecia um alvo grande e impreciso demais para a obtenção de resultados decisivos, mas Göring esperava que as cidades ou os centros de fabricação de material bélico das províncias pudessem ser efetivamente arrasados. O ataque iniciou-se logo nas primeiras horas da madrugada do dia 14 e, ao amanhecer, quase quinhentos aviões alemães haviam lançado seiscentas toneladas de altos explosivos e milhares de bombas incendiárias. No cômputo geral, esse foi o ataque mais devastador que suportamos. O centro de Coventry foi arrasado e, durante um breve período, sua vida ficou completamente desestruturada. Quatrocentas pessoas foram mortas e muitas outras, gravemente feridas. A rádio alemã proclamou que outras cidades seriam similarmente “coventrizadas”. Não obstante, as importantíssimas fábricas de motores aéreos e ferramentas não foram paralisadas, nem tampouco a população, até então não submetida à provação dos bombardeios, foi posta fora de combate. Em menos de uma semana, um comitê de emergência de reconstrução fez um esplêndido trabalho de restauração da vida da cidade.
Em 15 de novembro, o inimigo desviou-se outra vez para Londres, com um fortíssimo bombardeio em plena lua cheia. Causaram muitos estragos, especialmente em igrejas e outros monumentos. O alvo seguinte foi Birmingham, e três bombardeios sucessivos, entre os dias 19 e 22, infligiram muita destruição e perdas humanas. Quase oitocentas pessoas foram mortas e mais de duas mil feridas; mas a vida e o espírito de Birmingham sobreviveram a esse suplício, e seu milhão de habitantes, altamente organizado, consciente e compreensivo, elevou-se acima de seu sofrimento físico. Durante a última semana de novembro e o início de dezembro, o peso do ataque deslocou-se para as cidades portuárias. Bristol, Southampton e sobretudo Liverpool foram intensamente bombardeadas. Depois, Plymouth, Sheffield, Manchester, Leeds, Glasgow e outros centros de material bélico passaram impávidos pelo bombardeio. Onde quer que incidisse o impacto, a nação estava tão firme quanto é salgado o mar.
O auge dos ataques repentinos dessas semanas deu-se novamente em Londres, no domingo, 29 de dezembro. Toda a experiência alemã, duramente adquirida, expressou-se nessa ocasião. Foi um clássico das bombas incendiárias. O peso do ataque concentrou-se na própria City de Londres. Foi marcado para coincidir com o horário da vazante máxima. As tubulações de água foram rompidas logo de saída, através de potentíssimas minas de alto teor explosivo, lançadas de paraquedas. Quase 1.500 incêndios tiveram de ser combatidos. O prejuízo causado às estações ferroviárias e às docas foi sério. Oito das igrejas de Wren foram destruídas ou danificadas. O Guildhall, sede da prefeitura, foi atingido pelo fogo e pelo deslocamento de ar das explosões, e a catedral de St. Paul só foi salva mediante esforços heroicos. Um vazio de destruição bem no centro do mundo inglês abriu-se diante de nós, mas, quando o rei e a rainha visitaram o cenário, foram recebidos com um entusiasmo que ultrapassou em muito qualquer festival da realeza.
Durante esse prolongado suplício, que ainda duraria vários meses, o rei esteve o tempo todo no palácio de Buckingham. Abrigos adequados estavam sendo construídos nos porões, mas tudo isso levava tempo. Ademais, por diversas vezes, ocorreu a Sua Majestade chegar de Windsor em meio a um bombardeio aéreo. Numa dessas ocasiões, ele e a rainha escaparam realmente por um triz. Sua Majestade mandou montar um estande de tiro nos jardins do palácio de Buckingham, onde ele, outros membros de sua família e seus camaristas exercitavam-se assiduamente, usando pistolas e metralhadoras. Pouco tempo depois, levei ao rei uma carabina americana de pequeno alcance, retirada de algumas que me tinham sido enviadas. Era uma arma muito boa.
Mais ou menos nessa época, o rei modificou sua prática de me receber numa audiência semanal formal, por volta das 17 horas, que tinha vigorado durante meus primeiros dois meses de mandato. Acertou-se então que eu almoçaria com ele todas as terças-feiras. Foi, sem dúvida, um método muito agradável de discutir negócios de estado, e às vezes a rainha se fazia presente. Em várias ocasiões, todos tivemos que carregar nossos pratos e copos na mão e descer ao abrigo em progresso para terminar nossa refeição. Os almoços semanais transformaram-se numa instituição regular. Depois dos primeiros meses, Sua Majestade decidiu que todos os criados fossem dispensados e que nós mesmos nos servíssemos e servíssemos um ao outro. Nos quatro anos e meio em que isso prosseguiu, apercebi-me da extraordinária diligência com que o rei lia todos os telegramas e documentos públicos que lhe eram submetidos. No sistema constitucional inglês, o Soberano tem o direito de ser informado de tudo quanto é da responsabilidade de seus ministros e dispõe do direito irrestrito de aconselhar seu governo. Eu tinha o máximo cuidado de fazer com que tudo fosse submetido ao rei e, em nossos encontros semanais, era frequente ele demonstrar que havia adquirido perfeito conhecimento de papéis com que eu ainda não tinha lidado. Foi de grande ajuda para a Inglaterra contar com um rei e uma rainha tão bons nesses anos fatídicos e, como defensor convicto da monarquia constitucional, prezei como uma honra singular a generosa intimidade com que fui tratado, na condição de primeiro-ministro, e que suponho não ter tido precedentes desde a época da rainha Anne e de Marlborough, durante os anos em que ele esteve no poder.
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Isso nos traz ao fim do ano — a bem da continuidade, adiantei-me à guerra em geral. O leitor há de se dar conta de que todo esse fragor e tempestade foram apenas um acompanhamento dos frios processos mediante os quais nosso esforço de guerra era sustentado e nossa política e diplomacia eram conduzidas. De fato, devo registrar que, na cúpula, esses danos, em não conseguindo ser mortais, foram um estimulante positivo para a clareza de visão, a camaradagem franca e a ação criteriosa. Seria insensato, no entanto, supor que, se o ataque tivesse sido dez ou vinte vezes mais duro — ou até, talvez, duas ou três vezes mais severo — as reações sadias que descrevi pudessem ter acontecido.