Vitória no deserto
Apesar do Armistício, de Oran e do rompimento de nossas relações diplomáticas com Vichy, para onde o governo francês se mudara sob o comando do marechal Pétain, nunca deixei de me sentir unido à França. Quem não esteve sujeito às tensões pessoais que recaíram sobre franceses proeminentes no terrível destroçamento de seu país deve tomar cuidado em seu julgamento sobre os indivíduos. Está fora do âmbito desta narrativa penetrar no labirinto da política francesa. Mas eu tinha certeza de que a nação francesa faria o melhor possível pela causa comum, conforme os acontecimentos lhe fossem apresentados. Quando disseram às massas que sua única salvação estava em seguir a orientação do ilustre marechal, e que a Inglaterra, que lhes dera tão pouca ajuda, logo seria esmagada ou se renderia, não lhes foi oferecida muita alternativa. Mas eu tinha certeza de que os franceses queriam que vencêssemos e de que nada lhes daria mais alegria do que nos ver continuar a lutar com vigor. Era nosso dever primordial apoiar lealmente o general de Gaulle em sua heroica persistência. Em 7 de agosto, assinei com ele um acordo militar que versava sobre necessidades práticas. Seus discursos arrebatadores eram levados ao conhecimento da França e do mundo pelas transmissões radiofônicas inglesas. A pena de morte a que o governo de Pétain o sentenciou glorificou seu nome. Fizemos tudo o que estava a nosso alcance para ajudá-lo e ampliar seu movimento.
Ao mesmo tempo, era necessário manter contato não apenas com a França, mas até com Vichy. Sempre tentei tirar o máximo proveito desse contato. Fiquei muito satisfeito quando, no fim de 1940, os Estados Unidos enviaram a Vichy um embaixador da influência e do caráter do almirante Leahy, que era, por sua vez, muito próximo ao presidente. Incentivei repetidamente o premier canadense, Mr. Mackenzie King, a manter em Vichy seu representante, o hábil e competente M. Dupuy. Era, pelo menos, uma janela aberta para um pátio ao qual não tínhamos qualquer outro acesso. Em 25 de julho, enviei ao ministro do Exterior um memorando em que dizia: “Quero promover uma espécie de trama conspiratória no governo de Vichy, mediante a qual alguns membros daquele governo, talvez com o assentimento dos que ficarem, possam evadir-se para a África do Norte, a fim de conseguir uma negociação mais favorável à França a partir da costa norte-africana e de uma posição de independência. Para esse fim, estou disposto a usar alimentos e outros atrativos, além dos argumentos óbvios.” Nossa política sistemática era levar o governo de Vichy e seus membros a sentirem que, no que nos dizia respeito, nunca seria tarde demais para reparar as coisas. O que quer que houvesse acontecido no passado, a França era nossa parceira na adversidade e nada, a não ser uma guerra efetiva entre nós, a impediria de ser nossa parceira na vitória.
Esse clima era doloroso para de Gaulle, que havia arriscado tudo e mantido a bandeira desfraldada, mas cujo punhado de seguidores fora da França nunca poderia afirmar-se como um eficiente governo francês alternativo. Mesmo assim, fazíamos o máximo para aumentar a influência, a autoridade e o poder do general. Por seu turno, naturalmente, ele se ressentia de qualquer espécie de trato entre nós e Vichy, e achava que deveríamos ser-lhe exclusivamente leais. Para sua posição, ele também julgava essencial manter diante do povo francês uma postura orgulhosa e altiva perante a “pérfida Albion”, embora fosse um exilado que dependia de nossa proteção e vivia em nosso meio. Ele tinha de ser rude com os ingleses para provar aos olhares franceses que não era um títere. Não há dúvida de que praticou essa política com perseverança. Um dia, chegou até a me explicar essa técnica, e compreendi plenamente as extraordinárias dificuldades de seu problema. Sempre admirei sua força imponente. O que quer que Vichy viesse a fazer de bom ou de ruim, não o abandonaríamos nem desestimularíamos as adesões ao seu crescente prestígio nas colônias. Acima de tudo, não deixaríamos que nenhuma parcela da esquadra francesa, então imobilizada nos portos coloniais da França, voltasse para a terra natal. Houve momentos em que o almirantado ficou profundamente inquieto com a ideia de que a França nos declarasse guerra e, com isso, agravasse nossas preocupações, já demasiadas. Sempre acreditei que, tão logo provássemos nossa determinação e nossa capacidade de continuar lutando indefinidamente, o espírito do povo francês jamais permitiria que o governo de Vichy desse um passo tão antinatural. De fato, havia àquela altura um intenso entusiasmo e solidariedade para com a Inglaterra, e as esperanças francesas cresciam com o passar dos meses. Isso foi reconhecido até por M. Laval, quando, pouco depois, ele se tornou o ministro do Exterior do governo de Pétain.
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A coisa era diferente com a Itália. Com o desaparecimento da França como combatente e com a Inglaterra empenhada em sua luta pela sobrevivência, é bem possível que Mussolini tenha achado que seu sonho de dominar o Mediterrâneo e reconstruir o antigo Império Romano iria realizar-se. Livre de qualquer necessidade de se proteger dos franceses em Túnis, ele pôde reforçar ainda mais o numeroso exército que havia reunido para a invasão do Egito. No entanto, o Gabinete de Guerra estava decidido a defender o Egito de quaisquer invasores, com todos os recursos que pudessem ser poupados da batalha decisiva em casa. Isso se tornou ainda mais difícil quando o almirantado se declarou impossibilitado até mesmo de fazer os comboios militares atravessarem o Mediterrâneo, em decorrência do perigo aéreo. Tudo tinha que seguir pela rota do Cabo. Assim, poderia facilmente ocorrer desfalcarmos a Batalha da Inglaterra sem contribuir para a Batalha do Egito. É curioso anotar que enquanto, na época, todas as pessoas envolvidas estavam calmas e animadas, escrever sobre isso tanto tempo depois dá calafrios.
Quando a Itália declarou guerra, em 10 de junho de 1940, o serviço secreto inglês calculou — corretamente, sabemos hoje — que, à parte suas guarnições na Abissínia, na Eritreia e na Somália, havia cerca de 215 mil soldados italianos nas províncias costeiras norte-africanas. As tropas inglesas no Egito correspondiam, talvez, a cinquenta mil homens. Com estes, era preciso garantir a defesa da fronteira ocidental e a segurança interna do Egito. Por conseguinte, teríamos grandes desvantagens em terra, e os italianos também dispunham de muito mais aviões.
Durante julho e agosto, os italianos entraram em atividade em muitos pontos. Houve uma ameaça partindo de Kassala para o oeste, em direção a Khartum. Espalhou-se um sobressalto no Quênia pelo medo de uma expedição italiana que marchasse quatrocentas milhas da Abissínia para o sul, em direção ao rio Tana e a Nairóbi. Tropas italianas em número considerável avançaram na Somália Britânica. Mas todas essas angústias eram insignificantes, comparadas a uma invasão italiana do Egito, a qual vinha sendo claramente preparada em máxima escala. Antes mesmo da guerra, uma estrada magnífica fora construída ao longo da costa, indo da base principal, em Trípoli, pela Tripolitânia e pela Cirenaica até a fronteira egípcia. Em toda a extensão dessa estrada, durante muitos meses, tinha havido um fluxo crescente de tráfego militar. Grandes depósitos foram lentamente criados e abastecidos em Benghazi, Derna, Tobruk, Bardia e Sollum. A extensão dessa estrada ultrapassava mil milhas, e todo esse enxame de guarnições e depósitos de suprimentos italianos distribuía-se ao longo dela como as contas num colar.
Na ponta da estrada e perto da fronteira egípcia, um exército italiano de setenta a oitenta mil homens, com boa quantidade de equipamentos modernos, fora pacientemente reunido e organizado. Diante desse exército reluzia o prêmio do Egito. Atrás dele estendia-se a longa estrada de volta a Trípoli e, atrás desta, o mar! Se essa força, construída aos pouquinhos durante anos, semana após semana, pudesse avançar continuamente para leste, vencendo todos os que tentassem barrar-lhe o caminho, sua sorte seria esplendorosa. Se conseguisse conquistar as regiões férteis do delta do Nilo, desapareceriam todas as preocupações com o longo caminho da volta. Por outro lado, se fosse atingida pelo azar, apenas uns poucos conseguiriam um dia voltar para casa. No exército em campanha e nos grandes depósitos de suprimentos espalhados por toda a costa havia, no outono, pelo menos trezentos mil italianos, que só poderiam recuar para o oeste pela estrada, mesmo que não fossem molestados, gradualmente ou em pequenos grupos. Para fazê-lo, precisariam de muitos meses. E, se a batalha fosse perdida na fronteira egípcia, se a frente do exército fosse rompida e se não lhes fosse dado tempo, todos estariam fadados à captura ou à morte. Entretanto, em julho de 1940, não se sabia quem venceria a batalha.
Nossa posição defensiva mais avançada, na época, era o fim da linha ferroviária em Mersa-Matruh. Havia uma boa estrada levando para oeste, até Sidi Barrani, mas, dali até a fronteira, em Sollum, não havia nenhuma estrada capaz de suprir por muito tempo qualquer força considerável perto da fronteira. Formara-se uma pequena força mecanizada de cobertura com alguns de nossos melhores soldados regulares, e houve ordem de atacar os postos da fronteira italiana tão logo a guerra eclodisse. Assim, em 24 horas, eles atravessaram a fronteira, pegaram de surpresa os italianos, que não tinham sido informados da declaração de guerra e fizeram prisioneiros. Na noite seguinte, 12 de junho, tiveram um sucesso semelhante e, em 14 de junho, capturaram os fortes da fronteira em Capuzzo e Madalena, fazendo 220 prisioneiros. No dia 16, executaram uma incursão mais profunda e destruíram 12 tanques, interceptaram um comboio na estrada Tobruk-Bardia e capturaram um general.
Nessa guerra pequena mas vigorosa, nossos soldados sentiram que tinham a vantagem e logo se imaginaram senhores do deserto. Até depararem com grandes forças organizadas ou postos fortificados, podiam ir aonde bem entendessem, colecionando troféus em embates acirrados. Quando dois exércitos se aproximam, faz toda a diferença do mundo saber quem detém apenas o chão onde pisa ou dorme e quem detém todo o resto. Vi isso na Guerra dos Bois, quando não tínhamos nada além das fogueiras de nossos acampamentos e bivaques, enquanto os bois iam aonde lhes aprouvesse por toda a região. As baixas italianas divulgadas nos primeiros três meses atingiram quase 3.500 homens, dos quais setecentos foram feitos prisioneiros. Nossas próprias perdas mal excederam 150. Assim, a fase inicial da guerra declarada pela Itália ao Império Britânico inaugurou-se a nosso favor.
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Tive necessidade de discutir pessoalmente os graves acontecimentos iminentes no deserto líbio com o próprio general Wavell. Eu não conhecia esse destacado oficial, de quem tantas coisas dependiam, e pedi ao ministro da Guerra que o convidasse para uma semana de conversações tão logo surgisse uma oportunidade. Ele chegou em 8 de agosto. Trabalhou com os estados-maiores e teve várias longas conversas comigo e com Mr. Eden. O comando do Oriente Médio, naquela época, abrangia um extraordinário amálgama de problemas militares, políticos, diplomáticos e administrativos de extrema complexidade. Levou quase um ano de altos e baixos para que eu e meus colegas entendêssemos a necessidade de dividir as responsabilidades no Oriente Médio entre um comandante em chefe, um ministro residente e um intendente-geral para lidar com o problema dos suprimentos. Embora não estivesse de pleno acordo com a utilização que o general Wavell vinha fazendo dos recursos de que dispunha, achei melhor deixá-lo no comando. Admirei suas belas qualidades e fiquei impressionado com a confiança que tanta gente tinha nele.
Em decorrência das reuniões de estado-maior, Dill me escreveu, com a ardorosa aprovação de Eden, dizendo que o Ministério da Guerra estava tomando providências para enviar ao Egito, imediatamente, mais de 150 tanques e muitos canhões. A única questão em aberto era se deveriam contornar o Cabo ou arriscar a travessia do Mediterrâneo. Houve muita discussão quanto a esse ponto. Entrementes, o Gabinete aprovou o embarque e o envio da força blindada, deixando a decisão final sobre o caminho a ser feito para o momento em que o comboio se aproximasse de Gibraltar. Essa alternativa permaneceria em aberto para nós até 26 de agosto, quando deveríamos saber bem mais sobre a iminência de qualquer ataque italiano. Não houve perda de tempo. A decisão de fazer essa transfusão de sangue, enquanto nos preparávamos para enfrentar um perigo mortal, foi, ao mesmo tempo, terrível e acertada. Ninguém vacilou.
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Até o colapso francês, o controle do Mediterrâneo estivera repartido entre as marinhas inglesa e francesa. Agora, a França estava fora e a Itália havia entrado. A armada italiana, numericamente poderosa, e a força aérea italiana, também vigorosa, estavam alinhadas contra nós. Tão impressionante se afigurava essa situação que as primeiras considerações do almirantado contemplaram o abandono do Mediterrâneo oriental e a concentração em Gibraltar. Resisti a essa política, que, embora justificada no papel pelo poderio da armada italiana, não correspondia a minhas impressões dos valores de combatividade e parecia prenunciar a destruição de Malta. Eu estava decidido a travar batalhas nas duas extremidades. O ônus que recaía sobre o almirantado nessa ocasião, entretanto, era extremamente pesado. O perigo de invasão exigia uma alta concentração de flotilhas e navios de pequeno porte no canal da Mancha e no mar do Norte. Os submarinos, que em agosto haviam começado a operar a partir de portos de Biscaia, estavam cobrando um tributo pesado aos nossos comboios no Atlântico, sem sofrerem muitas perdas. Até então, a esquadra italiana nunca fora testada. A possibilidade de uma declaração de guerra japonesa, com tudo o que ela acarretaria para o nosso Império Oriental, não podia jamais ser excluída de nossos pensamentos. Portanto, não é de estranhar que o almirantado encarasse com a mais profunda ansiedade deixar quaisquer belonaves em risco no Mediterrâneo, e se sentisse dolorosamente tentado a adotar a mais rigorosa defensiva em Gibraltar e Alexandria. Eu, por outro lado, não via por que o grande número de navios destinados ao Mediterrâneo fosse poupado de desempenhar um papel ativo desde o começo. Malta tinha de ser reforçada com esquadrilhas e soldados da força aérea. Embora todo o tráfego comercial tivesse sido acertadamente suspenso, e todos os grandes comboios de tropas destinadas ao Egito tivessem que contornar o Cabo, eu não conseguia aceitar o fechamento completo do mar interior. A rigor, esperava que, manejando alguns comboios especiais, pudéssemos montar e provocar uma prova de força com a marinha italiana. Eu tinha esperança de que isso pudesse acontecer e de que Malta pudesse ser adequadamente guarnecida e equipada com aviões e canhões antiaéreos, antes do aparecimento — que eu já temia — dos alemães nesse teatro. Durante os meses de verão e outono, empenhei-me em discussões amistosas, mas tensas, com o almirantado acerca dessa parte de nosso esforço de guerra.
Mas não pude induzir o almirantado a enviar a força blindada, ou pelo menos seus carros, pelo Mediterrâneo, e o comboio inteiro seguiu seu caminho ao redor do Cabo.
Fiquei triste e aborrecido com isso. Na verdade, nenhum desastre grave ocorreu no Egito. Por toda parte, apesar do poderio aéreo italiano, mantivemos a iniciativa, e Malta permaneceu no primeiro plano dos acontecimentos, como uma base avançada para operações ofensivas contra as comunicações italianas com suas forças armadas na África.
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Nossos temores acerca da invasão italiana do Egito, como hoje se sabe, eram superados de longe pelos do marechal Graziani, que a comandou. Alguns dias antes da data marcada para seu início, ele pediu um adiamento de um mês. Mussolini retrucou que, se ele não atacasse na segunda-feira, seria substituído. O marechal respondeu que obedeceria. “Nunca”, diz Ciano, “houve operação militar tão contra a vontade dos comandantes.”
Em 13 de setembro, o principal exército italiano iniciou seu tão esperado avanço na fronteira egípcia. Suas forças somavam seis divisões de infantaria e oito batalhões de tanques. Nossa tropa de cobertura consistia em três batalhões de infantaria, um de tanques, três baterias e dois esquadrões de viaturas blindadas. Recebeu ordem de recuar lutando, operação para a qual tinham qualidade e adaptação ao deserto. O ataque italiano começou por uma barragem pesada contra nossas posições próximas da vila fronteiriça de Sollum. Quando a poeira e a fumaça se dissiparam, as tropas italianas foram avistadas, numa ordem notável de alinhamento. À frente vinham motociclistas, numa formação precisa de um flanco ao outro e da frente para a retaguarda; atrás deles, tanques leves e muitas fileiras de veículos motorizados. Nas palavras de um coronel inglês, o espetáculo parecia “uma festa de aniversário no campo de manobra, em Aldershot”. O 3° Batalhão de Coldstream Guards, que se viu ante essa formação imponente, recuou com vagar, e nossa artilharia cobrou seu preço dos alvos generosos que lhe foram oferecidos.
Mais ao sul, duas grandes colunas inimigas deslocaram-se pelo deserto, ao sul da extensa serrania que corre paralela ao mar e só podia ser cruzada no passo de Halfaya — o “Fogo do Inferno”1 — que teria um papel a desempenhar em todas as nossas batalhas posteriores. Cada coluna italiana compunha-se de muitas centenas de veículos, com tanques, canhões antitanque e artilharia à frente, e com a infantaria transportada em caminhões no centro. A essa formação, que foi adotada diversas vezes, demos o nome de “Ouriço”. Nossas tropas recuaram diante desses grandes ouriços, aproveitando todas as oportunidades de fustigar o inimigo, cujos movimentos pareciam erráticos e indecisos. Posteriormente, Graziani explicou que havia decidido, no último minuto, modificar seu plano de um movimento abrangente no deserto e “concentrar todas as minhas forças à esquerda, para fazer um movimento relâmpago ao longo da costa até Sidi Barrani”. Assim, a grande massa italiana avançou lentamente pela estrada litorânea, por duas trilhas paralelas. Atacavam com levas de soldados da infantaria transportados em caminhões, que avançavam em grupos de cinquenta. Os Coldstream Guards recuaram habilmente durante quatro dias, conforme sua conveniência, de Sollum para outros postos sucessivos, infligindo ao inimigo um duro castigo à medida que retrocediam.
No dia 17, o exército italiano chegou a Sidi Barrani. Nossas baixas somavam quarenta mortos e feridos, as do inimigo cerca de dez vezes mais, incluindo 150 viaturas destruídas. Ali, com suas comunicações estendidas por sessenta milhas, os italianos se instalaram para passar os três meses seguintes. Foram continuamente fustigados por nossas pequenas colunas móveis e sofreram sérias dificuldades de manutenção. Mussolini, a princípio, ficou “radiante de alegria”. À medida que as semanas se alongaram em meses, sua satisfação diminuiu. Em Londres, entretanto, parecia-nos certo que, em dois ou três meses, um exército italiano muito maior do que qualquer um que pudéssemos reunir renovaria a ofensiva para tomar a região do Delta. E, ainda por cima, os alemães sempre poderiam aparecer! Não podíamos, claro, esperar a longa parada que se seguiu à ofensiva de Graziani. Era razoável supor que uma grande batalha fosse travada em Mersa-Matruh. As semanas já decorridas haviam permitido que nossos preciosos blindados contornassem o Cabo sem a demora que, até então, vinha causando desvantagem.
Quando relembro todas essas preocupações, recordo-me da história do ancião que disse, em seu leito de morte, ter tido na vida muitas dificuldades, a maioria das quais nunca havia, de fato, ocorrido. Isso certamente se aplica à minha vida em setembro de 1940. Os alemães foram derrotados na Batalha Aérea da Inglaterra. A invasão marítima da Inglaterra não aconteceu. Na verdade, nessa ocasião, Hitler já tinha voltado seu olhar feroz para o Leste. Os italianos não prosseguiram em seu ataque ao Egito. A brigada de tanques enviada pela rota do Cabo chegou em tempo hábil — não, é verdade, para uma batalha defensiva em Mersa-Matruh em setembro, mas para uma operação posterior incomparavelmente mais vantajosa. Achamos meios de reforçar Malta antes de qualquer ataque aeroterrestre contra ela, e ninguém jamais tentou um desembarque na ilha-fortaleza insular. E assim passou setembro.
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Irrompeu então no palco do Mediterrâneo uma nova agressão de Mussolini, que, embora não totalmente inesperada, acarretou problemas desconcertantes e muitas consequências para todos os nossos atormentados assuntos.
O Duce tomou a decisão final de atacar a Grécia em 15 de outubro de 1940 e, antes do alvorecer do dia 28, o embaixador italiano em Atenas apresentou um ultimato ao general Metaxas, premier da Grécia. Mussolini exigia que o país inteiro se abrisse para as tropas italianas. Ao mesmo tempo, o exército italiano na Albânia invadiu a Grécia em vários pontos. O governo grego, cujas forças não estavam nada despreparadas na fronteira, rejeitou o ultimato. Invocou também a garantia dada por Mr. Chamberlain em 13 de abril de 1939. Tínhamos o compromisso de honrá-la. Por recomendação do Gabinete de Guerra e falando de coração, Sua Majestade respondeu ao rei dos helenos: “Sua causa é a nossa causa; lutaremos contra um inimigo comum.” Atendi ao apelo do general Metaxas: “Dar-lhe-emos toda a ajuda que estiver a nosso alcance. Combateremos um inimigo comum e compartilharemos uma vitória unida.” Esse compromisso foi mantido durante uma longa história.
Afora algumas esquadrilhas aéreas, uma missão inglesa e, talvez, uns poucos soldados, nada tínhamos a oferecer; e até essas ninharias eram uma subtração dolorosa dos tórridos projetos que já raiavam no teatro líbio. Uma realidade estratégica evidente saltou sobre nós — CRETA! Os italianos não podiam tomá-la. Tínhamos nós que tomá-la primeiro — e rápido. Por sorte, no momento, Mr. Eden estava no Oriente Médio e, desse modo, eu tinha no local um colega de ministério com quem tratar. Telegrafei a ele e, a convite do governo grego, a baía de Suda, o melhor porto de Creta, foi ocupada por nossas forças poucos dias depois.
É triste a história da baía de Suda. A tragédia só veio em 1941. Creio que tive tanto controle direto da condução da guerra quanto teve qualquer homem público de qualquer país nessa ocasião. Os conhecimentos que eu possuía, a fidelidade e a ajuda ativa do Gabinete de Guerra, a lealdade de todos os meus companheiros, a eficiência cada vez maior de nossa máquina de guerra, tudo isso permitiu que se conseguisse uma intensa convergência da autoridade constitucional. No entanto, quão aquém de nossas ordens e do que todos desejávamos ficou a execução pelo Comando do Oriente Médio! Para avaliar as limitações da ação humana, convém lembrarmos quanta coisa estava acontecendo por todo lado ao mesmo tempo. Mesmo assim, continua a me estarrecer que não tenhamos conseguido fazer da baía de Suda a cidadela anfíbia da qual Creta inteira seria a fortaleza.
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A invasão italiana da Grécia a partir da Albânia foi outro duro revés para Mussolini. A primeira ofensiva foi repelida com baixas pesadas, e os gregos contra-atacaram imediatamente. O exército grego, comandado pelo general Papagos, demonstrou uma habilidade superior na guerra nas montanhas, manobrando com maior perícia e levando a melhor sobre o inimigo. No fim do ano, sua capacidade havia empurrado os italianos para trinta milhas além da fronteira albanesa, ao longo de toda a frente de combate. A notável resistência grega contribuiu muito para animar os outros países balcânicos, e o prestígio de Mussolini despencou.
Mas viriam outras coisas. Mr. Eden voltou à Inglaterra em 8 de novembro e, na mesma noite, depois de iniciado o bombardeio habitual, veio ter comigo. Trouxe com ele um segredo cuidadosamente guardado, que eu gostaria de ter conhecido mais cedo. No entanto, não tinha havido nenhum prejuízo. Eden revelou em detalhes consideráveis, a um círculo seleto que incluía o CIGS e o general Ismay, o plano ofensivo que o general Wavell e o general Wilson haviam concebido e preparado. Não mais iríamos aguardar em nossas linhas fortificadas, em Mersa-Matruh, o ataque italiano para cuja batalha defensiva tinham sido feitos preparativos tão extensos e engenhosos. Ao contrário, dentro de aproximadamente um mês, nós mesmos iríamos atacar.
Ficamos todos radiantes. Eu ronronei por seis gatinhos. Ali estava algo que valia a pena fazer. Ficou decidido, naquele momento, dependendo da concordância dos chefes de estado-maior e do Gabinete de Guerra, sancionar imediatamente e dar todo o apoio possível àquela excelente iniciativa. Oportunamente, as propostas foram submetidas ao Gabinete de Guerra. Eu estava preparado para defender a questão ou promover a defesa. Mas, quando meus colegas souberam que os generais no front e os chefes de estado-maior estavam de pleno acordo comigo e com Mr. Eden, declararam que não queriam conhecer os detalhes do plano, que quanto menos gente soubesse, melhor, e que aprovavam de coração a política geral de ofensiva. Foi essa a atitude que o Gabinete de Guerra adotou em diversas ocasiões importantes, e deixo-a registrada aqui para que sirva de modelo, na eventualidade de surgirem perigos e dificuldades similares no futuro.
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Embora, no papel, ainda fôssemos largamente superados em número pela esquadra italiana, algumas melhorias acentuadas já tinham sido feitas em nossas forças no Mediterrâneo. Durante setembro, o Valiant, o porta-aviões Illustrious de convés blindado, e mais dois cruzadores antiaéreos haviam atravessado o Mediterrâneo em segurança, para se juntar ao almirante Cunningham em Alexandria. Até então, os navios dele sempre tinham sido avistados e, em geral, bombardeados pela força aérea italiana, que era enormemente superior. O Illustrious, com seus caças modernos e seu avançado equipamento de radar, ao abater os aviões-patrulha e os bombardeiros, conferiu um novo sigilo aos nossos movimentos. Foi uma vantagem oportuna.
Fazia muito tempo que o almirante Cunningham ansiava por desferir um golpe contra a esquadra italiana ancorada em sua base principal, em Taranto. O ataque foi desfechado em 11 de novembro, como auge de uma série de operações bem-planejadas. Taranto fica no salto da bota italiana, a 320 milhas de Malta. Seu ancoradouro magnífico era solidamente defendido contra todas as formas modernas de ataque. A chegada a Malta de alguns aviões de reconhecimento mais velozes permitiu-nos discernir nossa presa. O Illustrious soltou seus aviões pouco depois do escurecer, de um ponto situado a cerca de 170 milhas de Taranto. Durante uma hora, a batalha foi travada em meio ao fogo e à destruição dos navios italianos. Apesar da intensa artilharia antiaérea, apenas dois de nossos aviões foram derrubados. Os demais retornaram em segurança.
Com esse único ataque, o equilíbrio do poder naval no Mediterrâneo foi decisivamente alterado. As fotografias aéreas mostraram que três encouraçados, entre eles o novo Littorio, tinham sido torpedeados e, além disso, deram parte de que um cruzador fora atingido e muitos danos tinham sido causados ao arsenal da base. Metade da marinha de guerra italiana foi posta fora de combate pelo menos por seis meses, e a aviação naval pôde rejubilar-se por ter aproveitado, através de sua esplêndida façanha, uma das raras oportunidades que lhe foram apresentadas.
Um toque de ironia se acrescentou a esse evento pelo fato de que, nesse mesmo dia, a força aérea italiana, por desejo expresso de Mussolini, participou do ataque aéreo contra a Inglaterra. Um esquadrão de bombardeiros italiano, escoltado por cerca de sessenta caças, tentou bombardear os comboios aliados no Medway. Foi interceptado por nossos caças, sendo derrubados oito bombardeiros e cinco caças. Essa foi sua primeira e última intervenção em nossos assuntos internos. Teriam achado missão mais útil defendendo sua esquadra em Taranto.
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Por um mês ou mais, todas as tropas a serem empregadas em nossa ofensiva do deserto exercitaram-se nos papéis especiais que teriam que desempenhar nesse ataque bastante complicado. Apenas um pequeno círculo de oficiais conhecia o plano em toda a sua extensão e praticamente nada fora posto no papel. Em 6 de dezembro, nosso exército — magro, bronzeado, endurecido pelo deserto e completamente mecanizado, composto de cerca de 25 mil homens — fez um repentino lance de mais de quarenta milhas e, durante todo o dia seguinte, permaneceu imóvel nas areias do deserto, sem ser avistado pela força aérea italiana. Tornou a avançar em 8 de dezembro e, nessa noite, pela primeira vez, os soldados foram informados de que aquilo não era um exercício. Era “para valer”. Ao raiar do dia 9, iniciou-se a batalha de Sidi Barrani.
Não é meu objetivo descrever os combates intricados e dispersos que ocuparam os quatro dias seguintes, numa região do tamanho do Yorkshire. Tudo correu bem. A batalha continuou por todo o dia 10 e, às dez horas, o posto de comando do batalhão Coldstream informou ser impossível contar os prisioneiros, em função de sua quantidade, mas afirmou que “havia uns cinco acres de oficiais e duzentos acres das outras graduações”. Em casa, em Downing Street, traziam-me mensagens de hora em hora do campo de batalha. Era difícil compreender exatamente o que estava acontecendo, mas a impressão geral era favorável. Lembro-me de ter gostado da mensagem do jovem oficial de um tanque da 7a Divisão Blindada: “Chegamos ao segundo B de Buq Buq.” Sidi Barrani foi capturada na tarde do dia 10. Em 15 de dezembro, toda a força inimiga tinha sido expulsa do Egito.
Bardia era nosso objetivo seguinte. Dentro de seu perímetro de 17 milhas encontrava-se a maior parte de outras quatro divisões italianas. As defesas incluíam uma vala antitanque contínua e obstáculos de arame, com casamatas de concreto a intervalos; atrás disso havia uma segunda linha de fortificações. O assalto a essa fortaleza considerável exigia preparação e, para encerrar este episódio de vitória no deserto, avançarei pelo ano-novo. O ataque começou nas primeiras horas de 3 de janeiro. Um batalhão australiano, coberto por uma intensa concentração de artilharia, tomou e segurou um bolsão em território inimigo, no oeste do perímetro. Em sua retaguarda, a engenharia encheu a vala antitanque. Duas brigadas australianas deram seguimento ao ataque e avançaram para o leste e o sudeste. Na ocasião, cantavam uma canção de um filme americano, que logo se popularizou também na Inglaterra:
We’re off to see the Wizard, The wonderful Wizard of Oz. We hear he is a Whiz of a Wiz, If ever a Wiz there was. |
Lá vamos nós ver o mágico O famoso Mágico de Oz Dizem que é o mago dos magos Se já houve um assim entre nós. (O Mágico de Oz, 1939) |
Essa canção sempre me recorda aqueles dias animados. Na tarde de 4 de janeiro, tanques ingleses — “Matildas”, eram chamados —, apoiados pela infantaria, entraram em Bardia e, no dia 5, todos os defensores haviam-se rendido. Quarenta e cinco mil prisioneiros foram feitos e 462 canhões tomados.
No dia seguinte, 6 de janeiro, por sua vez, Tobruk fora isolada. Só foi possível lançar o ataque em 21 de janeiro. No começo da manhã seguinte, toda a resistência cessou. Os prisioneiros somaram quase trinta mil, com 236 canhões. Em seis semanas, o Exército do Deserto havia avançado mais de duzentas milhas num território sem água e sem comida; tomado de assalto dois portos marítimos solidamente fortificados, com defesas aéreas e navais permanentes; e feito 113 mil prisioneiros com mais de setecentos canhões. O grande exército italiano que invadira e esperara conquistar o Egito mal existia como força militar, e só as dificuldades imperativas da distância e do suprimento retardaram um definitivo avanço inglês para oeste.
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Ao se aproximar o fim do ano, suas luzes e sombras apareciam com nitidez no quadro. Estávamos vivos. Havíamos derrotado a força aérea alemã. Não ocorrera a invasão da ilha. O exército dentro do país estava forte. Londres passara triunfante por todas as suas provações. Tudo o que se ligava ao domínio do espaço aéreo sobre nossa ilha aperfeiçoava-se velozmente. A difamação pelos comunistas que obedeciam a ordens de Moscou resmungava sobre uma guerra capitalista-imperialista. Mas as fábricas zuniam de atividade e toda a nação inglesa trabalhava noite e dia, reanimada por uma onda de alívio e orgulho. A vitória reluzia no deserto líbio e, do outro lado do Atlântico, a Grande República chegava cada vez mais perto de seu dever e do socorro a nós.
Podemos, tenho certeza, classificar esse ano tremendo como o ano mais esplêndido, tal como foi o mais mortífero, de nossa longa história inglesa e britânica. Uma Inglaterra grandiosa e singularmente organizada é que havia destruído a Armada Espanhola. Uma chama intensa de convicção e determinação fizera-nos atravessar o conflito de 25 anos travado por William III e Marlborough contra Luís XIV. Houve um período famoso com Chatham. Houve longa luta contra Napoleão, em que nossa sobrevivência foi assegurada através do domínio naval da marinha inglesa, sob a clássica liderança de Nelson e seus companheiros. Um milhão de ingleses morreram na Primeira Guerra Mundial. Mas nada supera 1940. No fim desse ano, esta pequena e antiga ilha, com a devoção de sua Commonwealth, de seus Domínios e de suas ligações sob todos os céus do mundo, tinha-se mostrado capaz de suportar todo o impacto e o peso do destino mundial. Não havíamos recuado nem hesitado. Não fracassáramos. A alma do povo inglês e sua raça revelara-se invencível. A cidadela da Commonwealth e do Império fora impenetrável. Sozinhos, mas enaltecidos por cada batimento generoso do coração da humanidade, havíamos desafiado o tirano no auge de seu triunfo.
Toda a nossa força latente estava viva a essa altura. O terror aéreo fora avaliado. A ilha era intangível, inviolável. Dali por diante, também nós teríamos armas com que lutar. Dali por diante, também nós seríamos uma máquina de guerra altamente organizada. Havíamos mostrado ao mundo que éramos capazes de resistir. Houve dois lados na questão do domínio mundial de Hitler. A Inglaterra, que tantos haviam considerado acabada, ainda estava no ringue, muito mais forte do que jamais, e ganhando forças a cada dia. O tempo, mais uma vez, se pusera do nosso lado. E não apenas do nosso lado nacional. Os Estados Unidos estavam-se armando depressa e se aproximando cada vez mais do conflito. A Rússia soviética, que por um frio erro de cálculo nos descartara como inúteis no começo da guerra, também se tornara muito mais forte e garantira posições avançadas para sua defesa, comprando da Alemanha uma imunidade efêmera e uma participação na pilhagem. O Japão parecia momentaneamente intimidado com a evidente perspectiva de uma guerra mundial prolongada e, observando ansioso a Rússia e os Estados Unidos, meditava profundamente sobre o que seria inteligente e proveitoso fazer.
E agora, essa Inglaterra e sua vasta associação de estados e dependências, que pareceram à beira da ruína e cujo próprio coração estivera prestes a ser atravessado, concentraram-se durante 15 meses no problema da guerra, treinando seus homens e dedicando à luta todas as suas energias infinitamente variadas. Com um suspiro ofegante de assombro e alívio, os pequenos países neutros e as nações subjugadas viram que as estrelas ainda brilhavam no céu. A esperança e, dentro dela, a paixão voltaram a se inflamar no coração de centenas de milhões de seres humanos. A boa causa triunfaria. O direito não seria espezinhado. A bandeira da liberdade, que, nesse momento fatídico, era o pavilhão do Reino Unido, continuaria a tremular em todos os ventos que sopravam.
Mas a mim e a meus fiéis colegas, que considerávamos ansiosamente informações precisas desse panorama na cúpula, não faltavam preocupações. A sombra do bloqueio submarino já batia em nós, provocando calafrios. Todos os nossos planos dependiam de derrotar essa ameaça. A Batalha da França fora perdida. A Batalha da Inglaterra fora vencida. Impunha-se agora travar a Batalha do Atlântico.
1 Trocadilho com “hellfire”. (N.T.)