O flanco do deserto. Rommel. Tobruk
Todo o nosso esforço por uma frente nos Bálcãs baseava-se na existência segura do flanco do deserto, na África do Norte. Este flanco poderia ter sido fixado em Tobruk, mas o rápido avanço de Wavell para oeste e a captura de Benghazi tinham-nos dado toda a Cirenaica. O canto de mar de El Agheila era o portão de entrada da Cirenaica. Houve consenso entre todas as autoridades de Londres e do Cairo de que ela deveria ser preservada a qualquer preço, com prioridade sobre qualquer outro empreendimento. A completa destruição das forças italianas na Cirenaica e as longas distâncias rodoviárias a serem percorridas para que o inimigo pudesse concentrar um novo exército levaram Wavell a acreditar que, por algum tempo, ele poderia guardar esse flanco essencial de oeste com tropas de porte médio e substituir seus soldados experientes por outros menos treinados. O flanco do deserto era o pino do qual pendia tudo o mais, e não havia em nenhum setor a ideia de perdê-lo ou de arriscá-lo em benefício da Grécia ou de qualquer coisa nos Bálcãs.
Nesse momento, porém, novo personagem irrompeu no cenário mundial, um guerreiro que há de guardar seu lugar nos anais militares da Alemanha. Erwin Rommel nascera em Heidenheim, Württemberg, em novembro de 1891. Havia lutado na Primeira Guerra Mundial na região de Argonne, na Romênia e na Itália, sendo ferido duas vezes e condecorado com a mais alta classe da Cruz de Ferro e de Pour de Mérite. Ao eclodir a Segunda Guerra Mundial, fora nomeado comandante do QG de campanha do Führer na campanha polonesa e, em seguida, recebera o comando da 7ª Divisão Panzer do 15° Corpo de Exército. Essa divisão, apelidada de “os Fantasmas”, formara a ponta de lança da ofensiva alemã pelo Meuse. Rommel escapara da captura por um triz, quando os ingleses contra-atacaram em Arras em 21 de maio de 1940. Comandou a vanguarda que cruzou o Somme e avançou para o Sena em direção a Rouen, empurrando a ala esquerda francesa e aprisionando numerosas tropas francesas e inglesas ao redor de St. Valéry. Sua divisão entrara em Cherbourg logo depois de nossa retirada final. Rommel aceitara a rendição do porto e fizera trinta mil prisioneiros.
Esses muitos serviços e distinções levaram à sua nomeação, logo no início de 1941, para o comando da tropa alemã enviada à Líbia. Nessa ocasião, as esperanças alemãs limitavam-se a conservar a Tripolitânia, e Rommel comandava o crescente contingente alemão e ficou sob comando italiano. Empenhou-se imediatamente em executar uma campanha ofensiva. Quando, no início de abril, o comandante em chefe italiano tentou persuadi-lo de que o Afrika Korps alemão não deveria avançar sem permissão dele, Rommel protestou que, “como general alemão, tinha de dar ordens de acordo com o que a situação exigisse”.
Durante toda a campanha africana, Rommel revelou-se um mestre no manejo de formações móveis, especialmente no reagrupamento rápido após uma operação, de modo a explorar o êxito. Era um esplêndido jogador militar, que dominava o problema dos suprimentos e desdenhava a oposição. A princípio, o alto comando alemão, tendo-lhe dado rédea solta, ficou atônito com seus sucessos e se sentiu inclinado a contê-lo. Seu ardor e intrepidez infligiram-nos desastres lastimáveis, mas ele merece a saudação que lhe fiz — não sem uma certa recriminação do público — na Câmara dos Comuns em janeiro de 1942, quando disse a seu respeito: “Temos contra nós um oponente muito arrojado e hábil e, permitam-me dizê-lo em meio à devastação da guerra, um grande general.” Ele também merece nosso respeito porque, embora fosse um leal soldado alemão, veio a detestar Hitler e todas as suas obras e participou da conspiração de 1944 para resgatar a Alemanha, afastando o maníaco e tirano. Por esse ato, pagou com a vida.
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O desfiladeiro de El Agheila era o cerne da situação. Se o inimigo penetrasse até Agedabia, estariam em perigo Benghazi e tudo o que ficasse a oeste de Tobruk. Ele poderia escolher entre tomar a boa estrada costeira que passava por Benghazi e seguir adiante, ou usar as trilhas que levavam diretamente a Mechili e Tobruk, cortando a saliência desértica de duzentas milhas de comprimento por cem de largura. Tomando esta última rota em fevereiro, havíamos cortado e capturado muitos milhares de italianos que se retiravam através de Benghazi. Não seria surpresa para nós que Rommel também escolhesse a rota do deserto para nos aplicar o mesmo golpe. Entretanto, enquanto conservássemos a garganta de El Agheila, o inimigo não teria a oportunidade de nos confundir dessa maneira.
Tudo isso dependia de um conhecimento não apenas do terreno, mas das condições da guerra no deserto. Uma superioridade em matéria de blindados e de qualidade, em vez de quantidade, e um razoável equilíbrio aéreo permitiriam que a força melhor e mais enérgica saísse vencedora na luta no deserto, mesmo que a passagem fosse perdida. Nenhuma dessas condições fora criada pelas providências tomadas; éramos inferiores no ar e nossos blindados, por motivos que aparecerão mais adiante, eram sumamente inadequados, como também o eram o treinamento e o equipamento das tropas a oeste de Tobruk.
O ataque de Rommel a El Agheila começou em 31 de março. Nossa divisão blindada, a rigor, apenas uma brigada blindada e seu grupo de apoio, recuou lentamente nos dois dias seguintes. No ar, o inimigo revelou-se altamente superior. A força aérea italiana ainda tinha pouca importância, mas havia cerca de cem caças alemães e cem bombardeiros e bombardeiros de mergulho. Nossas forças blindadas desorganizaram-se frente ao ataque alemão e houve sérias perdas. De um só golpe e quase num único dia, o flanco do deserto, do qual dependiam todas as nossas decisões, desmoronou.
Evacuação de Benghazi foi a ordem e, na noite de 6 de abril, a retirada estava em pleno andamento. Tobruk foi reforçada, mas o QG da 2ª Divisão Blindada e dois regimentos motorizados indianos foram cercados. Muitos homens abriram caminho lutando e trouxeram com eles cem prisioneiros alemães, porém a grande maioria foi obrigada a se render. O inimigo continuou avançando à toda para Bardia e Sollum, com veículos blindados pesados e infantaria motorizada. Outras tropas atacaram as defesas de Tobruk. A guarnição rechaçou dois ataques, destruindo vários tanques inimigos, e, durante algum tempo, a situação ali e na fronteira egípcia ficou estabilizada.
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A surra que tomamos em nosso flanco do deserto, enquanto nos desdobrávamos inteiramente na aventura grega, foi um desastre de primeira grandeza. Por algum tempo, fiquei completamente aturdido quanto à sua causa e, assim que houve uma trégua momentânea, vi-me forçado a pedir ao general Wavell uma explicação sobre o que havia acontecido. Como era característico, ele tomou a si a responsabilidade.1 O desastre o havia despojado quase completamente de seus blindados.
Domingo, 20 de abril, estava eu passando o fim de semana em Ditchley e trabalhando na cama quando recebi dois telegramas do general Wavell para o CIGS, que revelavam toda a gravidade de sua terrível posição. Descreviam detalhadamente a situação de seus tanques, e o quadro era sombrio: “Notar que apenas dois regimentos de tanques pesados são esperados no Egito no fim de maio e nenhuma reserva para substituir as perdas, ao passo que há hoje no Egito, treinado, pessoal excelente para seis regimentos de tanques. Considero vital o fornecimento de tanques pesados, além de tanques de infantaria, aos quais faltam velocidade e raio de ação para operações no deserto. Queira dar sua ajuda pessoal.”
Ao ler essas mensagens alarmantes, resolvi não mais me deixar reger pela relutância do almirantado, e enviar um comboio pelo Mediterrâneo diretamente até Alexandria, carregando todos os tanques de que o general Wavell precisava. Tínhamos um comboio com grande quantidade de blindados zarpando para contornar o Cabo. Decidi que os navios velozes de transporte de tanques desse comboio deveriam mudar de curso em Gibraltar e seguir pelo atalho, assim economizando quase quarenta dias. O general Ismay, que estava hospedado nas imediações, foi ter comigo ao meio-dia. Preparei um memorando pessoal para os chefes de estado-maior. Pedi-lhe que o levasse imediatamente a Londres e deixasse claro que eu atribuía suma importância à execução dessa providência.
Os chefes de estado-maior estavam reunidos quando Ismay chegou a Londres. Discutiram minha minuta até altas horas da madrugada. Suas primeiras reações à proposta foram desfavoráveis. As chances de fazer os navios-transporte de equipamento motorizado atravessarem ilesos o Mediterrâneo central não eram julgadas muito altas, já que, na véspera de entrarem no estreito e na manhã seguinte à passagem por Malta, eles ficariam sujeitos a bombardeiros de mergulho fora do alcance dos nossos caças baseados em terra. Houve também a opinião de que estávamos perigosamente enfraquecidos em matéria de tanques no país e, se sofrêssemos nessa ocasião grandes perdas no exterior, haveria uma demanda de reposição desses tanques e, consequentemente, um desvio adicional de tanques das forças internas.
Entretanto, quando o Comitê de Defesa se reuniu no dia seguinte, o almirante Pound, para minha grande satisfação, apoiou-me e concordou em fazer o comboio atravessar o Mediterrâneo. O chefe do Estado-Maior da RAF, marechal do ar Portal, disse que tentaria conseguir uma esquadrilha de Beaufighters para dar proteção adicional a partir de Malta. Pedi então ao comitê que considerasse o envio de mais cem tanques pesados no comboio. O general Dill opôs-se ao despacho desses tanques adicionais em vista da escassez para a defesa interna. Considerando aquilo com que havíamos concordado dez meses antes, quando enviáramos metade de nossos poucos tanques pela rota do Cabo até o Oriente Médio, em julho de 1940, não me foi possível achar que essa razão fosse válida nesse momento. Como sabe o leitor, eu não encarava a invasão como um grande perigo em abril de 1941, já que se haviam feito preparativos adequados contra ela. Sabemos hoje que essa visão estava certa. Ficou acertado que essa operação, que denominei de Tiger, deveria prosseguir.
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Enquanto tudo isso era providenciado, Tobruk pesava em nossa mente. Todos os Hurricanes que estavam na Grécia tinham sido perdidos e muitos em Tobruk destruídos ou avariados. O marechal do ar Longmore julgou que qualquer nova tentativa de manter uma esquadrilha de caças em Tobruk resultaria tão somente em baixas pesadas sem nenhum propósito. Assim, o inimigo teria completa superioridade aérea acima de Tobruk, até que fosse possível compormos uma nova força de aviões de combate. Entretanto, a guarnição havia repelido um ataque pouco antes, causando sérias baixas ao inimigo e fazendo 150 prisioneiros.
O general Wavell logo nos enviou mais informações inquietantes sobre os reforços de Rommel, que se aproximavam. O desembarque da 15ª Divisão Blindada alemã provavelmente estaria concluído em 21 de abril. Havia sinais de que Benghazi vinha sendo regularmente usada e, embora fossem necessários pelo menos 15 dias para reunir suprimentos, parecia provável que a Divisão Blindada, a 5ª Divisão Motorizada Ligeira e as divisões de Aríete e Trento pudessem avançar depois de meados de junho. Em casa, deixou-nos muito insatisfeitos o fato de Benghazi — que não havíamos conseguido transformar numa base eficiente — já estivesse desempenhando um papel tão importante, agora que estava na mão dos alemães.
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Durante a quinzena seguinte, minha atenção aguçada e minhas angústias giraram em torno do destino da operação Tiger. Eu não subestimava os riscos que o primeiro Lord do mar se dispusera a aceitar e sabia que havia muitos receios no almirantado. O comboio, que consistia em cinco navios de 15 nós, escoltados pela Força H do almirante Somerville (Renown, Malaya, Ark Royal e Sheffield), passou por Gibraltar em 6 de maio. Com ele seguiam também os reforços para a esquadra do Mediterrâneo, compreendendo o Queen Elizabeth e os cruzadores Naiad e Fiji. Os ataques aéreos de 8 de maio foram rechaçados sem danos. Durante essa noite, porém, dois navios do comboio esbarraram em minas ao se aproximarem do estreito. Um deles pegou fogo e afundou depois de uma explosão; o outro pôde seguir com o comboio. Ao chegar à entrada do canal de Skerki, o almirante Somerville separou-se do grupo e retornou a Gibraltar. Na tarde de 9 de maio, o almirante Cunningham, que aproveitara a oportunidade para levar um comboio para Malta, foi ao encontro do comboio da Tiger com sua esquadra, cinquenta milhas ao sul de Malta. Todas as forças rumaram então para Alexandria, onde chegaram sem maiores baixas ou avarias.
Enquanto isso pendia na balança, meu pensamento voltou-se para Creta. A essa altura, tínhamos certeza de que era iminente um pesado ataque aeroterrestre contra a ilha. Parecia-me que, se os alemães conseguissem capturar e usar os seus campos de aviação, teriam o poder de enviar reforços quase indefinidamente, e achei que até uma dúzia de tanques de infantaria poderia ter um papel decisivo para impedir que o fizessem. Assim, pedi aos chefes de estado-maior que considerassem a hipótese de desviar um navio da Tiger para que descarregasse alguns desses tanques em Creta, em sua passagem por lá. Meus colegas militares, embora concordando em que os tanques seriam de especial valia para a finalidade que eu tinha em mente, julgaram desaconselhável pôr o restante da valiosa carga do navio em perigo em função desse desvio. Assim, em 9 de maio, sugeri-lhes que, se fosse “considerado perigoso demais levar o Clan Lamont até Suda, ele ou algum outro navio [deveria] levar 12 tanques para lá, logo após o desembarque de sua carga em Alexandria”. Expediram-se ordens nesse sentido. Wavell informou-nos, no dia 10 de maio, que “já havia providenciado o envio de seis tanques de infantaria e 15 tanques ligeiros para Creta”, e que eles “deverão chegar em poucos dias, se tudo correr bem”. Mas só nos restavam pouquíssimos dias.
1 Esse primeiro ataque de Rommel, com seus frutos consequentes, foi uma grande surpresa tanto para nós quanto para seus próprios superiores, como conta Desmond Young em seu livro Rommel.