A nêmesis dos soviéticos
Nêmesis é “a deusa executora da punição dos deuses, que lança por terra toda boa sorte descabida, refreia a presunção dos mortais (...) e vinga os crimes extraordinários”.1 Devemos agora deixar às claras o erro e a vaidade do frio calculismo do governo soviético e da imensa máquina comunista, bem como sua espantosa ignorância sobre sua própria situação. Eles haviam demonstrado total indiferença pelo destino das Potências Ocidentais, embora isso significasse a destruição da “Segunda Frente” pela qual haveriam de clamar muito em breve. Pareciam não ter a mínima ideia de que, mais de seis meses antes, Hitler havia decidido destruí-los. Se seu serviço de inteligência os informou da vasta articulação alemã em direção ao Leste, que a essa altura aumentava dia a dia, eles foram omissos no tocante a muitas providências necessárias para enfrentá-la. Assim, permitiram que a totalidade dos Bálcãs fosse dominada pela Alemanha. Eles odiavam e desprezavam as democracias do Ocidente; mas os quatro países — Turquia, Romênia, Bulgária e Iugoslávia — que eram de interesse vital para sua própria segurança poderiam ter sido congregados pelo governo soviético, em janeiro, com uma ativa ajuda inglesa, para formar uma frente balcânica contra Hitler. Os russos deixaram que todos mergulhassem na confusão e, com exceção da Turquia, todos foram varridos, um a um. A guerra é, acima de tudo, um catálogo de asneiras, mas é duvidoso que algum erro na história tenha-se equiparado ao erro crasso de que Stalin e os líderes comunistas foram culpados, ao jogarem fora todas as possibilidades nos Bálcãs e aguardarem passivamente, ou serem incapazes de reconhecer, a pavorosa ofensiva iminente contra a Rússia. Até então, nós os havíamos classificado de calculistas egoístas. Nesse período, também se revelaram simplórios. A força, a massa, a bravura e a resistência da Mãe Rússia ainda teriam que ser jogadas na balança. Mas, até onde estratégia, política, visão e competência podem servir de árbitros, Stalin e seus comissários mostraram-se, nessa ocasião, os trapalhões mais completamente tapeados da Segunda Guerra Mundial.
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A diretriz de Hitler sobre a Operação Barbarossa, datada de 18 de dezembro de 1940, estipulara o grupamento geral e as missões principais das forças a serem concentradas contra a Rússia. Naquela data, o total da força alemã na frente oriental era de 34 divisões. Multiplicar esse número por mais de três foi um imenso processo de planejamento e preparação, que ocupou inteiramente os primeiros meses de 1941. Em janeiro e fevereiro, a aventura balcânica para a qual o Führer deixou-se arrastar drenou cinco divisões do leste para o sul, três das quais blindadas. Em maio, o dispositivo alemão no Leste subiu para 87 divisões, e havia nada menos de 25 absorvidas nos Bálcãs. Considerando a magnitude e os perigos da invasão da Rússia, foi imprevidente perturbar a concentração no Leste para fazer uma diversão tão expressiva. Veremos agora como um atraso de cinco semanas foi imposto à operação suprema, em decorrência da nossa resistência nos Bálcãs e, especialmente, da revolução iugoslava. Ninguém pode avaliar com exatidão que consequências teve isto antes de o inverno se abater sobre a sorte da campanha alemã na Rússia. É razoável presumir que Moscou tenha sido salva por isso. Durante maio e o começo de junho, muitas das mais bem-treinadas divisões alemãs e todos os blindados foram deslocados dos Bálcãs para a frente oriental e, no momento da ofensiva, os alemães atacaram com 120 divisões, 17 das quais eram blindadas e 12, motorizadas. Seis divisões romenas também foram incluídas no Grupo de Exércitos do Sul. Na reserva geral, mais 26 divisões estavam concentradas ou em processo de concentração; de modo que, no início de julho, o Alto Comando alemão podia contar com pelo menos 150 divisões, apoiadas pela força de ataque principal de sua força aérea, composta por cerca de 2.700 aviões.
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Até o fim de março, eu não estava convencido de que Hitler se houvesse decidido por uma guerra mortal com a Rússia, nem de quão próxima ela estava. Nossos relatórios de inteligência revelaram com detalhes a extensa movimentação de tropas alemãs em direção aos estados balcânicos e no interior deles que havia caracterizado os primeiros três meses de 1941. Nossos agentes conseguiam mover-se com bastante liberdade nesses países quase neutros e puderam manter-nos bem ao corrente do maciço deslocamento de forças alemãs para o sudeste por ferrovias ou rodovias. Mas nada disso implicava necessariamente a invasão da Rússia, sendo tudo facilmente explicável pelos interesses e pela política dos alemães na Romênia e na Bulgária, por suas intenções em relação à Grécia e por arranjos feitos com a Iugoslávia e a Hungria. Muito mais difícil era obter informações sobre a imensa movimentação que estava ocorrendo em toda a Alemanha em direção à frente russa, que se estendia da Romênia até o Báltico. A ideia de que a Alemanha, naquele estágio, e antes de resolver o panorama balcânico, iniciasse outra grande guerra, dessa vez com a Rússia, parecia-me boa demais para ser verdade.
Não havia sinal de redução das forças alemãs que se opunham a nós do outro lado do Canal. Os ataques aéreos alemães à Inglaterra continuavam intensos. O modo como a concentração de tropas alemãs na Romênia e na Bulgária foi explicado e aparentemente aceito pelo governo soviético, a comprovação que tínhamos da remessa de grandes e valiosíssimos suprimentos da Rússia para a Alemanha, a evidente comunhão de interesses entre esses dois países no domínio e divisão do Império Britânico no Oriente, tudo isso tornava mais provável que Hitler e Stalin fechassem um bom negócio à nossa custa, em vez de travarem uma guerra entre si. Esse negócio, hoje sabemos, era, dentro de amplos limites, o objetivo de Stalin.
Essas impressões eram partilhadas por nosso comitê conjunto de inteligência. Em 7 de abril, ele informou que circulavam pela Europa informes sobre um plano alemão de atacar a Rússia. Embora a Alemanha, no dizer do comitê, dispusesse de forças consideráveis no Leste e esperasse lutar com a Rússia num ou noutro momento, era improvável que ela optasse por abrir de imediato outra grande frente de guerra. Seu principal objetivo em 1941, segundo o comitê, continuaria a ser a derrota da Inglaterra. Já em 23 de maio, esse comitê, formado pelas três forças armadas, comunicou que se haviam atenuado os boatos de um ataque iminente à Rússia, e que havia informações de que um novo acordo entre os dois países estava prestes a ser firmado.
Nossos chefes de estado-maior estavam à frente de seus informantes. E foram mais explícitos. “Temos sólidos indícios”, advertiram ao Comando do Oriente Médio em 31 de maio, “de que os alemães estão concentrando grandes forças do exército e da força aérea contra a Rússia. Por meio dessa ameaça, é provável que exijam concessões sumamente lesivas para nós. Se os russos as recusarem, os alemães avançarão.”
Somente em 5 de junho foi que o comitê conjunto de inteligência informou que a escala dos preparativos militares alemães no Leste Europeu parecia indicar que estava em jogo alguma questão mais vital do que um acordo econômico. Era possível que a Alemanha desejasse eliminar de sua fronteira oriental a ameaça potencial das forças soviéticas, cada vez mais poderosas. O comitê ainda julgava impossível dizer se isso resultaria numa guerra ou num acordo.
Eu não estava satisfeito com essa forma de avaliação coletiva e preferia examinar as informações pessoalmente. Assim, já no verão de 1940, havia providenciado para que o major Desmond Morton fizesse uma seleção diária de trechos das informações, que eu sempre lia, formando minha própria opinião, às vezes com grande antecipação.
Assim, foi com alívio e excitação que, no fim de março de 1941, li um relatório de inteligência, recebido de uma de nossas fontes mais confiáveis, sobre a movimentação nos dois sentidos de blindados alemães na ferrovia de Bucareste a Cracóvia. Ele mostrava que, tão logo os ministros iugoslavos haviam-se submetido em Viena, três das cinco divisões Panzer que se haviam deslocado para o sul pela Romênia, em direção à Grécia e à Iugoslávia, tinham sido mandadas de volta para Cracóvia, no norte, e, em segundo lugar, que todo esse transporte se invertera depois da revolução de Belgrado, sendo as três divisões Panzer novamente mandadas para a Romênia. Tinha sido impossível esconder de nossos agentes locais essas baldeações e mudanças de direção de cerca de sessenta trens.
Para mim, isso iluminou todo o cenário do leste como um relâmpago. O súbito deslocamento para Cracóvia de tantos blindados necessários na esfera balcânica só podia significar a intenção de Hitler de invadir a Rússia em maio. A partir daí, esse me pareceu, sem sombra de dúvida, constituir seu objetivo principal. O fato de a revolução de Belgrado ter exigido o retorno das divisões para a Romênia talvez implicasse um atraso de maio para junho. Pus-me a imaginar um meio de advertir Stalin e, despertando-o para o perigo, estabelecer com ele contatos semelhantes aos que eu havia instaurado com o presidente Roosevelt. Redigi uma mensagem curta e enigmática, na esperança de que precisamente isso, e mais o fato de se tratar da primeira mensagem que eu lhe enviava desde meu telegrama formal de 25 de junho de 1940, apresentando elogiosamente Sir Stafford Cripps como embaixador, chamasse sua atenção e o levasse a refletir.
Do primeiro-ministro para Sir Stafford Cripps, 3 de abril de 1941
Para M. Stalin, desde que possa ser pessoalmente entregue pelo senhor.
Tenho a informação segura, vinda de um agente de confiança, de que, quando os alemães julgaram ter a Iugoslávia na rede — portanto, depois de 20 de março — começaram a deslocar três das cinco divisões Panzer da Romênia para o sul da Polônia. No momento em que tiveram notícia da revolução sérvia, essa movimentação recebeu contraordem. Vossa Excelência há de apreciar logo a importância desses fatos.
O embaixador inglês não respondeu até 12 de abril, quando disse que, pouco antes de receber meu telegrama, ele mesmo havia remetido a Vyshinsky uma longa carta pessoal, recapitulando a sucessão de falhas do governo soviético em se contrapor às invasões alemãs nos Bálcãs e insistindo vigorosamente que a URSS, no seu próprio interesse, optasse por uma política imediata e vigorosa de cooperação com os países que ainda se opunham ao Eixo naquela área. “Se agora”, disse ele, “eu transmitisse através de Molotov a mensagem do primeiro-ministro, que expressa a mesma tese, sob forma muito mais abreviada e menos enfática, temo que o único efeito consistisse, provavelmente, em enfraquecer a impressão já causada em Vyshinsky por minha carta...”
Fiquei irritado com isso e com a demora ocorrida. Essa foi a única mensagem que enviei diretamente a Stalin antes do ataque. Sua brevidade, o caráter excepcional da comunicação, o fato de ela provir do chefe do governo e de ter que ser entregue pessoalmente ao chefe do governo russo pelo embaixador, tudo isso tencionava dar-lhe um significado especial e chamar a atenção de Stalin. Eventualmente, fiquei sabendo que Sir Stafford a entregou a Vyshinsky em 19 de abril e que Vyshinsky lhe informou por escrito, em 23 de abril, havê-la transmitido a Stalin.
Não tenho como julgar em termos definitivos se minha mensagem, caso fosse entregue com toda a presteza e cerimônia recomendadas, teria alterado o curso dos acontecimentos. Não obstante, ainda lamento que minhas instruções não tenham sido eficientemente cumpridas. Se eu tivesse mantido algum contato direto com Stalin, talvez pudesse ter impedido que ele deixasse uma parcela tão grande de sua força aérea ser destruída no chão.
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Hoje sabemos que a diretiva de Hitler de 18 de dezembro havia marcado 15 de maio como a data de invasão da Rússia, e que, em sua fúria diante da revolução de Belgrado, ela fora protelada por um mês e, posteriormente, adiada para 22 de junho. Até meados de março, a movimentação de tropas ao norte, na principal frente russa, não fora de natureza a exigir medidas especiais de ocultamento pelos alemães. Em 13 de março, entretanto, Berlim expedira ordens de que se encerrasse o trabalho das delegações russas que estavam trabalhando em território alemão e de que elas fossem mandadas para casa. A presença dos russos nessa parte da Alemanha só seria permitida até 25 de março. Durante esse período, as 120 divisões alemãs mais qualificadas reuniram-se em seus três grupos de exército ao longo da frente russa. O Grupo de Exércitos do Sul, sob as ordens de Rundstedt, pelas razões já explicadas, estava muito longe de ter uma posição sólida em matéria de blindados. Não era só que suas divisões Panzer tivessem recentemente retornado da Grécia e da Iugoslávia. Apesar do adiamento do ataque para 22 de junho, elas precisavam muito de descanso e de reparos, depois de seu desgaste mecânico nos Bálcãs.
Em 13 de abril, Schulenburg viajou de Moscou para Berlim. Hitler o recebeu em 28 de abril e brindou seu embaixador com uma longa diatribe contra a Rússia. Schulenburg insistiu no tema que havia dominado todos os seus relatórios. “Estou convencido de que Stalin está disposto a nos fazer concessões ainda maiores. Já houve uma indicação a nossos negociadores econômicos de que (se fizermos a solicitação em tempo hábil) a Rússia poderá fornecer-nos até cinco milhões de toneladas de grãos por ano.”2 Schulenburg retornou a Moscou em 30 de abril, profundamente decepcionado com sua entrevista com Hitler. Teve a clara impressão de que Hitler estava decidido à guerra. Ao que parece, tentou até advertir o embaixador russo em Berlim, Dekanosov, nesse sentido. E lutou persistentemente, nas horas finais, por sua política de entendimento entre a Alemanha e a URSS.
Weizsächer, o funcionário-chefe do Ministério do Exterior alemão, era um servidor sumamente competente, do tipo encontrado nos órgãos governamentais de muitos países. Não era um político com poder executivo e, segundo o costume inglês, não poderia ser responsabilizado pela política do governo. Não obstante, foi condenado a sete anos de prisão com trabalhos forçados por sentença dos tribunais criados pelos vencedores. Embora, por conseguinte, ele seja classificado como criminoso de guerra, é certo que apresentou bons conselhos a seus superiores. Alegra-nos que não tenham aceito. Assim comentou ele essa entrevista:
Posso resumir numa frase minha visão sobre um conflito alemão-soviético. Se cada cidade russa reduzida a cinzas fosse tão valiosa para nós quanto um encouraçado inglês afundado, eu defenderia a guerra alemã-soviética neste verão; mas creio que só sairíamos vencedores na Rússia no sentido militar e que, por outro lado, teríamos a perder no sentido econômico.
Talvez se possa considerar atraente a perspectiva de desferir contra o sistema comunista um golpe mortal, e talvez também se possa dizer que é inerente à lógica das coisas mobilizar o continente eurasiano contra o reinado anglo-saxão e seus seguidores. Mas o único fator decisivo é saber se esse projeto apressará a queda da Inglaterra. (...)
Um ataque alemão à Rússia apenas daria aos ingleses uma nova força moral. Seria interpretado, ali, como uma incerteza alemã quanto ao sucesso de nossa luta contra a Inglaterra. Com isso, não apenas estaríamos admitindo que a guerra ainda duraria muito tempo, como também, dessa maneira, talvez efetivamente a prolongássemos, em vez de abreviá-la.
Em 7 de maio, Schulenburg comunicou, esperançoso, que Stalin havia assumido a presidência do Soviet de Comissários do Povo no lugar de Molotov e, desse modo, tornara-se o chefe de governo da União Soviética: “Estou convencido de que Stalin usará seu novo cargo para participar pessoalmente da manutenção e ampliação de boas relações entre os soviéticos e a Alemanha.”
O adido naval alemão, num memorando enviado de Moscou, expressou o mesmo ponto de vista, com estas palavras: “Stalin é o pivô da colaboração germano-soviética.” Os exemplos do apaziguamento russo em relação à Alemanha aumentaram. Em 3 de maio, a Rússia havia reconhecido oficialmente o governo pró-germânico de Rashid Ali, no Iraque. Em 7 de maio, os representantes diplomáticos da Bélgica e da Noruega foram expulsos da Rússia. Até o embaixador iugoslavo foi despachado. No início de junho, a missão diplomática grega foi banida de Moscou. Como escreveu posteriormente o general Thomas, chefe da seção de economia do Ministério da Guerra alemão, em seu artigo sobre a economia de guerra do Reich, “os russos efetuaram suas entregas até a véspera do ataque e, nos últimos dias, o transporte de borracha do Extremo Oriente foi feito por trens expressos”.
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Não tínhamos informações completas, é claro, sobre os ânimos em Moscou, mas o objetivo alemão parecia simples e compreensível. Em 16 de maio, telegrafei ao general Smuts: “Parece que Hitler se concentra em massa contra a Rússia. Uma movimentação incessante de tropas, forças blindadas e aviões, partindo dos Bálcãs para o norte e da França e da Alemanha para o leste, está em andamento.” Stalin deve ter feito um grande esforço para preservar suas ilusões sobre a política de Hitler. Depois de mais um mês de intenso desdobramento de tropas alemãs, Schulenburg telegrafou ao Ministério do Exterior da Alemanha em 13 de junho:
O comissário do povo Molotov acaba de dar-me o seguinte texto de um comunicado da Tass, que será transmitido hoje à noite e publicado nos jornais de amanhã:
Antes mesmo do retorno do embaixador inglês Cripps para Londres, mas especialmente desde seu retorno, têm-se divulgado rumores sobre uma guerra iminente entre a URSS e a Alemanha na imprensa inglesa e estrangeira. (...)
Apesar do evidente absurdo desses boatos, os círculos responsáveis de Moscou julgaram necessário declarar que constituem uma desastrada manobra de propaganda das forças alinhadas contra a União Soviética e a Alemanha, que estão interessadas na propagação e intensificação da guerra.
Hitler tinha toda razão de estar contente com o sucesso de suas medidas de dissimulação e cobertura e com o estado de ânimo de sua vítima.
O absurdo final de Molotov é digno de registro. Em 22 de junho, à 1h17, Schulenburg tornou a telegrafar ao Ministério das Relações Exteriores alemão:
Molotov chamou-me ao seu gabinete esta noite às 21h30. Depois de mencionar as supostas repetidas violações da fronteira por aviões alemães, (...) Molotov declarou o seguinte:
Havia vários indícios de que o governo alemão estava insatisfeito com o governo soviético. Eram até correntes rumores de uma guerra iminente entre a Alemanha e a União Soviética. O governo soviético não conseguia compreender as razões da insatisfação da Alemanha. (...) Ele apreciaria que eu lhe dissesse o que teria acarretado a presente situação das relações entre a Alemanha e a Rússia soviética.
Retruquei que não podia responder à sua pergunta, já que me faltava a informação pertinente, mas que transmitiria sua comunicação a Berlim.
A hora havia soado. Às quatro horas desse mesmo 22 de junho de 1941, Ribbentrop entregou uma declaração formal de guerra ao embaixador russo em Berlim. Ao raiar do dia, Schulenburg apresentou-se a Molotov no Kremlin. Este ouviu em silêncio a declaração lida pelo embaixador alemão, e em seguida comentou: “É a guerra. Vossos aviões acabaram de bombardear umas dez aldeias desprotegidas. O senhor acha que nós merecíamos isso?”3
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Diante da transmissão da Tass, era inútil insistirmos nas várias advertências feitas por Mr. Eden ao embaixador soviético em Londres, ou num novo esforço pessoal meu de despertar Stalin para o perigo que corria. Informações ainda mais precisas tinham sido constantemente enviadas ao governo soviético pelos Estados Unidos. Nada que qualquer um de nós pudesse fazer conseguia penetrar no obtuso preconceito e nas ideias fixas que Stalin havia erguido entre ele mesmo e a terrível verdade. Embora, segundo as estimativas alemãs, 186 divisões russas estivessem em posição atrás das fronteiras soviéticas, 119 delas diante da frente alemã, os exércitos russos foram, em grande parte, apanhados de surpresa. Os alemães não encontraram nenhum sinal de preparativos ofensivos na zona avançada, e as tropas russas de cobertura foram rapidamente dominadas. Algo parecido com o desastre que se abatera sobre a força aérea polonesa em 1° de setembro de 1939 ia se repetir, em escala muito maior, nos aeródromos russos: muitas centenas de aviões foram surpreendidos de madrugada e destruídos antes que conseguissem decolar. Assim, o frenesi de ódio à Inglaterra e aos Estados Unidos, que a máquina de propaganda soviética pusera no ar à meia-noite, foi abafado, ao amanhecer, pelo canhoneio alemão. Os perversos nem sempre são espertos, e os ditadores nem sempre têm razão.
É impossível concluir este relato sem fazer referência a uma terrível decisão política adotada por Hitler em relação aos seus novos inimigos, e posta em prática sob toda a pressão da luta mortal, em vastas áreas de terra estéril ou arruinada e em meio aos horrores do inverno. Numa conferência em 14 de junho de 1941, ele deu ordens verbais que regeram, em larga medida, a conduta do exército alemão para com as tropas e o povo russos, e que levaram a muitos atos bárbaros e implacáveis. Segundo os documentos de Nuremberg, o general Halder declarou:
Antes do ataque à Rússia, o Führer convocou uma conferência de todos os comandantes e pessoal ligado ao Supremo Comando sobre a questão do próximo ataque à Rússia. Não me lembro da data exata dessa conferência. (...) Na conferência, o Führer declarou que os métodos usados na guerra contra os russos teriam que ser diferentes dos usados contra o Ocidente. (...) Ele disse que a luta entre a Rússia e a Alemanha era uma luta russa. Declarou que, não sendo os russos signatários da Convenção de Haia, o tratamento de seus prisioneiros de guerra não teria que seguir as disposições da Convenção. (...) Disse [também] que os chamados “Comissários” não deveriam ser considerados prisioneiros de guerra.4
E, segundo Keitel:
O tema principal de Hitler foi que aquela era a batalha decisiva entre as duas ideologias, e que esse fato tornava impossível usarmos nessa guerra [com a Rússia] métodos como os que nós, militares, conhecíamos, e que eram considerados os únicos métodos corretos nos termos da lei internacional.5
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Na noite de sexta-feira, 20 de junho, rumei para Chequers sozinho. Eu sabia que o ataque alemão à Rússia era uma questão de dias ou, talvez, de horas. Havia tomado providências para fazer um pronunciamento pelo rádio na noite de sábado, abordando esse acontecimento. Naturalmente, teria que ser em termos cautelosos. Além disso, naquele momento, o governo soviético, ao mesmo tempo altivo e obtuso, encarava todas as advertências que fazíamos como uma mera tentativa de homens derrotados de arrastar outros para a desgraça. Em decorrência de minhas reflexões no carro, adiei o pronunciamento para a noite de domingo, quando achei que tudo estaria esclarecido. Assim, o sábado transcorreu em sua faina habitual.
Quando acordei na manhã de domingo, dia 22, deram-me a notícia da invasão da Rússia por Hitler. Isso mudava a convicção em certeza. Eu não tinha a menor dúvida de onde estavam nosso dever e nossa política. Nem tampouco sobre o que dizer. Restava apenas a tarefa de compor o texto. Pedi que se noticiasse imediatamente que eu faria um pronunciamento às 21 horas. Pouco depois, o general Dill, que viera às pressas de Londres, entrou em meu quarto com notícias detalhadas. Os alemães tinham invadido a Rússia numa frente imensa, haviam surpreendido grande parte da força aérea soviética pousada nos aeródromos e pareciam estar avançando com grande rapidez e violência. O CIGS acrescentou: “Acho que eles serão aprisionados como num curral, em hordas.”
Passei o dia compondo meu discurso. Não havia tempo para consultar o Gabinete de Guerra, nem isso era necessário. Eu sabia que todos sentíamos o mesmo sobre essa questão. Mr. Eden, Lord Beaverbrook e Sir Stafford Cripps — que deixara Moscou no dia 10 — também estiveram comigo durante o dia. No discurso pelo rádio, eu disse:
“O regime nazi é indistinguível dos piores aspectos do comunismo. É desprovido de qualquer tema ou princípio além da ganância e da dominação racial. Supera todas as formas de maldade humana na eficiência de sua crueldade e em sua agressão feroz. Ninguém tem sido um opositor do comunismo mais consistente do que eu, nos últimos 25 anos. Não desdigo uma só palavra que proferi a respeito dele. Mas tudo isso se extingue diante do espetáculo que agora começa. O passado, com seus crimes, loucuras e tragédias, some num lampejo. Vejo os soldados russos à porta da pátria, guardando os campos que os pais araram desde tempos imemoriais. Vejo-os na guarda de suas casas, onde mães e esposas rezam — ah! sim, pois há hora em que todos rezam — pela segurança de seus amados, pelo retorno daquele que garante o sustento, de seu defensor, seu protetor. Vejo as dez mil aldeias da Rússia, onde os meios de existência são arduamente arrancados do solo, mas onde ainda há alegrias humanas primordiais, onde as moças riem e as crianças brincam. Vejo, avançando sobre tudo isso em horrenda investida, a máquina de guerra nazi, com seus oficiais prussianos vociferantes, pedantes, batendo os calcanhares, e com seus matreiros agentes especiais, recém-saídos da intimidação e manietação de uma dúzia de países. Vejo também as massas insensíveis, adestradas, submissas e embrutecidas da soldadesca bárbara dos hunos, avançando lentamente qual massa de gafanhotos a se arrastar. Vejo os bombardeiros e caças alemães no céu, ainda doloridos de muitas chicotadas inglesas, encantados por acharem o que lhes parece ser uma presa mais fácil e mais segura.
“Por trás de todo esse aparato ofuscante, por trás de toda essa tempestade, vejo aquele grupelho de vilões que planejam, preparam e despejam essa catadupa de horrores sobre a humanidade. (...)
“Tenho que declarar a decisão do governo de Sua Majestade — e estou certo de que é uma decisão a que os grandes Domínios darão seu concurso no devido tempo —, pois devemos falar agora, de imediato, sem um dia de espera. Cabe-me fazer a declaração, mas acaso alguém duvida de qual será nossa política? Temos apenas um objetivo e um único e irrevogável propósito. Estamos determinados a destruir Hitler e qualquer vestígio do regime nazi. Disso, nada nos desviará — nada. Jamais conversaremos, jamais negociaremos com Hitler ou com qualquer um de sua quadrilha. Vamos combatê-lo no chão, vamos combatê-lo no mar, vamos combatê-lo no ar, até que, com a ajuda de Deus, tenhamos livrado a Terra de sua sombra e libertado os povos de seu jugo. Qualquer homem ou nação que esteja em luta contra o domínio dos nazis terá nossa ajuda. Qualquer homem ou nação que marcha com Hitler é nosso inimigo. (...) É essa a nossa política e é essa a nossa declaração. Portanto, daremos toda a ajuda que pudermos à Rússia e ao povo russo. Apelaremos a todos os nossos amigos e aliados em todas as partes do mundo, para que adotem a mesma orientação e a sigam, como seguiremos nós, fiel e firmemente, até o fim. (...)
“Esta não é uma guerra de classes, é uma guerra em que todo o Império Britânico e a Commonwealth Britânica de Nações estão empenhados, sem distinção de raça, credo ou partido. Não cabe a mim falar da ação dos Estados Unidos, mas isto eu afirmo: se Hitler imagina que seu ataque à Rússia soviética provocará a menor divergência de objetivos ou a menor redução do empenho das grandes democracias que estão decididas por sua condenação, ele está deploravelmente enganado. Ao contrário, seremos reforçados e estimulados no empenho em resgatar a humanidade de sua tirania. Ficaremos mais fortes, e não mais fracos, na determinação e nos recursos.
“Não é momento de discursos moralistas sobre os desatinos dos países e governos que se permitiram ser derrubados um a um, quando, através da ação conjunta, poderiam ter poupado a si mesmos e ao mundo dessa catástrofe. Mas, quando me referi, minutos atrás, à sede de sangue e aos apetites odiosos de Hitler, que o impeliram ou o atraíram para sua aventura russa, afirmei que havia uma motivação mais profunda por trás desse ultraje. Ele quer destruir o poderio russo porque tem a esperança, se lograr êxito nisso, de poder trazer de volta do leste a força principal de seu exército e sua força aérea e lançá-los sobre esta Ilha, que ele sabe que terá de vencer, ou então sofrer o castigo por seus crimes. Sua invasão da Rússia não passa de um prelúdio à tentativa de invasão das Ilhas Inglesas. Ele espera, sem dúvida, que tudo isso possa consumar-se antes da chegada do inverno, e que consiga subjugar a Grã-Bretanha antes que a esquadra e o poderio aéreo dos Estados Unidos possam intervir. Espera poder repetir novamente, em escala maior do que nunca, o processo de destruição de seus inimigos um por um, no qual tem vicejado e prosperado por tanto tempo, e espera que, depois disso, o cenário fique livre para o último ato, sem o qual todas as suas conquistas seriam inúteis — a subjugação do Hemisfério Ocidental a sua vontade e seu sistema.
“O perigo russo é, pois, o nosso perigo e o perigo dos Estados Unidos, assim como a causa de qualquer russo que se bate por sua família e seu lar é a causa dos homens livres e dos povos livres em todas as partes do globo. Aprendamos a lição já ensinada por tão cruel experiência. Redobremos nosso esforço e ataquemos com a força da união, enquanto nos restarem vida e poder.”
1 Definição do Oxford English Dictionary.
2 Nazi-Soviet Relations, 1939-1941, publicado em 1948 pelo Departamento de Estado, Washington, p. 332.
3 Esse foi o último ato da carreira diplomática do conde Schulenburg. No final de 1943, seu nome aparece nos círculos secretos de conspiração contra Hitler, na Alemanha, como possível ministro do Exterior de um governo sucessor do regime nazi, em vista de sua qualificação especial para negociar uma paz em separado com Stalin. Ele foi preso pelos nazis após o atentado contra Hitler, em julho de 1944, e encarcerado nas celas da Gestapo. Em 10 de novembro, foi executado.
4 Nuremberg Documents, parte VI, p. 310 e seg.
5 Ibid., parte XI, p. 16.