CAPÍTULO 35
Vamos nos mudar hoje – acho que querem colocar mamãe e eu num lugar melhor. Mas será que isso significa liberdade para nós? Eles me ouvem falar e, para mim, parecem muito idiotas. Será que é tão raro que alguém saiba falar mais de duas línguas? Eles são muito burros! Papai estava enganado a respeito deles e de sua inteligência. Essa gente sequer é esperta – é apenas gananciosa, eu acho. Talvez até aqui haja algumas pessoas boas. Onde elas estão?
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Logo após voltarmos para Kassel, mamãe e eu tivemos uma boa e verdadeira mudança: os alemães nos transferiram para trabalhar em um hospital que havia sido construído para os prisioneiros de guerra e para as pessoas dos campos de trabalho forçado.
O trabalho no hospital – Essa mudança se mostrou muito feliz para Anna e Nonna. Yevgeny tinha acertado ao dar a Nonna a capacidade de falar fluentemente o alemão e outras línguas.
O hospital era para todas as nacionalidades. Ele fora construído em forma de barracões e ficava junto ao hospital católico em Marienkrankenhaus, na Alemanha. Quando chegamos ao hospital, duas freiras católicas saíram para nos receber e o padre também veio. Eram tão amigáveis e tão gentis que mamãe e eu ficamos meio espantadas! As freiras nos dirigiram até o quinto andar do hospital católico e designaram um quarto para morarmos. O quarto era muito bonito e limpo, com duas camas: mamãe e eu simplesmente não conseguíamos acreditar que éramos tão sortudas e que não seríamos obrigadas a morar nos barracões de um campo de trabalho forçado cercadas por arame farpado! As freiras também nos disseram que podíamos fazer nossas refeições no hospital – mamãe e eu ficamos muito felizes. Enfim, nosso momento de alegria tinha chegado. Decidimos que daríamos o melhor de nós no trabalho para fazer jus à sua bondade.
“Momento de alegria” – O hospital católico deve ter soado como paraíso para Nonna e Anna. Elas vinham dormindo em tábuas sem colchão nos campos e ali tinham camas de verdade que eram limpas. Também gostavam da comida boa e saudável, em vez do pão velho e da sopa de repolho aguada com gosto de ferrugem. Embora ainda fossem tecnicamente prisioneiras, as freiras e padres as tratavam como colegas de trabalho estimadas.
O hospital era administrado por uma ordem católica, composta por freiras e padres, e era considerado um dos melhores da Alemanha. Os prisioneiros de guerra franceses tinham construído um abrigo atrás do hospital principal, para ser usado durante a guerra. O abrigo tinha quatro andares no subsolo e dois andares acima do solo. Não havia elevadores dentro do abrigo, por isso todos eram obrigados a usar as escadas para subir e descer – o que era muito inconveniente quando se tinha que transferir pacientes de lugar.
Mamãe assumiu suas funções nas alas regulares do hospital de prisioneiros, que tinha sido construído atrás da área do abrigo, e podia voltar ao hospital principal quando não estava trabalhando. Comecei minhas funções no escritório de admissão do hospital de prisioneiros, e a irmã Pia, que gostou de mim, me ensinou a datilografar em uma máquina de escrever.
Eu era jovem e ávida para aprender qualquer coisa que aparecesse, mas a principal coisa que estava fazendo era traduzir e ajudar com as comunicações entre as enfermeiras e os pacientes. Havia pessoas de todas as nacionalidades feitas prisioneiras e detidas em campos de prisão regulares, mas, quando ficavam doentes, eram mandadas para esse hospital para se tratarem. Havia até alguns soldados americanos que vinham ao hospital para se tratar, mas, nessa época, eu não era fluente na língua inglesa. Mamãe e eu ficamos muito felizes por tanta boa sorte ter aparecido e fomos tratadas como família pelos padres e freiras.
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Gosto desse lugar chamado Marienkrankenhaus. As freiras são muito gentis e gosto do trabalho de interpretar para o dr. Hoffman. Ele é um bom homem. Eu gostaria de ser uma médica e trabalhar nas salas de operação. Fico imaginando se papai iria gostar – eu como médica. Talvez eu me torne uma enfermeira.
Schwester Pia está me ensinando a trabalhar no escritório de admissão e a datilografar. Gosto muito dela: tem muita paciência comigo, assim como irmã (Schwester) Longa e irmã Mauricia.
Hoje passei um tempo com irmã Mauricia no laboratório. Agora, toda noite, fico estudando na biblioteca. Aplicaram uma prova para mim hoje, e Herr Dr. Hoffman (gosto dele) acha que estou pronta para completar minha educação de ensino médio em breve – eu também acho. O que aprendi foi “lixo” básico. É bom o bastante para Lena – mas não para mim.
Lena – Aqui ela provavelmente está se referindo a si mesma como “Lena”. As freiras deram a Nonna o nome alemão Lena Schulz para esconder sua identidade.
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Alguns médicos, incluindo o chefe de equipe do hospital dos prisioneiros, eram antigos imigrantes da Rússia e da Polônia. Embora mamãe não falasse alemão, ela conseguia se comunicar com esses médicos, pois falava tanto o russo como o polonês, e parecia estar muito feliz. Porém, um dos velhos médicos russos começou a dar em cima de mamãe. Ela tentou de tudo para desencorajá-lo. Ele era muito mais velho que ela, que, na época, estava com 37 anos e era uma mulher linda. Seu nome era dr. Schevchenko. Ele estava insistindo em ir atrás de mamãe e ficava seguindo-a, tentando agarrá-la – chegou até a pedir para mamãe ter um caso com ele. Era a última coisa em que mamãe estava pensando dadas as circunstâncias.
Um dia, ele estava andando atrás de mamãe, fazendo mais comentários, e tentou pegar seu traseiro; quando o fez, mamãe se virou e lhe um tapa bem forte. Obviamente, ele ficou muito bravo e xingou muito mamãe; depois desapareceu. Um outro médico disse a mamãe que o dr. Schevchenko estava muito bravo com ela; disse para ficar longe dele – que poderia lhe causar muitos problemas. Isso a preocupou, mas ela era uma mulher destemida e, de certa forma, ousada em algumas coisas que fazia.
Contei a história sobre o velho dr. Schevchenko para Schwester Blonda e seus avanços sobre mamãe e disse que ela não queria se envolver com ele. Também lhe disse o que o outro médico havia alertado. A Oberschwester (Madre Superior), irmã Blonda, disse a mamãe que ia transferi-la do hospital de prisioneiros para o hospital alemão principal para afastá-la do dr. Schevchenko. Mamãe foi transferida para trabalhar no hospital principal na ala contagiosa, onde as pessoas com doenças infecciosas eram tratadas. Continuei trabalhando no escritório de admissão do hospital de prisioneiros e também passava um tempo trabalhando no escritório do hospital alemão. Mamãe e eu continuamos morando em nosso quarto no quinto andar, mas estávamos preocupadas com o que tinha acontecido. As freiras também começaram a se preocupar com o fato de mamãe trazer germes de doenças infecciosas e me expor, por isso decidiram transferi-la para tarefas comuns no hospital principal.
“As freiras também começaram a se preocupar” – As freiras aparentemente não se preocupavam se Anna ia contrair os germes na ala de doenças infecciosas, mas estavam preocupadas com Nonna. Talvez fosse por causa de seu estado de saúde fraco ou, possivelmente, sua consideração pela aptidão de Nonna para línguas e seus serviços.
As freiras eram como anjos enviados do céu para salvar mamãe e eu das coisas terríveis por que passamos. Estávamos felizes, embora sempre houvesse a nuvem da incerteza (talvez até medo) que parecia ocupar nossos pensamentos. Mamãe sempre tentava manter um sorriso e me garantir que tudo ia ficar bem, que a guerra logo terminaria e ela e eu poderíamos viver nossas vidas e realizar alguns dos sonhos que papai tinha compartilhado conosco. Porém, sentíamos muita segurança com as freiras e padres católicos cuidando de nós e nos protegendo do terror implacável que os nazistas haviam infligido contra tantas pessoas inocentes.
“Anjos enviados do céu” – Nonna acreditava que as freiras católicas de Marienkrankenhaus realmente salvaram a vida dela. Posteriormente, deu crédito a elas por escondê-la de seus inimigos e protegê-la do perigo.
Nonna não reconhece especificamente a quantidade generosa de liberdade que ela e mamãe tinham em Marienkrankenhaus – muito embora fossem prisioneiras lá. Porém, um fotógrafo do Schloss (castelo) do Kaiser Wilhelm em Kassel, na Alemanha, e sua legenda mostram que as duas mulheres devem ter aproveitado muito tempo livre graças à bondade das freiras, embora estivessem oficialmente encarceradas pelo governo nazista no hospital católico. A legenda diz: “Schloss do Kaiser Wilhelm. Mamãe e eu visitávamos com frequência enquanto trabalhávamos em Marienkrankenhaus”.
Uma segunda foto mostra parte da região do castelo: um vale tranquilo, enfeitado com um gazebo branco e um laguinho. Abaixo da foto, Nonna escreveu: “Meu pequeno gazebo! Aqui é onde eu ia e passava muitas horas lendo livros, escrevendo no meu diários e simplesmente pensando! Isso ficava atrás do castelo (visto ao fundo). Observava os cisnes nadando no lago”.
Amanhã é o casamento do dr. Hoffman. Ele e Hilga finalmente vão se casar! Talvez eu devesse ter nascido dez anos antes! Só um dos meus pensamentos idiotas! Gosto muito dos dois. Hilga tem sido uma boa amiga e tenho aprendido muito com o dr. Hoffman – até mesmo a suturar ferimentos. O casamento vai acontecer na capela do hospital (que triste ser celebrado de um jeito tão modesto). Mamãe vai tocar o órgão e a dra. Ingrid Nubel vai cantar. O padre Antonius vai fazer a “coisa dele” – ele é tão gordo e engraçado! Fico imaginando: se Hilga tiver filhos, que aparência vão ter? O dr. Hoffman é muito alto e tem cabelo preto, e Hilga é muito baixa e tem cabelo vermelho-fogo. Se tiverem uma menina, talvez seja alta e ruiva. Espero que eu não fique pensando nisso durante a cerimônia. Talvez eu ria e cause problemas com os padrinhos!
Dia do casamento: Liebes Gott! Odeio esse vestido que a irmã Blonda quer que eu use – é feio e apertado. A única coisa boa é que é azul. Talvez eu me esconda atrás da irmã Maria (ha ha) quando tirarem fotos. Vou ficar contente ao tirar esse vestido. Por que querem que eu fique parecida com eles – quando não sou? Elas (as irmãs) não me deixam usar o cabelo amarrado com uma fita – essas tranças, como as odeio! Pareço uma moça alemã que acabou de chegar dos Sudetos e estou aguardando para me tornar uma freira (ha ha) – é melhor eu simplesmente rir de tudo isso. Se um dia conseguir sair deste lugar, vou cortar meu cabelo curto. Espero que seja logo. Bom, estou muito feliz por Hilga e pelo dr. Hoffman e vou sentir falta deles pelas próximas duas semanas.