O TERMÓMETRO DE MERCÚRIO 

 

 

 

 

 

Gostaria de vos falar de Nishino.  

Era um tipo estranho, diferente de quantos conhecera ou viria a conhecer. Na altura, pensava que existiam mais como ele, porém, enganava-me. Nishino afirmava que eu lhe trazia muitas recordações, mas agora sou eu que o relembro com melancolia. Por onde andará e o que fará? Continuará vivo? Calculo que não, mas a sua presença permanece no meu coração, por isso tanto me faz que esteja vivo ou morto.  

Yukihiko Nishino. Nesse tempo, tinha dezoito anos. Não carregava às costas crimes nem conquistas, tão-pouco possuía qualquer talento especial. O seu passatempo consistia em descobrir condutas de esgoto abandonadas.  

 

 

− És a Nozomi Misono, certo?  

Foram as primeiras palavras que Nishino me dirigiu. 

A sua voz chegou-me vinda de cima e abri ligeiramente os olhos. As aulas do terceiro tempo tinham ficado sem efeito e estava deitada na relva do pátio traseiro da universidade, sozinha, à sombra dos arbustos de jasmim. Era a estação do ano em que se cobriam de pequenas flores amarelo-claras. Dir-se-ia que bastava uma pessoa sentar-se junto delas para se deixar inebriar pela sua agradável fragrância.  

− Sim, sou eu... E tu, quem és? − perguntei, endireitando-me. 

− Yukihiko Nishino. Ando no primeiro ano de economia. 

− Estou a ver – disse eu, olhando fixamente para ele. Tinha cabelo acastanhado, curto e todo liso. Vestia calças de ganga e uma T-shirt branca por baixo de uma camisa também de ganga azul, aberta até ao terceiro botão.  

Não me dizia nada. Conhecia dois rapazes da faculdade de economia, ambos estudantes do terceiro ano, como eu.  

− Não tenho intenções duvidosas, se é o que estás a pensar − disse, abrindo muito os olhos. 

− Não é duvidoso dizeres isso? − perguntei, a rir. 

Nishino também se riu. 

− Andámos no mesmo liceu. 

Ah, pensei para comigo. No secundário, fui presidente da associação de estudantes. À data, era raro uma rapariga ser presidente. Tinham passado três anos, mas, no caminho para casa, ainda havia colegas (tanto conhecidos como desconhecidos) que, ao cruzarem-se comigo, vinham cumprimentar-me.  

− E daí? 

Embora fosse uma espécie de «celebridade» na minha terra, ao matricular-me na universidade em Tóquio passara a ser uma estudante igual às outras. Concorrera às eleições por pura curiosidade: provar a mim mesma que era capaz de dirigir a associação de estudantes. Vendo bem, acabei por ganhar com uma margem de votos sem precedentes. Vivíamos numa época onde ser mulher carregava ainda um certo peso, e a vitória granjeara-me enorme popularidade.  

Ao entrar na universidade libertei-me finalmente de uma sensação incómoda. Com esse objetivo em vista, escolhi uma universidade de dimensão média, da qual poucas pessoas na minha cidade tinham ouvido falar. Logrei alcançar os meus propósitos. Até ao momento, não me tinha cruzado com nenhum antigo colega dos tempos do secundário. 

− Sei que esta pergunta pode parecer impertinente, Misono, mas é verdade que vais para a cama com qualquer um? 

Os olhos de Nishino arregalaram-se ao perguntar-me isto. Nessa altura, desconhecia que Nishino tinha um tique: abria desmesuradamente os olhos quando o assunto era sério, sem que houvesse nada de frívolo na sua atitude.  

− A tua mãe não te ensinou que é má educação fazer perguntas do género, quanto mais olhares para alguém dessa maneira? − retorqui, acertando-lhe no queixo com a lombada dura do meu livro de exercícios de termodinâmica. 

Nishino soltou um pequeno grito e agachou-se. Os arbustos de jasmim agitaram-se, deixando cair algumas flores. Levantei-me com toda a calma, sacudi a relva da roupa e afastei-me sem olhar para trás.  

 

 

Só voltei a ver Nishino no mês seguinte. Caminhava ao lado de uma rapariga na direção da faculdade de letras. Não deve ser estudante universitária, pensei.  

Digo isto porque a rapariga era bonita. Havia raparigas bonitas no campus, bem entendido, mas eram todas medianamente bonitas, da mesma forma que a nossa universidade era «mediana».  

Ora, a acompanhante de Nishino nada tinha de «mediano». Impunha-se pela beleza fora de série.  

Tive a certeza de que aquela rapariga sabia valer-se bem da sua beleza para obter o que queria. Por outras palavras, tinha perfeita consciência de ser uma beldade. 

Nishino acenou-me com a mão. 

Acenei-lhe de volta. Não tinha por hábito fazer amizade com tipos que faziam perguntas impróprias, mas intrigava-me o talento óbvio que lhe permitia aparecer numa universidade que não era a dele com alguém daquele calibre.  

A jovem cumprimentou-me com um aceno de cabeça. 

− Olá. 

Ao seu lado, Nishino era a imagem da descontração. Pareciam um daqueles casais que estavam juntos há uma eternidade.  

− É a tua namorada? – quis eu saber. 

− Sim − admitiu Nishino. − Esta é a minha adorada Kanoko.  

− Não me chames isso – pediu ela, num tom irónico que traduzia uma pontinha de arrependimento, lançando-me um sorriso com a dose certa de cortesia. 

Isto foi um erro, pensei. Devia ter seguido o meu caminho e fingido que não o conhecia de parte nenhuma.  

− Chamo-me Misono − disse. − Até à próxima.  

Rodei nos calcanhares e fiz menção de me afastar. Nishino manteve-se imperturbável. 

− Oh − disse a «adorada» Kanoko.  

Observei a cena pelo canto do olho, para não ter de me virar.  

A «adorada» Kanoko estava perplexa. Inesperadamente, dera-se conta de que eu não queria passar mais um segundo na presença dos dois. Mais espantoso ainda era o facto de parecer sentir-se mal com isso, como se tivesse culpas no cartório.  

Apanhada em contrapé e impedida de sair de cena com dignidade, fiquei sem saber o que fazer. 

− Muito gosto em conhecer-te − continuou Kanoko-chan, após uma breve hesitação. 

− Faço minhas as tuas palavras − respondi, com as costas meio viradas. 

A adorada Kanoko pareceu apaziguada ao ouvir o meu tom de voz. 

Por vezes, interrogava-me sobre o que os homens pensavam das subtilezas destas «lutas de poder psicológicas», lembrando as relações diplomáticas entre dois países. A maioria nem se dava conta, provavelmente. Na verdade, nem sequer imaginavam que tal coisa existiria. 

Prova disso era a postura impávida de Nishino, que se limitou a sorrir.  

Desta vez, consegui dar uma volta completa, deixando-os para trás. 

− Vamos? − perguntou Nishino. A adorada Kanoko não respondeu, mas ouvi o som dos seus passos e concluí que se afastavam. 

Dirigi-me rapidamente para o edifício da faculdade de ciências, no extremo oposto da cidade universitária.  

 

 

Durante muito tempo, não tornei a cruzar-me com Nishino. Se não voltasse a acontecer, era provável que não pensasse mais nele.  

Mas havia a questão das condutas de esgoto de betão, e foi por causa disso que voltei a encontrá-lo.  

A semana tinha sido agitada. Na segunda-feira, estive com Minakawa. Terça, passei a tarde com Suzuki, a noite com Kaneko, e, quando regressei a casa, já passava da meia-noite, recebi a visita de Munakata. Quarta e quinta fiquei presa no laboratório até tarde, por isso não estive com ninguém, mas na sexta e no sábado fiquei em casa de Nakajima. 

Escusado será dizer que andava a dormir com todos eles.  

Não sei se a circunstância de ter tido relações sexuais com cinco rapazes numa semana constituí uma aberração ou se é mais vulgar do que parece. Em todo o caso, a resposta à pergunta de Nishino − se fazia sexo com qualquer um − era não.  

Não dormia com o primeiro que me aparecesse à frente. Nunca fui para a cama com um homem que não achasse interessante. Quando fazia sexo, a experiência era sempre motivada pela curiosidade. Exatamente como quando apresentara a minha candidatura à presidência da associação de estudantes.  

Foi assim que, naquela semana em concreto, acabei por partilhar a intimidade com cinco tipos diferentes. O que me agrada na ideia de ter sexo é desfrutar desses momentos íntimos. O dito rapaz familiariza-se, começa a expressar algum afeto, baixa as defesas e a personalidade simplifica-se. Com sorte, apaixona-se por mim.  

Passei o domingo sozinha. Considerava os domingos o meu dia de descanso. Tratava da roupa, fazia limpezas, cozinhava e via televisão − basebol, uma maratona ou, se estivesse a decorrer o campeonato de sumo, assistia aos combates. A minha curiosidade não tinha limites, mas passar vinte e quatro horas acompanhada cansa qualquer comum mortal.  

Quando a noite caiu, fui dar uma volta pelo parque do bairro. Era um espaço a perder de vista, com uma extensa área arborizada e uma zona de jogos para crianças, no qual a vegetação crescia ao deus-dará.  

Costumo ir para essa zona de campo aberto. Deixo-me ficar entre as ervas que me fazem comichão nos tornozelos e observo os baloiços e o escorrega. Não encontro vivalma àquela hora. Os baloiços oscilam ao sabor do vento. Oiço o chiar das correntes. A meus pés, as ervas sussurram. 

Volta e meia, sentava-me no interior de uma conduta de esgoto. Viam-se vários cilindros de betão abandonados numa zona onde as ervas eram especialmente densas. Cada um tinha pelo menos um metro de diâmetro. Aposto que entrar numa coisa destas deve ser a sensação mais relaxante do mundo, pensei da primeira vez que vi os cilindros de betão, e apressei-me a enfiar-me dentro de um. Sei que estou a repetir-me, mas gosto de alimentar a minha curiosidade.  

Naquele domingo, sentada num dos cilindros de betão, com as costas apoiadas na curvatura, pus-me a folhear um álbum de fotografias a preto-e-branco que levara comigo. A página em questão mostrava a imagem de uma praia com dezenas de gatos. O contraste entre os tons claros e escuros era maior, tornando mais fácil de ver na penumbra. 

A dada altura, devo ter adormecido.  

− És tu, Misono? 

A voz sobressaltou-me. Levantei-me de repente e bati com a cabeça contra a parede do cilindro. 

− Gaita! – gritei de dor. 

− Oh, desculpa − disse a voz. − Embora essa pancada nos deixe quites. 

Massajei a cabeça e olhei na direção da abertura onde o dono da voz, agachado, se preparava para entrar. Não distingui o rosto dele em contraluz, mas já fazia ideia de quem se tratava.  

O meu interlocutor, com aquele tom de voz cuidado e monocórdico, só podia ser Nishino.  

* * * 

− Isto aqui dentro é agradável, não achas? − perguntou Nishino. 

O Sol pusera-se quase por completo. No escuro, os meus olhos distinguiam a sua silhueta, mas no caso dele, que acabara de entrar, o mais provável era não ver um palmo à frente do nariz. Avançou às apalpadelas e sentou-se ao meu lado.  

− Também sou fã destas coisas. Passo muitos domingos à caça de sítios como este − declarou Nishino. 

− Estás a dizer que tens um fascínio por condutas de esgoto? − perguntei, apanhada de surpresa. – Decididamente, és um tipo estranho.  

Como estávamos lado a lado, o calor do corpo dele propagava-se ao meu. Apesar de estarmos enfiados no interior do cilindro, a experiência não deixava de ser tranquilizadora. Como se estivesse sozinha. Não tinha a impressão de estar na companhia de um estranho. Mal comparado, era um nadinha como fazer amor.  

− Desculpa aquilo no outro dia − disse Nishino, fitando-me. Os olhos pareciam ter-se habituado à escuridão. Os seus dedos afloraram a minha franja. 

− Desculpa o quê? 

− A pergunta estranha que te fiz. 

− Estranho foi tu, que não me conheces de lado nenhum, julgares que sabias alguma coisa acerca da minha vida sexual.  

− Foi o Minakawa que me contou. 

− A sério? − Minakawa era o tipo com quem fora para a cama na segunda-feira. Ou teria sido na terça? Não me lembrava, mas sabia que era um dos dois colegas do curso de economia. Sempre suspeitara que falava demais, e ali tinha a confirmação.  

− Seja como for, o que te passou pela cabeça para me perguntares isso diretamente? – quis eu saber, após um breve silêncio. 

Nishino abriu desmesuradamente os olhos. Tinha a mesmíssima expressão que da outra vez.  

− Queria saber. 

− Saber o quê? 

− Como podes amar alguém? 

− Desculpa? 

De todas as perguntas que podia ouvir numa conduta de esgoto, Nishino lançara-me porventura a mais transcendental de todas. Quem era aquele tipo?  

Apanhada de surpresa, desatei aos soluços. O ataque de soluços prolongou-se, por vezes violento, outras de tantos em tantos segundos, como um géiser. 

− Não consegues parar − disse Nishino a rir. 

− Não, não consigo. 

− Queres que trate do assunto? 

Posto isto, pegou-me no queixo e enfiou-me a língua pela boca dentro num beijo prolongado.  

Nos segundos que se seguiram, explorou tudo o que lhe deu na gana. 

− Não pararam, pois não? − exclamei, mal ele largou o meu rosto. 

Nishino encheu as bochechas como um sapo e bufou, frustrado.  

− Não sou tão bom como pensava. Nem sequer consigo acabar com um único soluço. − O tom de voz era terrivelmente triste. Pensei que estava a brincar, mas disse aquilo com uma seriedade desconcertante.  

− Tu não existes − retorqui, rindo-me, e dei-lhe uma palmadinha na cara. Naquele preciso instante, compreendi que a minha curiosidade por aquele rapaz não conhecia limites. 

− Queres ir até minha casa? − perguntei de chofre. 

− Pode ser. 

Rastejámos para fora do cilindro. A céu aberto, percebemos que anoitecera. A dado momento, os soluços pararam sem que eu desse por isso.  

 

 

Nesse dia, não fizemos sexo. 

Preparei-lhe o jantar. Ovos com presunto e batatas que cozera no dia anterior. Servi igualmente sopa de miso com tofu. Talvez tenha evitado ter relações sexuais inconscientemente. Afinal, domingo era o meu dia de descanso. 

Em vez disso, tive direito a ouvir a história da vida dele. 

− Sei que é pouco comum ter este tipo de conversa com alguém que acabei de conhecer − começou Nishino por dizer. 

− Não acabámos de nos conhecer − ripostei. Nishino abriu muito os olhos e concordou comigo. 

− De acordo, Misono, mas pouco ou nada sabes sobre mim. Só que... − Nishino não terminou a frase e limitou-se a inclinar a cabeça. 

Que gajo mais estranho, pensei. Havia qualquer coisa nele que me intrigava, algo que não batia certo.  

− Só que, para mim, é como se te conhecesse há anos − prosseguiu Nishino, com grande calma. − Como se fôssemos íntimos. 

− Desculpa? Podemos ter partilhado um momento único naquela conduta de esgoto, mas por que carga de água sentes necessidade de te fechares no teu próprio mundo?  

− Tens razão − desculpou-se Nishino. – Acontece que despertas em mim muitas recordações, Misono. Não quer dizer que essas recordações estejam diretamente relacionadas contigo, claro, e tens razão quando afirmas que estou a exagerar, mas... 

Após aquele «mas», Nishino contou-me a saga de que aqui darei conta em versão resumida.  

 

 

Nishino tinha uma irmã doze anos mais velha. 

A irmã casou-se quando ele andava ainda na escola primária. Anos mais tarde, deu à luz uma menina. 

Passados seis meses, o bebé morreu, subitamente, de uma doença cardíaca congénita.  

Após a morte do bebé, a saúde da irmã foi-se abaixo. 

O casamento, que nunca fora feliz, desmoronou-se, e ela regressou a casa dos pais. 

Três anos depois, no verão que sucedeu à primavera em que Nishino entrou para o secundário, suicidou-se.  

Desde aí, Nishino passou a viver consumido pela culpa, interrogando-se sobre o que poderia ter feito para a salvar. Foi então que começou a suspeitar que, a certa altura, se apaixonara pela irmã. 

Ora, dava-se o caso de eu, Nozomi Misono, ser muito parecida com ela.  

 

 

− Palavra de honra? − perguntei, à cautela, depois de ouvir aquele relato. 

Jamais me passara pela cabeça que, por baixo do verniz da sua pele imaculada e da vigorosa musculatura, ele pudesse esconder semelhante segredo. Nishino contou-me isto enquanto devorava os quatro ovos com presunto que fizera a seu pedido, dando mostras de uma sinceridade e uma abertura tão desconcertantes que julguei que devia estar a gozar comigo.  

− Calculo que tenha sido horrível − disse, com a maior das cautelas. Dar conselhos de vida saía fora da minha área de competências. Bem como tudo o que se relacionava com a temática do incesto em geral, como se imagina. 

− Queres ir para a cama comigo?  

Arrisquei a pergunta porque, depois de contar a história, Nishino ficara mais frio e ensimesmado. Estava de tal modo distante que me assustei um bocado. 

− Não posso fazer sexo contigo, Misono. Pelo menos por enquanto. Ainda estou a tentar perceber se quero dormir com a minha irmã − respondeu, com o ar mais sério deste mundo.  

Não sou a tua irmã, senti-me tentada a dizer, mas calei-me. 

Nishino pegou numa maçã que estava no cesto da fruta em cima da mesa e começou a brincar com ela.  

− Queres que ta descasque? − perguntei, e ele disse que sim. 

− Consegues fazer orelhas de coelho? Era giro se conseguisses cortar a pele na forma das orelhas de um coelho. 

− Acho que sim, mas é capaz de dar asneira − respondi. 

Divertido, Nishino observava a faca nas minhas mãos. 

− A minha irmã passava a vida a fazer-me coelhos − declarou, rindo-se.  

− Hã? − Respirei fundo. Nishino arregalou de novo os olhos. 

− Estou consciente do que se passa, se é o que estás a pensar. Não tenho qualquer intenção duvidosa. 

Fiz um compasso de espera, para depois responder com deliberada boa disposição. 

− Não achas duvidoso dizer uma coisa dessas?  

Dissipada a tensão, quase deixei cair a faca. Segurei-a disfarçadamente com mais força e esculpi dois coelhos, que coloquei na mesa diante dele. Descasquei e cortei os restantes dois pedaços da maçã de forma convencional e devorei-os. 

Por instantes, o som de nós os dois a mastigarmos as fatias de maçã preencheu o silêncio.  

 

 

− Mas porquê? – perguntou-me Nishino. 

Fizemos amor no dia seguinte, afinal de contas. Com ele ainda a afirmar que não podia. «Pelo menos, por enquanto.» 

Encontrava-se no meu apartamento há tempo a mais. Não sabia como mandá-lo embora e acabei por deixá-lo ficar. Até ao momento, Munakata era o único homem que ficara a dormir lá em casa. Uma vez que tinha mulher e filhos, dificilmente faria disso um hábito.  

Nishino era dono de uma libido tão voraz como o seu apetite.  

Munakata costumava dizer que os rapazes de vinte anos estavam sempre ávidos de sexo, mas, na realidade, a libido variava muito de indivíduo para indivíduo. Alguns, como Nishino, não perdiam uma oportunidade de expressar o seu desejo, enquanto outros mal se interessavam por sexo. O apetite sexual de Nishino, porém, superava tudo e todos. Possuía uma tenacidade que faltava à maioria dos rapazes. 

Embora a tenacidade nesse capítulo não se traduzisse forçosamente em bom sexo, com Nishino o sexo era realmente bom.  

Talvez este tipo tenha futuro, pensei vagamente. Mas que futuro, em concreto? 

Abafei uma gargalhada após aquele monólogo interior.  

− De que é que estás a rir? − perguntou Nishino. 

− Oh, nada de especial – respondi. Ele mostrou o seu descontentamento. Nesse aspeto, Nishino não era diferente da maioria. 

− Porque é que vais para a cama com tantos homens, Nozomi? 

Finalmente esgotado, Nishino fez a pergunta devagar, depois de puxar a colcha até ao queixo e de encontrar posição para adormecer. 

− Olha quem fala! Como vão as coisas com a adorada Kanoko? − atirei, devolvendo-lhe a pergunta. 

− Tens razão, não tinha pensado nisso − admitiu ele, surpreendido. − Acho que ando com as duas ao mesmo tempo. 

− Não digas parvoíces.  

Franzi o sobrolho e é possível que me tenha rido, mas, por alguma razão, não sorri. Sabia que a surpresa dele era genuína. Por momentos, Nishino esquecera-se completamente da sua adorada Kanoko. 

− Não estamos suficientemente envolvidos para isto ser visto como uma relação − afirmei, como quem quer despachar o assunto. A adorada Kanoko preocupava-me. Não a odiava, longe disso. A odiar alguém, seria Nishino.  

− Gostava que estivéssemos mais envolvidos, Nozomi − disse ele.  

− Caso haja alguma coisa entre nós, queres dizer − atirei, com indiferença. Lembrava-me da pergunta dele. Como podes amar alguém? Amaldiçoei-o em pensamento. Como é que tivera a suprema lata de me perguntar aquilo? Sobretudo quando parecia capaz de amar a torto e a direito.  

Capaz de amar e de tudo o mais, pensei. Naquele preciso momento, fartei-me dele. Da sua compostura e da maneira certinha de ver as coisas. Repugnou-me o «bom» sexo com ele. «Põe-te a andar», apeteceu-me gritar-lhe, mas fiquei calada. No fundo, sabia que a minha frustração em relação a ele não era mais do que a frustração com a minha pessoa. 

Nishino era daqueles tipos imperturbáveis, mas a aparente frieza emanava de um coração quente. Aos meus olhos, tornava-se difícil conciliar essa dicotomia. Até que ponto era diferente de mim, que pretendia amar todos os homens com quem dormia quando, na realidade, nada sentia por eles? Sabia que estas duas realidades eram iguais, iguaizinhas. 

− A tua irmã ficaria triste − disse-lhe. 

Nishino ficou lívido. 

− És mazinha, Nozomi − murmurou. 

Esbocei um sorriso. 

− Pois sou. 

Nishino vestiu-se e foi-se embora. Durante muito tempo, não soube nada dele. 

 

 

Um por um, mudei de parceiros sexuais. 

Minakawa foi o primeiro − ao confirmar a sua tendência para falar demais, fui eu quem terminou tudo. Kaneko licenciou-se e afastámo-nos naturalmente, e o mesmo se passou com Munakata, que andava cheio de trabalho. Foram substituídos por Hakozaki, Taisho e Nozue, e quando Nekoda e Minakata se juntaram ao grupo, alcancei o maior número de «homens amados», e, no quarto ano, a minha agenda passou a estar muito preenchida. 

Era totalmente sincera com alguns acerca da minha promiscuidade sexual, mas outros não sabiam da missa a metade, se bem que pudessem suspeitar. A decisão de os informar ou não dependia da disposição e do temperamento de cada um.  

Entre os que sabiam, nenhum mostrara qualquer repulsa pelo facto de eu ter mais parceiros. Talvez fosse um indicador do desapego de alguns em relação a mim, ou a confirmação de que eram espíritos livres. Não tinha a certeza, mas posso afiançar que a minha capacidade para avaliar personalidades era, no mínimo, impressionante. Minakawa, que me desiludira devido à falta de discrição, constituía a exceção à regra.  

Os dias passavam sem novidade. Esquecera-me praticamente da existência de Nishino, daí que tenha ficado admirada ao encontrá-lo quase um ano depois de termos feito amor.  

Dei de caras com ele na casa de banho unissexo de um izakaya nos arredores da universidade.  

− Não sei o que se passa, Nozomi, mas sinto-me vazio. 

Nishino saiu-se com esta pérola assim que me viu. Como se nos tivéssemos encontrado no dia anterior.  

Para não variar, continuava a revelar-se perdido no seu próprio mundo. 

− Ah, sim? − respondi, com indiferença. 

Parecia estar tocado. O hálito tresandava a álcool.  

− Não tenho emenda − murmurou e, no segundo seguinte, sem hesitar, aproveitando uma distração minha, beijou-me diante do lavatório. − Depressa! Vamos fugir os dois − disse, com um fio de saliva a escorrer pelo canto da boca. 

− Nem pensar − respondi. 

− Nesse caso, quero que sejas minha amante. 

− Isso não é o mesmo que fugirmos os dois? 

Nishino arregalou os olhos e ficou pensativo. 

− Acho que tens razão. 

Farta das bebedeiras dele, virei-lhe as costas e preparei-me para regressar ao meu lugar no bar. Para minha grande surpresa, Nishino começou a chorar baba e ranho.  

 

 

− Não... − Chorava a plenos pulmões. Aquilo não era o choro de um estudante universitário, mas de um rapazinho de cinco anos. − Estou triste, Nozomi... tão triste – disse por entre soluços. 

− Deixa-te disso − murmurei, mas as minhas palavras não surtiram efeito. Estava demasiado ocupado a desfazer-se em lágrimas. 

− Diz-me, Nozomi, quando é que o mundo se tornou um lugar tão implacável? 

− Não faço ideia. 

As minhas palavras tiveram o efeito das anteriores. Ou seja, nenhum. 

− Não aguento mais. 

− Bem sei – respondi ternamente. Calculei que era o mínimo que podia fazer. 

− Nozomi, tencionas vir a ser cientista, não é? Explicas-me porque é que o mundo ficou assim? 

− Não sei se vou ser cientista. Se calhar, não sou suficientemente boa. 

− Isso quer dizer que o mundo continuará como está.  

− Sim, porque é infinito. No início, houve o Big Bang, e desde então o Universo continua a expandir-se e não há nada que possamos fazer, certo? 

Explanei a minha teoria com a mais absoluta seriedade, numa tentativa de confortar Nishino. 

− O Universo continua a expandir-se? − perguntou ele, abrindo muito os olhos. 

− É o que dizem. 

− O que há do outro lado, nesse caso? 

− Do outro lado? 

− Nos limites do Universo em expansão, na zona que ainda não é o cosmos? 

Fiquei sem palavras. A ideia nunca me ocorrera. O que haveria no espaço exterior, além dos limites do cosmos? Um vazio? Estaria realmente vazio? E o que é um vazio, já agora?  

− Tenho a certeza de que não há nada fora do Universo − respondi por fim.  

Não havia nada no outro lado. Absolutamente nada. Fitei Nishino com uma solenidade sentida. Ficaria destroçado se me dirigisse a ele como se estivesse a consolar um miúdo de cinco anos.  

− Compreendo. Estás a dizer que o aspeto aleatório se deve ao vazio do outro lado? – acabou por dizer Nishino. Parecia ter-se recomposto, e deixara até de chorar. − Desculpa, Nozomi − continuou. − Há muito tempo que não chorava. Desde a morte da minha irmã, acho eu. 

Contra a minha vontade, os olhos encheram-se-me de lágrimas. A tristeza dele devia ser contagiosa. 

− Nem pensar – murmurei, virando as costas. Abandonei a casa de banho sem olhar para trás. 

Quando regressei ao meu lugar, os rapazes do meu ano cantavam uma canção picante. Suspirei e servi-me de um copo de saqué. Suspirei uma série de vezes enquanto dava pequenos goles no saqué, que entretanto esfriara.  

* * * 

Cruzei-me com Nishino uma última vez depois deste episódio. Foi na véspera de me licenciar.  

Como a minha casa ficava perto do novo emprego, fui poupada à necessidade de arranjar outro apartamento e, ao contrário dos meus colegas, sem tempo para se coçarem, passei esses dias na preguiça. 

Foi então que bateram à porta. Algo fora do vulgar, visto que no meu prédio havia intercomunicador. Sem tirar a corrente na porta, espreitei para ver quem era. 

− Olá − disse Nishino pela fresta aberta. 

− Olá − respondi, retirando a corrente.  

Nishino entrou como se não fosse nada com ele. Há mil variações na forma como um rapaz entra em casa de uma rapariga, e esse número multiplica-se quando os dois fizeram amor. A entrada de Nishino não foi demasiado «à vontadinha» nem demasiado formal. Digamos que foi perfeita.  

Caramba, se calhar este tipo tem futuro, pensei.  

− Trouxe-te isto − disse, sacando do bolso um fino objeto prateado que cintilava. − É para ti. 

− Um termómetro? 

Segurava na palma da mão um velho termómetro de mercúrio enfiado num tubo de vidro com tampa azul. 

− Era da minha irmã.  

− Estás bom da cabeça? Não posso aceitar uma coisa dessas! – respondi automaticamente. 

Nishino riu-se. 

− Pois, imagino que seja um tanto sinistro. 

− Podes crer − concordei. 

− Utilizo-o desde que a minha irmã morreu − declarou ele, embebido de uma estranha lógica que me escapava. 

− Isso só o torna mais sinistro, se queres saber. 

Nishino coçou a cabeça. 

− Não o queres? Mesmo sabendo que conserva o calor da minha pele? 

− Lá estás tu, Nishino. Eternamente perdido no teu mundo.  

Nishino riu-se à gargalhada. O que se passava era do mais bizarro. Por que diabo me batera à porta, vindo do nada, para me oferecer aquele objeto de gosto duvidoso? 

Acabámos por jantar os dois − restos do caril do almoço −, e depois ele foi-se embora sem fazermos amor.  

 

 

Aqui têm, com todos os pormenores, a minha experiência com Nishino. 

De vez em quando, ainda recordo o tipo estranho que era. Nunca chegámos a ser próximos. Mas o que me resta é o sentimento de que em tempos fomos muito próximos. Partilhávamos uma certa sensibilidade e, em certos aspetos, a mais absoluta indiferença.  

Aprendi que as crianças também podem ser assim. A propósito, no dia em que conheci Nishino na conduta de esgoto, nessa mesma noite e enquanto adormecia, virou-se para mim e disse:  

− Quem me dera que a minha irmã tivesse tido um filho em vez de uma filha. − Quando lhe perguntei porquê, ficou em silêncio por momentos e depois respondeu: − Porque assim poderia reencarnar no lugar dele.  

− Credo, Nishino, és maior e vacinado − disse-lhe. − A reencarnação não funciona assim. 

− Ao menos, seria mais fácil projetar-me nele – justificou-se, franzindo os lábios. 

Na manhã seguinte, estava a lavar os dentes quando ele surgiu atrás de mim. 

− Mudei de ideias − anunciou. 

− Acerca de quê? − perguntei, com a escova cheia de pasta na boca.  

− Como nada posso fazer acerca dos mortos, não vou perder tempo a remoer o passado. Em vez disso, vou transformar-me na minha irmã e dar à luz uma menina. 

− Desculpa, mas isso faz ainda menos sentido. 

Nishino baixou a cabeça. 

− Bom, o certo é que não posso aceitar o sucedido − respondeu, baixando ainda mais a cabeça. Em última análise, a razão pela qual comecei a dormir com Nishino talvez se devesse àquele gesto de abatimento. 

Nunca mais tive notícias dele. Quanto ao termómetro, acabei por ficar com ele, após alguma insistência. De vez em quando, utilizo-o para medir a temperatura. Na maior parte das ocasiões, indica valores normais. 

Depois de o usar, sacudo-o com um golpe de pulso para fazer descer o mercúrio, e o termómetro corta o ar com um som ténue.  

Sempre que ouço esse som, não consigo deixar de pensar no que terá sido feito de Nishino. 

Será que conseguiu reunir-se com a irmã e o filho dela?  

Terá descoberto o que existia nos limites do Universo em permanente expansão?  

Terá sido capaz de viver e de amar alguém?  

Terá encontrado o seu lugar neste mundo impiedoso?