Capítulo 3
Sábado, 28 de junho de 2014
6h09
Emily Baxter e Edmunds estavam havia mais de dez minutos na recepção do hospital. Persianas aparentemente frágeis bloqueavam a entrada de uma lanchonete e uma livraria, e o estômago de Emily roncava sempre que ela olhava para os saquinhos de biscoito que via empilhados do outro lado delas. Por fim um segurança obeso mórbido caminhou até o balcão, e a recepcionista antipática apontou na direção deles.
– Oi! – chamou ela de longe, como se estivesse em casa. – O Jack vai descer com vocês agora.
A má vontade do segurança não podia ser mais evidente. Arrastando o corpanzil sem nenhuma pressa, visivelmente contrariado, ele conduziu os dois visitantes para os elevadores do saguão principal. Emily perdeu a paciência:
– Não temos o dia todo! – disse ela.
Isso serviu apenas para desacelerar ainda mais o homem, que só foi abrir a boca quando saiu com eles no subsolo do prédio.
– A polícia “de verdade” não confiou na gente, reles seguranças, pra desempenhar a complexa tarefa de sentar a bunda numa cadeira e vigiar um quarto – comentou ele. – Tomaram as rédeas da coisa e... deu no que deu.
– O corpo continuou sendo vigiado depois que o desceram pra cá? – perguntou Edmunds, caprichando na simpatia para conquistar o homem.
Estava com seu bloquinho em punho, pronto para anotar a resposta enquanto seguia pelo claustrofóbico corredor.
– Olha, é só uma hipótese – disse o outro, com uma súbita e exagerada cordialidade –, mas talvez a polícia tenha achado que o cara era bem menos perigoso depois de morto. – Ele riu do próprio gracejo.
Edmunds olhou para sua chefe esperando que ela balançasse a cabeça ou dissesse algo para ridicularizar a estupidez da pergunta que ele havia feito, mas, para sua grande surpresa, ela partiu em sua defesa.
– O que meu colega está tentando fazer, sem sucesso, é extrair da sua simpática pessoa uma informação bastante simples: este necrotério é ou não é um lugar seguro?
Eles pararam diante de uma porta dupla. Em uma delas, um pequeno adesivo informava: ENTRADA PROIBIDA. Apontando o dedo gordo na direção dele, o homem disse:
– Quer segurança melhor?
A detetive Baxter entrou no necrotério, esperou que Edmunds passasse por ela, depois disse:
– Obrigada, o senhor foi muito... – E bateu a porta na cara do homem. – Imbecil.
Ao contrário do guarda marrento, o legista de plantão revelou-se uma pessoa prestativa e eficiente. Devia ter uns 50 e poucos anos, os cabelos grisalhos fazendo par com a barba perfeitamente aparada. Não precisou mais do que alguns minutos para localizar os arquivos relativos a Naguib Khalid, tanto os físicos quanto os digitais.
– Eu não estava presente na necropsia – disse –, mas, segundo estes registros aqui, foram encontrados vestígios de tetrodotoxina no sangue dele. Essa foi a causa mortis.
– Essa tetoxin...
– Tetrodotoxina – corrigiu ele, sem nenhum traço de condescendência.
– Isso. Do que se trata exatamente? E como é administrada?
– É uma neurotoxina de ocorrência natural.
Os detetives arregalaram os olhos com expressão interrogativa.
– É um veneno que ele deve ter ingerido naturalmente. A maioria das fatalidades por TTX decorre da ingestão de um peixe chamado baiacu, uma iguaria pra muita gente. Quanto a mim, prefiro os meus Ferrero Rocher.
O estômago de Emily roncou novamente.
– Quer dizer então que devo voltar à delegacia e informar meu chefe que um peixe matou o famigerado Cremador? – disse ela, impávida.
– Todo mundo morre de alguma coisa – devolveu o legista, como se fosse necessário desculpar-se de algo. – Há outras fontes de TTX na natureza: certas espécies de estrela-do-mar, alguns moluscos... Se não me engano, há também um sapo que... – Percebendo que a detetive não estava nem um pouco interessada, acrescentou: – Suponho que você queira ver o corpo, certo?
– Por favor – respondeu ela.
Algo que até então Edmunds ainda não tinha ouvido sair da boca dela.
– Posso saber por quê? – perguntou o homem, conduzindo-os para os gavetões frigoríficos.
– Pra ver se ele ainda está com a cabeça no lugar – respondeu Edmunds, fazendo suas anotações.
O legista olhou para a sargento Baxter, esperando que ela sorrisse ou talvez se desculpasse pelo humor negro do colega, mas recebeu apenas um meneio da cabeça que confirmava tranquilamente a resposta do outro. Meio atrapalhado, localizou a gaveta certa na fileira inferior e foi abrindo-a com cuidado. O suspense era grande. Não era todo dia que eles viam o cadáver envenenado de um assassino em série.
Os pés e as pernas escuras exibiam inúmeras cicatrizes e queimaduras antigas. Depois vieram as mãos e a virilha. Emily olhou com aflição para os dois dedos desfigurados da mão esquerda, lembrando-se daquela noite em que Wolf surgira imundo de sangue após interrogar Khalid na cela da delegacia. No dia seguinte, ao ser interpelada pelos corregedores, jurara de pés juntos que não tinha visto nada.
No tronco estavam as cicatrizes das inúmeras cirurgias a que o homem fora submetido após o ataque de Wolf no tribunal. E quando a gaveta enfim se abriu por completo, para espanto geral, eles depararam com o reflexo distorcido dos próprios rostos no metal da bandeja onde originalmente deveria haver uma cabeça.
– Merda...
Wolf zanzava de um lado para outro diante da entrada principal da New Scotland Yard, observando, nervoso, a pequena multidão reunida à sombra do espigão de vidro que ocupava quase 8 mil metros quadrados do coração de Westminster. Ainda estavam dando os últimos retoques no palanque montado às pressas no lugar preferido dos fotógrafos, bem ao lado da famosa placa giratória do prédio.
Certa vez ele ouvira de alguém que as letras metálicas da placa visavam simbolizar a constante vigilância da Polícia Metropolitana: os observadores que se viam espelhados nelas sentiam-se observados também. O mesmo podia ser dito do prédio inteiro, que nos dias de sol praticamente sumia ao refletir de cima a baixo os tijolinhos vermelhos do hotel vitoriano que ficava em frente, bem como os do Broadway 55, o famoso prédio histórico da rua de trás.
Wolf repreendeu a si mesmo quando ouviu o celular tocar em seu bolso. Já deveria tê-lo desligado mais cedo, mas vendo que a chamada era de Simmons, atendeu imediatamente.
– Fala, chefe.
– Baxter acabou de confirmar: é o Khalid mesmo.
– Eu sabia. Como?
– Um peixe.
– Hein?
– Comeu um peixe venenoso.
– Merecia coisa pior.
– Vou fingir que não ouvi.
Alguém gesticulou para Wolf.
– Estão me chamando aqui, chefe.
– Boa sorte.
– Valeu.
– Não vá falar nenhuma merda, ok?
– Deixa comigo.
Wolf desligou e conferiu sua imagem refletida na vidraça mais próxima, verificando se o zíper da calça não estava aberto, se as olheiras não estavam piores que de costume. Em seguida caminhou para o palanque, determinado a acabar com aquilo o mais rápido possível. Sentiu um frio na barriga assim que deu com as lentes negras das câmeras de televisão filmando cada um dos seus passos: por um segundo se viu novamente deixando o Old Bailey em meio ao tumulto de repórteres, escondendo o rosto de maneira inútil enquanto era empurrado para dentro do camburão da polícia. De vez em quando ainda sonhava com tudo aquilo. Tenso, ele subiu ao palanque e balbuciou as primeiras palavras do texto que havia preparado:
– Bom dia, senhoras e senhores. Sou o sargento-detetive William Fawkes, da...
– Mais alto! – berrou alguém.
Um dos homens que haviam montado o palanque se adiantou rapidamente para ligar o microfone, que uivou por alguns segundos, arrancando risos dos presentes. Procurando ignorá-los, Wolf prosseguiu:
– Obrigado. Como eu ia dizendo, sou o sargento-detetive William Fawkes, da Polícia Metropolitana, um dos integrantes da equipe responsável pela investigação dos múltiplos homicídios de hoje. – Até ali tudo certo. Os repórteres já começavam a berrar suas perguntas, mas ele não lhes deu ouvido. – Confirmamos que os restos mortais de seis vítimas foram recuperados de um endereço em Kentish Town nas primeiras horas do d...
Foi então que ele cometeu o erro de erguer os olhos das suas anotações e voltá-los para a multidão. Não demorou para localizar a inconfundível cabeleira ruiva de Andrea. Percebeu que ela estava aflita e com isso se atrapalhou ainda mais, a ponto de deixar cair no chão todas as fichas. Lembrou que algumas continham informações ainda sigilosas, mas por sorte conseguiu coletá-las de volta antes que fossem parar nas mãos erradas. Voltando ao microfone, prosseguiu:
– ... nas primeiras horas do dia de hoje. – Estava com a boca seca. Sabia que o rosto enrubescido traía seu constrangimento, como sempre acontecia. Então resolveu pular direto para a última das fichas. – Estamos no processo de identificar as vítimas, e os nomes não serão divulgados antes de falarmos com os familiares. Nossa investigação ainda está no início; portanto, isso é tudo que podemos informar neste momento. Conto com a compreensão de todos. Obrigado.
Por um segundo ele ficou esperando pelos aplausos, mas se deu conta de que, diante das circunstâncias e da pobreza do seu desempenho, não havia nada a ser aplaudido. Os repórteres ainda gritavam seu nome, insatisfeitos com o boletim, no entanto ele desceu do palanque e foi caminhando de volta para o interior do prédio.
Assustou-se quando reconheceu os berros de Andrea às suas costas. Virando o rosto, percebeu que ela conseguira se desvencilhar do primeiro guarda, mas não dos outros dois que acorreram logo em seguida. De repente, quase num reflexo condicionado, foi tomado pela mesma raiva que havia contaminado os primeiros encontros após o divórcio. Por um segundo ficou tentado a deixar que a levassem embora, mas interveio assim que um membro do GPD – Grupo de Proteção Diplomática – se adiantou com um fuzil de assalto em punho, um Heckler & Koch G36C com cara de pouquíssimos amigos.
– Ok, ok, podem deixá-la passar – gritou para os guardas.
A última conversa entre eles, para discutir os detalhes práticos da venda da casa, havia sido especialmente difícil, agressiva até, por isso ele ficou surpreso quando ela correu a seu encontro e o apertou num demorado abraço. Precisou respirar pela boca para não sentir o perfume delicioso daqueles cabelos, do qual tinha ótimas lembranças. E ficou mais surpreso ainda quando viu que ela tinha os olhos molhados ao se livrar do abraço.
– Não posso revelar mais nada, Andie...
– Você agora não atende mais seu telefone? Faz quase duas horas que estou tentando falar com você! – disse ela, agora genuinamente furiosa.
Wolf sempre tivera dificuldade para acompanhar aquelas mudanças tão súbitas de humor.
– Desculpa. É que hoje o dia está meio complicado – respondeu ele, e brincou: – Parece que houve uma confusão por aí, ainda não sei direito o que é.
– Uma confusão bem em frente ao seu apartamento!
– Pois é. A vizinhança é barra-pesada.
– Preciso fazer uma pergunta, mas você vai ter de responder a verdade, ok?
– Hmmm...
– O buraco é bem mais embaixo, não é? Aquele corpo lá no apartamento... eram partes de corpos diferentes costuradas feito um boneco de pano...
– Como foi que...? Quem foi que...? – gaguejou Wolf. – Bem, falando em nome da Polícia Metropolitana, eu não posso...
– E a cabeça é do Khalid, não é?
Ouvindo isso, Wolf puxou-a pelo braço e a levou para um canto mais discreto, o mais longe possível dos guardas à porta do prédio. Ela tirou da bolsa um envelope pardo bem recheado.
– Acredite em mim, sou a última pessoa no mundo interessada nesse asqueroso. Na minha opinião, foi ele que destruiu o nosso casamento. Mas reconheci a fisionomia dele nas fotos.
– Que fotos? – perguntou Wolf, preocupado.
– Meu Deus... Eu sabia que não eram falsas – disse ela, perplexa. – Alguém me mandou fotos daquele... daquele monstro. Faz horas que não consigo pensar em outra coisa. Preciso voltar ao trabalho. – Andrea se calou quando alguém passou por perto e depois continuou: – Will, a pessoa que me mandou essas fotos, seja lá quem for, também incluiu uma lista de nomes. Por isso eu venho tentando falar com você. São seis nomes seguidos de uma data.
Wolf pegou o envelope que ela trazia consigo e abriu.
– O primeiro é o do prefeito Turnble e a data é a de hoje – adiantou Andrea.
Sem dizer uma única palavra, Wolf lhe deu as costas e disparou prédio adentro. Ela ainda gritou algo, mas as palavras morreram nas portas de vidro que se fecharam automaticamente atrás dele.
Simmons estava falando ao telefone com o comissário, que então recorria a ameaças nem tão veladas assim, dizendo que ninguém era insubstituível a cada vez que ouvia explicações pela morosidade da investigação. Simmons ainda expunha seu plano de ação quando Wolf irrompeu na sala sem ser anunciado.
– Fawkes! – berrou ele. – Cai fora!
Debruçando-se sobre a mesa do chefe, Wolf apertou o primeiro botão que viu a fim de desligar o telefone.
– Que diabos você pensa que está fazendo? – espantou-se Simmons.
Antes que Wolf pudesse responder, o comissário disse ao viva-voz:
– Simmons, você está falando comigo?
– Merda.
Wolf tentou outro botão.
– Você ligou para... – disse a voz robótica de uma secretária eletrônica.
Simmons levou as mãos à cabeça, prestes a arrancar os próprios cabelos, quando Wolf apertou um terceiro botão.
– Como é que se desliga essa porra? – disse ele, exasperado.
– É o botão vermelho em cima do... – respondeu solicitamente o próprio comissário, antes do clique que enfim abortou a desastrosa ligação.
Wolf espalhou as polaroides do monstrengo sobre a mesa.
– Nosso homem mandou estas fotos pra imprensa, acompanhadas de uma lista com os nomes das próximas vítimas.
Simmons esfregou o rosto e examinou as fotos que mostravam o cadáver coletivo em diferentes estágios da sua montagem.
– O primeiro da lista é o prefeito Turnble – prosseguiu Wolf. – Hoje.
Simmons precisou de um instante para assimilar a informação. Voltando a si, sacou o celular e ligou para Turnble.
– Terrence! – atendeu o prefeito. – A que devo o prazer?
– Ray, onde você está? – Simmons foi logo perguntando.
– No nosso bom e velho Richmond Park. Voltando pro carro na avenida Ham Gate. Daqui a pouco tenho uma cerimônia de arrecadação de fundos em...
Simmons sussurrou o endereço para Wolf, que já tinha a sala de controle ao telefone.
– Ray, estamos com um probleminha aí. Uma ameaça contra a sua vida. Uma ameaça legítima.
Para a surpresa de Simmons, o prefeito recebeu a notícia com total naturalidade.
– Mais uma? – debochou ele.
– Fique onde está – instruiu Simmons. – Vou despachar viaturas pra escoltá-lo até aqui, onde você vai ficar até descobrirmos mais alguma coisa.
– Acha mesmo necessário?
– Explico melhor quando você chegar.
Simmons desligou e Wolf disse:
– Três viaturas já estão a caminho. Uma delas é uma unidade armada.
– Ótimo. Ligue para a detetive Baxter e ordene que ela volte imediatamente com aquele fulano. Depois mande blindar o sétimo andar: ninguém entra e ninguém sai. Avise aos seguranças que o prefeito vai entrar pela garagem.
Ray Turnble acomodou-se com paciência no banco traseiro do seu Mercedes Classe E. A caminho do carro pedira a seu assistente que cancelasse todos os compromissos, antevendo o dia longo e maçante que teria pela frente. Não fazia nem dois meses que havia recebido uma ameaça anônima por e-mail e fora obrigado a passar uma tarde inteira trancafiado na sua casa em Richmond – até descobrirem que a mensagem fora enviada por um garoto de 11 anos, aluno de uma escola que ele havia visitado mais cedo na mesma semana. Nada impedia que a história se repetisse agora, outra monumental perda de tempo.
O trânsito já estava intenso na avenida Ham Gate, muita gente querendo aproveitar as belezas do parque naquela ensolarada manhã de sábado. Por isso eles saíram dali e foram esperar diante do complexo recém-desocupado do Royal Star and Garter Home. Admirando o belo prédio encastelado no alto da Richmond Hill, o prefeito se perguntou quanto tempo levaria até que aquela importante peça do patrimônio histórico da cidade sucumbisse, assim como tantas outras, ao triste destino de ser transformada num complexo residencial para banqueiros ricos.
Ele tirou da maleta a bombinha que sempre levava consigo e deu uma longa inalada. A onda de calor, que parecia não ter mais fim, empesteava o ar com pólen, tão perigoso para os seus pulmões, e ele faria o necessário para não ser hospitalizado pela terceira vez naquele ano. Desde muito vinha sentindo nas canelas as mordiscadas do seu adversário mais ferrenho e sabia que o cancelamento da agenda não passaria despercebido. Para aliviar a tensão ele baixou a janela do carro e acendeu um cigarro. Havia conseguido reduzir bastante o consumo diário, mas ainda não percebia a ironia que era carregar o maço na mesma maleta em que levava a bombinha.
Dali a pouco Turnble ouviu as sirenes uivando ao longe e bufou desanimado ao constatar que eram para ele. Uma viatura estacionou ao lado do Mercedes e um dos policiais fardados desceu para instruir o motorista. Em trinta segundos eles já estavam a caminho da New Scotland Yard, costurando o trânsito, furando sinais, invadindo pistas exclusivas para ônibus. Com sorte não haveria ninguém filmando o exagero ridículo de uma escolta de três carros em torno daquele Mercedes tão fácil de se identificar.
Ligeiramente afundado no banco, Turnble agora ia acompanhando pela janela a gradual substituição das mansões de Richmond pelos prédios comerciais do trajeto rumo a Westminster, cada um mais feio que o outro, sedentos de atenção, espremidos entre si.