Capítulo 6
Sábado, 28 de junho de 2014
16h23
Andrea desceu do táxi à sombra da Heron Tower, o terceiro prédio mais alto da capital inglesa. No alto do espigão, volumes irregulares eclipsavam o sol ao se lançarem de modo incoerente rumo ao céu, coroados por uma lança que parecia equilibrar-se ali muito precariamente, suplicando por aplausos à custa da estética e, pelo visto, da integridade estrutural também. A redação do telejornal não poderia ter se instalado num lugar mais apropriado.
Ao entrar na ampla recepção, foi direto para as escadas rolantes, deliberadamente ignorando os seis elevadores transparentes que numa velocidade estonteante transportavam hordas de executivos tensos para suas respectivas mesas. Enquanto deslizava rumo ao mezanino, ia admirando o aquário gigantesco que ficava atrás do balcão dos recepcionistas, que pareciam trabalhar placidamente, alheios à ameaça constante daquela fatia de oceano às suas costas, 70 mil litros d’água contidos por uma reles camada de acrílico. Observando o sonolento vaivém dos peixes, e a profusão de cores da escultura de coral, ela pensava na sua mais recente paixão: o mergulho com snorkel. Distraída, por pouco não tropeçou ao ser lançada da escada.
A convocação para a cena do crime havia chegado às três da madrugada. Após finalmente conseguir falar com Wolf e entregar a ele o sinistro envelope que encontrara em meio à sua correspondência, ela ainda ficara por mais quatro horas diante do prédio da New Scotland Yard, junto com seu operador de câmera, no intuito de gravar boletins ao vivo a cada trinta minutos. Isso implicava requentar inúmeras vezes as mesmas informações, dando a entender, mas nunca afirmando categoricamente, que fatos muito relevantes haviam ocorrido do lado de cá das portas fechadas do quartel-general da polícia.
Depois do boletim das onze ela havia recebido um telefonema de Elijah Reid, o editor-chefe, mandando que ela voltasse para casa e descansasse pelo menos algumas horas. De início, ela havia recusado com veemência. Não tinha a menor intenção de ficar de fora daquela que parecia ser a matéria mais sensacional desde as peripécias do Cremador, especialmente quando era a única a ter visto o conteúdo arrepiante do tal envelope, informação que ela ainda não havia dividido com o chefe. No entanto, acabara cedendo ao ouvir dele a promessa de que ligaria assim que algo acontecesse, por mais ínfimo que fosse.
Foi uma deliciosa e ensolarada caminhada de meia hora desde Westminster (passando pelos jardins do Palácio de Buckingham e da Belgrave Square) até o prediozinho vitoriano de Knighstbridge em que ela dividia um apartamento com o noivo e a filha dele, uma menina de 9 anos.
Chegando lá, ela foi direto para o quarto, fechou as cortinas e se jogou na cama ainda com as roupas de trabalho, embalada pela penumbra e pelas cores suaves da elegante decoração. Depois de acionar o despertador do celular, tirou da bolsa a pasta em que havia guardado fotocópias de todo o material deixado com Wolf e a apertou contra o peito, fechando os olhos ao pensar na tremenda importância daquilo tudo para a polícia, para as pessoas da lista e... para ela própria também.
Ela ficou ali por mais de uma hora e meia, sem conseguir dormir, olhando fixamente para o lustre antigo do cômodo enquanto calculava as implicações legais e morais envolvidas na entrega daquele material para Elijah. Sabia perfeitamente que o chefe não pensaria duas vezes antes de exibir aquelas doze fotos em rede nacional. Um alerta para os mais sensíveis, algo como “estas imagens são de natureza explícita e podem ferir a...”, serviria apenas para aguçar a curiosidade mórbida e insaciável dos telespectadores. Por um instante lhe veio à cabeça uma imagem grotesca: os parentes das vítimas até então anônimas vendo as imagens na televisão, ao mesmo tempo fascinadas e repugnadas ao identificar traços conhecidos nos membros mutilados.
Naquela manhã, dezenas de jornalistas haviam reportado as mesmas informações diante da mesma placa giratória da New Scotland Yard, competindo entre si pela audiência de um mesmo público cada vez mais repleto de opções. Que o assassino tivesse mandado aquelas fotos justamente para ela, Andrea, daria à emissora uma pequena vantagem sobre as concorrentes BBC e Sky News, que reproduziriam as imagens minutos depois da sua primeira divulgação. Mas ela sabia exatamente o que fazer para garantir que todos os aparelhos de TV do país lhe dessem a tão cobiçada preferência:
1. A isca: informar que ela havia sido contatada pelo mais novo assassino em série da cidade;
2. O aperitivo: dizer que as fotografias seriam exibidas mais tarde, revelar o conteúdo delas e fazer conjeturas absurdas apenas para abrir o apetite dos mais ingênuos. Talvez até fosse o caso de convocar algum ex-policial, um investigador particular ou mesmo um autor de livros policiais para fazer as vezes de comentarista.
3. A entrada: informar que, junto com as fotos, ela havia recebido uma lista manuscrita com os nomes das próximas seis vítimas, além das datas da morte de cada uma. “Tudo isso daqui a cinco minutos”, ela diria. Tempo suficiente para que a notícia se espalhasse, mas não para que a polícia abortasse a transmissão.
4. O prato principal: com a audiência do país inteiro, ela divulgaria os nomes e as datas, intercalando-os com pausas dramáticas assim como faziam os jurados dos programas de calouros antes de divulgar o nome dos finalistas. Um rufar de tambores talvez fosse um pouco exagerado.
Andrea se odiava por apenas cogitar a estratégia. Havia uma grande possibilidade de que a polícia ainda não tivesse contatado os seis novos alvos do facínora, e essas pessoas tinham todo o direito de saber do seu infortúnio pelo menos algumas horas antes do resto do mundo. Além disso, ela seria presa. Nada disso importava para Elijah, que não se deixava intimidar por esse tipo de coisa. Não fazia muito que ele havia chegado à emissora, mas Andrea já tivera a oportunidade de vê-lo destruindo vidas apenas com suas conjeturas infundadas, passando adiante informações de origem duvidosa a respeito de investigações ainda em andamento e por duas vezes sendo levado a juízo a primeira por obstrução da justiça e a segunda por tentativa de suborno a um policial.
Ao perceber que o sono não viria mais, ela se levantou na cama. Não estava nem um pouco mais descansada do que antes, mas pelo menos havia chegado a uma conclusão quanto ao que fazer. Mesmo sabendo das consequências, usaria as fotografias, pois naquela balança o prato dos benefícios profissionais pesava muito mais que o das encrencas com a polícia. No entanto, manteria em sigilo a lista com os nomes das vítimas. Isso era o correto. Era um alívio constatar que ela ainda tinha dentro de si forças suficientes para se defender contra a pressão cada vez maior no sentido de se tornar uma pessoa tão cruel e inescrupulosa quanto seu chefe.
De volta à Heron Tower, ela enfim alcançou o corredor que levava à redação do telejornal, que ocupava o décimo andar do prédio. Mesmo numa altura relativamente modesta, ela sempre procurava evitar as janelas que davam para a rua Camomile. Como de costume, ao entrar na sala, incomodou-se com a confusão que reinava no lugar 24 horas por dia: pessoas berrando umas com as outras, telefones tocando sem parar, uma infinidade de telas de plasma chumbadas às paredes, algumas com o volume alto, outras não. Sabia que numa questão de minutos acabaria se acostumando à barulheira, passando a ouvir apenas um burburinho indistinto. Sabia também que esse era o elemento natural de Elijah, que regozijava-se no caos.
Na realidade a sala ocupava também o 11o andar, mas como um espaço dúplex, sem uma laje intermediária entre os dois pavimentos. Após anos trabalhando em emissoras regionais, Andrea achava aquilo tudo um grande exagero, uma ostentação, quase uma paródia do que realmente deveria ser uma redação. Para ela bastavam uma mesa, um computador e um telefone.
O novo editor-chefe havia sido roubado da televisão americana, mais especificamente de um noticiário investigativo que, não sem muita controvérsia, havia denunciado esquemas de corrupção em inúmeras empresas e marcas de renome internacional. Trouxera com ele vários daqueles americanismos mais condescendentes, como as técnicas de fortalecimento do espírito de equipe ou do moral no ambiente de trabalho, um martírio para os ingleses de natureza bem mais reservada.
Andrea acomodou-se na sua cadeira ergonômica amarelo néon (pesquisas científicas apontavam uma relação direta entre as cores fortes e a eficiência profissional) e imediatamente conferiu sua correspondência para ver se não havia chegado mais nada do assassino. Em seguida tirou da bolsa a pasta que trouxera de casa e já ia subindo com ela até a sala de Elijah, que ficava numa espécie de mezanino, quando as pessoas começaram a se levantar para ver algo na televisão, a maior da sala. Notou que Elijah também havia saído da toca para observar a comoção. Parado junto ao guarda-corpo com os braços cruzados diante do peito, ele lançou um olhar impassível na sua direção, depois voltou-se para o tal aparelho de TV, acompanhando do alto o que se passava nele. Curiosa, Andrea se juntou ao grupo.
– Aumenta o volume! – berrou alguém.
De repente a famosa placa da New Scotland Yard surgiu na tela, e Andrea reconheceu a mão do seu cinegrafista Rory quando um zoom out ligeiramente fora de foco enquadrou a repórter, uma loura lindíssima, usando um vestidinho de verão com um decote indecorosamente profundo. Um gaiato qualquer assobiou um fiu-fiu nas fileiras da frente. Fazia apenas quatro meses que Isobel Platt começara a trabalhar na emissora, e aos olhos de Andrea era um insulto à profissão de jornalista que tivessem contratado aquela toupeira (com idade de menos e curvas de mais) tão somente porque ela sabia ler. E agora, vendo-a ali no seu lugar, ela se sentiu pessoalmente exasperada.
Sorrindo de orelha a orelha, Isobel informava que um porta-voz da polícia faria um pronunciamento “i... mi... nen... te... men... te”. O destaque do decote era tal que Andrea cogitou por um instante por que Rory se dava ao trabalho de incluir a cabeça da garota no enquadramento. Chegou a ficar com os olhos marejados, magoada, convicta de que Elijah a observava de longe para ver o tamanho do estrago que havia feito. Mas ela não daria o braço a torcer. Jamais daria ao chefe a satisfação de virar para trás ou sair da sala. Então se manteve firme onde estava, os olhos grudados na televisão.
Não era a primeira vez que ela subestimava o maquiavelismo do seu editor-chefe. Entendia o raciocínio dele: na luta pela audiência naquela matéria que prometia ser a mais importante do ano, por que não plantar diante das câmeras uma modelete de 20 anos como um atrativo adicional? Não seria nenhuma surpresa se na chamada seguinte a garota surgisse com os peitos de fora.
Perdida nos próprios pensamentos, Andrea mal prestara atenção na notícia estarrecedora de que o prefeito Turnble havia morrido subitamente durante uma visita ao quartel-general da Polícia Metropolitana para uma reunião corriqueira de revisão de diretrizes. A essa altura, sua autocomiseração já tinha dado lugar à raiva pura e simples: de forma alguma ela entregaria de bandeja aquela reportagem que era sua por direito. Portanto, nem um pouco interessada no que os peitos de Isobel tinham a dizer sobre o pronunciamento da polícia, ela voltou às pressas para sua mesa, pegou o material fotocopiado e subiu com ele para falar com o chefe.
Ao que parecia, Elijah já esperava sua visita: com calma ele voltou à sua mesa e deixou a porta aberta atrás de si.
Fazia mais de cinco minutos que o homem não parava de gritar, furioso por Andrea ter retido aquelas fotos explosivas por tanto tempo. Já a tinha demitido sete vezes, xingado a mãe dela por no mínimo três e literalmente colocado a secretária para correr quando entrou na sala para ver o que estava acontecendo.
Andrea esperou pacientemente até que ele terminasse. Divertia-se não só com a previsibilidade do longo discurso, mas sobretudo com a inconstância do sotaque do americano: quanto mais irritado ele ficava, mais a urbanidade do suposto sotaque nova-iorquino ia dando lugar às caipirices do seu real sotaque sulista. Elijah era um homem vaidoso. Ia à academia duas vezes ao dia, antes e depois do expediente, e usava sempre uma camisa justa o bastante para alardear os resultados da sua obsessão. Já havia passado dos 40, mas não possuía um único fio branco nos cabelos, que, aliás, eram de um dourado pouco natural e estavam sempre impecavelmente penteados para trás. Na emissora havia quem o achasse um homem irresistível, a própria definição do que devia ser um macho alfa. Andrea, por sua vez, achava-o ridículo e asqueroso. Precisou esperar mais um minuto até que aquele furor ditatorial se dissipasse.
– Essas fotos têm uma péssima qualidade, quase não dá pra aproveitá-las – disse ele, procurando disfarçar a empolgação enquanto as espalhava sobre a mesa.
– Eu sei – disse Andrea calmamente. – Estas são só para você. As com alta resolução estão armazenadas num pendrive.
– E onde está esse pendrive? – perguntou Elijah, aflito. Vendo que não receberia uma resposta, disse: – Parabéns, garota. Você está aprendendo direitinho.
Por maior que fosse a condescendência do comentário, Andrea sentiu uma ponta de orgulho. As forças daquele jogo agora se equilibravam bem mais. Ali estavam dois tubarões nadando em torno de um mesmo pedaço de carne.
– Os originais estão com a polícia?
– Estão.
– Com o Wolf? – Elijah havia acompanhado com bastante interesse todo o processo de divórcio de Andrea. Conhecia Wolf, que até do outro lado do Atlântico havia ficado famoso após o episódio com o Cremador. – Nesse caso... ninguém pode nos acusar de sonegação de evidências, correto? Mande estas fotos para o pessoal das artes gráficas. Você continua devidamente empregada.
Andrea ficou surpresa. Naturalmente ele havia entendido que a intenção dela não era apenas manter o emprego, mas recuperar o comando da reportagem. E devia ter interpretado corretamente a expressão no rosto dela, pois, com um sorriso malicioso, ele disse:
– Porra, também não precisa dar uma de vítima. Você já fez o seu trabalho e pronto. Agora é a Isobel que está lá. É ela quem vai tocar o barco daqui pra frente.
Mais uma vez Andrea sentiu os olhos marejados e fez o possível para disfarçar enquanto botava a cabeça para funcionar, imaginando como deveria contra-atacar.
– Então só me resta...
– O quê? Pedir demissão? Entregar essas fotos pra concorrência? – riu Elijah. – Sou capaz de apostar que esse pendrive que você usou é de propriedade da empresa. Se eu souber que você pretende sair daqui com material roubado... tenho todo o direito de exigir que você seja revistada pelos seguranças.
A imagem do dispositivo veio imediatamente à cabeça de Andrea, que o havia alojado na carteira, entre o cartão de fidelidade da Starbucks e a habilitação para mergulho recreativo. Os seguranças o encontrariam num piscar de olhos. Mas então ela lembrou que ainda tinha uma carta na manga.
– Também há uma lista – falou de repente, antes que a consciência pudesse cumprir seu papel. – Uma lista das próximas vítimas do assassino.
– Conta outra.
Andrea tirou do bolso a fotocópia que fizera da tal lista, já bem amassada, e a dobrou cuidadosamente de modo que apenas a primeira linha ficasse à mostra: “Prefeito Raymond Edgar Turnble – Sábado, 28 de junho.”
Elijah olhou com desconfiança para o papel, que ela fazia questão de manter fora do seu alcance. Observava do alto quando Andrea se afastou da televisão, passou pela mesa dela e subiu para falar com ele. Ela não havia tido oportunidade para produzir uma fotocópia.
– Debaixo deste primeiro nome vêm mais cinco. E se você estiver pensando em roubar esta lista das minhas mãos, eu juro: engulo o papel todinho antes que faça qualquer coisa.
Percebendo que ela não estava brincando, Elijah se recostou na cadeira e abriu um sorriso de satisfação, como se finalmente eles tivessem chegado ao fim de uma longa e difícil partida de xadrez.
– O que você quer? – perguntou ele.
– Quero a minha matéria de volta.
– Fechado.
– A Isobel que fique lá onde está, chupando dedo. Vou apresentar meu boletim daqui mesmo, do estúdio.
– Mas você é uma repórter de rua.
– Pode dizer ao Robert e à Marie que hoje eles não serão necessários. Vou precisar do jornal inteiro.
Um momento de hesitação.
– Tudo bem. Mais alguma coisa?
– Sim. Mantenha todas as portas trancadas até que eu termine, não abra para ninguém. Não posso deixar que me prendam antes de terminar.