Capítulo 10

Terça-feira, 1o de julho de 2014

8h28

Londres voltara à sua monocromia habitual, a cor do céu nublado roçando o cinza dos espigões altíssimos que projetavam suas sombras sobre o concreto da paisagem urbana.

Wolf ligou para Andrea no curto trajeto entre a estação de metrô e a New Scotland Yard. Ficou surpreso quando ela atendeu quase imediatamente, depois foi sua vez de surpreendê-la com uma inesperada cordialidade. Andrea jurou de pés juntos que sua única intenção havia sido contribuir com a polícia e se redimir de qualquer inconveniente que pudesse ter causado, argumentando que não podia ser tão ruim assim colocar o país inteiro à procura de Vijay Rana. Wolf não soube o que dizer para contra-argumentar apesar de todo o casuísmo da lógica, mas obrigou a ex-mulher a prometer que passaria a consultá-lo de antemão sempre que tivesse alguma informação mais polêmica para entregar à nação.

Chegando ao sétimo andar, ele deparou com Finlay debruçado no trabalho, falando ao telefone com alguém das Cortes de Justiça, ressaltando o aspecto “vida ou morte” daquela simples tarefa que eles ainda não haviam conseguido executar. Instalou-se na mesa mais próxima e deu uma rápida olhada na papelada deixada pelos detetives do turno da noite, que aparentemente não tinham muito a acrescentar. Na falta de ideia melhor, optou por dar prosseguimento ao trabalho deles, um longo e árduo exercício de paciência ao examinar cada item de um sem-número de extratos bancários, contas de cartão de crédito e históricos telefônicos.

Às 9h23, o telefone de Finlay tocou.

– Shaw falando. – Ele bocejou.

– Bom dia. Aqui é Owen Whitacre, do Arquivo Nacional. Desculpe ter demorado tanto para...

Finlay sinalizou para chamar a atenção de Wolf.

– E aí, conseguiram levantar o nome do cara?

– Felizmente, sim. Aliás, neste exato momento estamos enviando a vocês um fax com todas as certidões. Mas em vista do que... em vista do que descobrimos, achei que devia falar com o senhor pessoalmente.

– Descobriram o quê? Pode falar.

– Acontece que Vijay Rana nasceu Vijay Khalid.

Khalid?

– Exatamente. Então verificamos e descobrimos que ele tem um irmão mais novo: Naguib Khalid.

– Caraca...

– Perdão?

– Nada. Obrigado pela ajuda – disse Finlay, e desligou.

Simmons imediatamente designou três pessoas para ajudar Wolf e Finlay a revirar o passado oculto de Rana. Os cinco se isolaram na sala de reuniões, longe da barulheira e das distrações do salão principal, e atacaram o trabalho com o furor conjunto da pressa e da esperança. Ainda tinham catorze horas e meia para encontrá-lo. Era tempo suficiente.

Edmunds sofria terrivelmente com um torcicolo após a noite mal dormida no inacreditável desconforto daquele maldito sofá. Na véspera chegara em casa (um dúplex singelo que um dia pertencera à prefeitura) por volta das oito horas, deparando com a sogra na cozinha, lavando a louça do jantar. Tinha se esquecido completamente do compromisso. Com as mãos cheias de espuma e a alegria de sempre, a mãe de Tia o recebera com um caloroso abraço, ficando na ponta dos pés para compensar minimamente a diferença de altura entre os dois. Tia, por sua vez, exibia uma tromba de proporções paquidérmicas. Percebendo a eletricidade no ar, a sogra se desculpara e saíra dali o mais depressa possível, tal como mandava a etiqueta da vida familiar.

– Faz quinze dias que a gente planejou esse jantar – disse Tia.

– Fiquei preso no trabalho, desculpa.

– Era pra você trazer a sobremesa, lembra? Tive de improvisar com um dos meus pavês.

Edmunds respirou aliviado. Sabia perfeitamente o que era “um dos meus pavês”. Arregimentando os seus talentos de ator, comentou:

– Puxa, que pena... Você podia ter guardado um pouquinho pra mim.

– Você não merece, mas guardei.

Oba. – Droga.

– Então é assim que vai ser nossa vida de agora em diante? Você faltando aos meus jantares e chegando tarde em casa com as unhas pintadas?

Edmunds timidamente começou a descascar o esmalte de uma das unhas.

– São oito e meia, Tia – falou. – Não é exatamente “tarde”.

– Quer dizer então que vai ficar pior? Vai?

– Pode ser que sim – disse ele, ríspido. – Meu trabalho agora é este, oras.

– Foi por isso que eu não queria que você saísse do Departamento de Fraudes – retrucou ela, erguendo a voz.

– Mas eu queria!

– Você não vai poder continuar tão egoísta assim depois que o nosso filho nascer!

– Egoísta, eu? – berrou ele de volta, mal acreditando no que tinha ouvido. – Só porque estou me matando de trabalhar pra ganhar o dinheiro que a gente precisa pra formar uma família? Você acha que a gente vai viver do quê? Do seu salário de cabeleireira?

Ele se arrependeu imediatamente do que disse, mas o estrago já estava feito. Tia disparou escada acima e se trancou no quarto, batendo a porta com força. Agora não havia mais o que fazer, senão deixar para se desculpar depois. No entanto, ela ainda não tinha acordado quando, na manhã seguinte, ele precisou sair para o trabalho. Firmou consigo o compromisso de levar um buquê de flores quando voltasse mais tarde.

A detetive Emily Baxter estava à sua espera quando ele enfim chegou à mesa que dividiam. Com sorte não perceberia que ele estava vestindo a mesma camisa do dia anterior (as outras estavam passadinhas no armário, mas dentro de um quarto trancado) e que não conseguia virar a cabeça para a direita. Ela vinha falando com ortopedistas e fisioterapeutas sobre cirurgias de reconstrução da perna e, ao vê-lo, mandou que investigasse o que fosse possível sobre o anel de prata.

Pesquisando no celular, Edmunds identificou a joalheria mais próxima, voltou à rua e foi a pé até o distrito de Victoria. Na loja foi recebido por um exuberante vendedor que logo se dispôs a ajudar, visivelmente empolgado com todo o drama envolvido na situação. Em seguida foi conduzido até uma sala de fundos, onde o luxo de cristais e veludos da loja dava lugar à mundanidade de uma série de cofres pesados, equipamentos de lapidação, ferramentas sujas e um monitor com as imagens gravadas pelas câmeras secretas que vigiavam cada uma das dezenas de vitrinas blindadas.

Um ourives desmazelado e suarento – escondido ali feito um leproso para não ferir as sensibilidades da clientela endinheirada – levou o anel para a sua estação de trabalho e usou uma lupa para examinar a face interna do aro.

– Platina da melhor qualidade, chancelado pelo Assay Office de Edimburgo e confeccionado em 2003 por alguém cujas iniciais são TSI – revelou ele. – O pessoal de Edimburgo seguramente vai saber informar de quem é este selo de contraste.

– Uau. Muito obrigado. Sua ajuda foi muito importante – disse Edmunds, rabiscando suas anotações, surpreso por ter sido possível extrair tanta informação de símbolos tão estranhos e minúsculos. – Quanto valeria um anel desses no mercado de hoje? – quis saber.

O ourives colocou o anel na bandeja de uma balança, depois abriu uma das gavetas, tirando dela um catálogo já bastante surrado.

– Não é uma joia de grife, o que puxa o valor um pouco pra baixo – adiantou. – Mas temos anéis semelhantes avaliados em torno de 3 mil libras.

– Três mil libras? – espantou-se Edmunds, e por um instante lembrou-se da briga com Tia na noite anterior. – Pelo menos isso dá uma ideia sobre o poder aquisitivo da vítima.

– Ou sobre muito mais – disse o homem com absoluta convicção. – Este deve ser o anel mais sem graça que já vi em toda a minha vida. Nenhum valor artístico. Muito mais uma questão de ostentação, de materialismo, que de substância. Seria mais fácil andar por aí com um maço de dinheiro na mão. Este é o anel de uma pessoa essencialmente materialista.

– Caramba, o senhor devia vir trabalhar com a gente – brincou ­Edmunds.

– Que nada – disse o outro. – Sei que a polícia paga uma merreca.

Até a hora do almoço a sargento Baxter já havia telefonado para mais de quarenta hospitais. Também distribuíra um bom número de e-mails com uma cópia da radiografia e uma foto da cicatriz quando um dos cirurgiões se apresentou como o autor da complexa cirurgia, voltando a ligar cinco minutos depois para dizer que jamais deixaria uma cicatriz tão horrenda e que não tinha mais nenhuma contribuição a dar. Na falta de uma data e de um número de série, aqueles dados eram simplesmente vagos demais.

Ela espiou Wolf na sala de reuniões. Viu que ele também estava pendurado ao telefone, trabalhando freneticamente com sua equipe na localização de Vijay Rana. Ainda não havia sequer mencionado o fato de que o nome dele estava na lista do assassino, talvez porque não soubesse muito bem que tipo de reação ele esperaria dela. Agora, mais do que nunca, não tinha a menor ideia do que eles significavam um para outro. Contudo, admirava que ele tivesse buscado refúgio e forças no próprio trabalho. Outros mais fracos teriam desmoronado psicologicamente, fugido para algum fim de mundo ou procurado algum tipo de consolo nas pessoas mais próximas. Wolf não. Pelo contrário, parecia ter ficado ainda mais forte, mais determinado, mais como o homem que ela havia conhecido durante o caso do Cremador: uma bomba-relógio ao mesmo tempo eficiente, implacável e autodestrutiva. Ninguém havia notado ainda a sutil mudança no seu comportamento, mas talvez fosse uma questão de tempo.

Edmunds fizera um belo progresso com seu anel. Já tinha contatado o Assay Office de Edimburgo e descoberto que o tal selo de contraste com as iniciais TSI pertencia a uma ourivesaria independente no centro histórico da cidade, à qual ele já havia enviado uma foto do anel junto com as dimensões aproximadas. Enquanto aguardava pela resposta dos escoceses, procurava ocupar a cabeça comparando os novos esmaltes de unha que havia comprado mais cedo: a caminho do trabalho, passara por duas drogarias diferentes e agora era o orgulhoso proprietário de outros seis frascos cintilantes, nenhum dos quais parecia bater com os dois tons de roxo que ele vinha procurando.

– Você está um lixo – observou sua chefe após o telefonema para mais um hospital.

– Não dormi muito bem, só isso – disse Edmunds.

– Ontem você estava usando essa mesma camisa.

– Estava, é?

– Em três meses de convivência nunca vi você usar a mesma camisa duas vezes seguidas.

– Não sabia que você era tão observadora.

– Vocês brigaram – afirmou ela, divertindo-se talvez mais do que devia com a reticência dele. – E você dormiu no sofá, não foi? Todos nós já passamos por isso um dia.

– Se você não se importar, será que podemos falar de outro assunto? – pediu ele.

– E então? Qual foi o motivo da briga? Ela não gosta que você trabalhe com uma mulher, é isso? – provocou Emily, rodopiando na cadeira para encará-lo e bater os cílios feito uma loura fatal.

– Não.

– Ela perguntou como foi seu dia e você se deu conta de que não tinha nada pra contar que não envolvesse cadáveres mutilados e prefeitos incinerados, certo?

– Também não. Conversamos sobre esmaltes – devolveu Edmunds, erguendo os dedos pintados, para provar que não se deixaria irritar assim tão facilmente.

– Nesse caso... aposto que esqueceu alguma data importante. O aniversário dela, o aniversário de namoro... – Vendo no silêncio dele um sinal de que estava no caminho certo, Baxter permaneceu com os olhos plantados no garoto, pacientemente esperando pela resposta.

– Jantar com a sogra – balbuciou ele.

Emily irrompeu numa sonora gargalhada.

Jantar com a sogra? Ah, fala pra ela se ligar. Estamos tentando pegar um assassino em série, porra. – A detetive se inclinou como se fosse confidenciar um segredo. – Teve uma vez que eu estava de rolo com um cara aí. Perdi o enterro da mãe dele porque estava perseguindo um barco no Tâmisa! – disse, e mais uma vez começou a rir.

Edmunds riu também, mas se sentiu culpado por não ter tomado o partido da noiva, por não ter explicado que ela ainda estava se adaptando às circunstâncias do seu novo cargo na polícia. Ao mesmo tempo gostou de trocar figurinhas com sua parceira de trabalho.

– Nunca mais tive notícias do fulano – emendou ela, deixando a risada morrer aos poucos.

Edmunds ficou com a impressão de que havia detectado uma pontinha de tristeza naquela acintosa demonstração de segurança, uma rápida centelha de dúvida talvez ao cogitar como as coisas poderiam ter sido se ela houvesse optado por um caminho diferente.

– Só quero ver quando chegar o dia que o seu moleque nascer e você simplesmente não puder dar as caras na maternidade porque está preso na cena do crime.

– Isso não vai acontecer – rebateu Edmunds.

– Será? – insistiu ela, e girou a cadeira para retomar os telefonemas, dizendo enquanto apertava as teclas: – Casamento. Detetive. Divórcio. Pode perguntar pra qualquer um nesta sala. Casamento. Detetive. Divórcio. Ah, boa tarde, quem fala aqui é a sargento-detetive da Polícia Met...

Simmons saiu da sua sala e parou um instante ao ver a pilha de fotografias da necropsia que Baxter havia deixado sobre a mesa vaga de Chambers.

– Quando é que ele volta das férias? – perguntou.

– Não faço a menor ideia – respondeu ela, cobrindo o bocal do telefone enquanto esperava para ser transferida para mais um departamento de fisioterapia.

– Era pra ser hoje, tenho quase certeza.

Ela deu de ombros como se dissesse que não estava nem um pouco interessada no assunto.

– O malandro já me deixou na mão por uma semana quando aquele vulcão entrou em erupção não sei onde, anos atrás – disse Simmons. – Vou ficar muito puto se ele agora disser que está “preso” no Caribe por um motivo semelhante. Dá uma ligada pra ele, por favor.

– Liga você mesmo – disparou Emily, irritada ainda mais com a música de Will Young que tocava do outro lado da linha.

– Estou esperando um telefonema da comandante. Anda, liga aí.

Sem largar o telefone fixo, a detetive Baxter pegou seu celular e ligou para a casa de Chambers, cujo número ela sabia de cor. Foi atendida pela secretária eletrônica.

– Chambers! Aqui é a detetive Baxter. Cadê você, seu filho da puta preguiçoso? Merda. Espero que os moleques não estejam ouvindo. Ei, Arley e Lori! Se estiverem aí, ignorem o “filho da puta”. E o “merda” também, ok? – Foi então que alguém atendeu na ligação com o hospital, pegando-a de surpresa. – Bosta! – deixou escapar, mas não a tempo de desligar o celular.

Quanto mais o tempo passava, maior era a frustração de Wolf. Às duas e meia da tarde ele recebeu uma ligação do policial que enviara até a casa de um primo de Rana: mais um tiro n’água. Podia jurar que Rana e sua família vinham contando com a proteção de parentes e amigos: fazia cinco meses que o homem havia desaparecido com seus dois filhos a tiracolo, duas crianças em idade escolar, difíceis de esconder diante dos acontecimentos daquela última semana.

Ele esfregou os olhos cansados, depois viu Simmons andando de um lado para outro no interior da sua sala, driblando o esporro dos superiores enquanto zapeava pelos canais de televisão à procura das bombas mais recentes.

Outros trinta minutos de total improdutividade se passaram até que Finlay gritou:

– Bingo!

Wolf e os outros interromperam o que vinham fazendo para ouvi-lo.

– Quando a mãe de Rana morreu em 1997, deixou sua casa para os dois filhos. Eles nunca chegaram a vendê-la, mas alguns anos depois passaram o imóvel pro nome da filha recém-nascida de Rana. Mais uma falcatrua fiscal, sem dúvida alguma.

– Onde fica essa casa? – perguntou Wolf.

– Estrada Lady Margaret, em Southall.

– Só pode ser lá.

Wolf perdeu no par ou ímpar, então coube a ele interromper a ligação de Simmons e arrastar o chefe até a sala de reuniões para que ouvisse de Finlay a última novidade. Eles decidiram que Wolf e Finlay iriam sozinhos buscar Rana: diante das circunstâncias, discrição era fundamental para a sobrevivência do homem. E tanto melhor que a imprensa continuasse a desancá-los publicamente, repetindo a toda hora que eles ainda não haviam conseguido localizá-lo. O prazer seria dobrado quando o apresentassem são e salvo na manhã de quinta-feira.

Simmons aventou a possibilidade de usar os seus contatos no Serviço de Proteção Civil, muito mais preparado que a polícia no transporte e no alojamento clandestino de pessoas juradas de morte, para que dividissem a responsabilidade pela proteção de Rana, e já estava com o telefone na mão para chamá-los quando alguém bateu de leve à porta.

– Agora não! – berrou ele quando viu uma jovem oficial entrar timidamente na sala. – Eu disse que agora não!

– Desculpe interromper, senhor, mas acabamos de receber uma ligação. Acho que o senhor vai querer atender.

– E por que a senhorita pensa isso? – devolveu ele, condescendente.

– Porque Vijay Rana acabou de se apresentar na delegacia de Southall.

– Ah.