Capítulo 20

Sexta-feira, 4 de julho de 2014

18h10

Wolf descobriu ao acordar que estava novamente em Londres. Ele e Finlay tinham se despencado para o outro lado do país para entregar Andrew Ford aos oficiais do Serviço de Proteção Civil. Nenhum dos dois sabia qual seria o destino final do segurança irlandês, mas ambos podiam jurar que era algum lugar na região sul do País de Gales: o próprio pessoal do Serviço havia marcado de encontrá-los no estacionamento do Reservatório Pontsticill, no interior do Parque Nacional de Brecon Beacons.

Ford se revelara uma péssima companhia naquela viagem de quatro horas, sobretudo após saber da morte prematura de Jarred Garland pelos noticiários do rádio. Wolf tinha tentado falar com Emily quando eles pararam num posto de gasolina, mas as chamadas haviam caído na caixa postal. Também no posto Finlay tivera a brilhante ideia de comprar uma garrafa de vodca na esperança de calar seu passageiro com a bebida.

– Um presentinho pra você, Andrew – disse ele ao voltar para o carro. Vendo que o outro não se mexia, exalou um suspiro de resignação, depois falou: – Tudo bem. Um presentinho pra você, Santo Andrew, assistente de infanticida.

Ford já havia alugado os ouvidos de ambos com a história da sua façanha de ter salvado o Cremador das garras de certo lobo feroz porém honrado, e desde então vinha se recusando a responder ao que quer que fosse se não o chamassem pelo nome completo. Também arruinara a viagem ao se recusar a deixar sua pocilga naquela manhã, atrasando a saída em muitas horas e obrigando-os a retornar para a capital na pior hora do dia: a do rush.

Pelo menos o reservatório em si fora uma grata surpresa. Como se não bastasse a beleza da paisagem – a vastidão do lago, os reflexos do sol na água límpida, o verde das florestas vizinhas –, havia ainda a peculiaridade do vertedouro boca-de-sino, uma garganta que se abria na superfície para engolir a água sempre que era necessário mantê-la nos níveis desejados. Acima do vertedouro, uma ponte metálica unia a borda do lago àquilo que parecia ser a torre de pedra de um castelo submerso, com janelas arqueadas, um telhadinho de cobre patinado e o galo de um cata-vento empoleirado no alto como se tivesse subido ali para escapar à inundação do castelo imaginário. Wolf e Finlay haviam descido do carro para respirar um pouco do ar galês e admirar o cenário antes de retomar a viagem.

Wolf bocejou sonoramente e se empertigou no banco do carro para ver onde estava.

– Dormiu bem? – perguntou Finlay.

Fiel à sua promessa, engoliu um palavrão quando um Audi arrogantemente o ultrapassou para não parar no sinal.

– Pra falar a verdade, nem em casa eu durmo bem.

Finlay olhou para o amigo e disse:

– O que você ainda está fazendo aqui, cara? Está esperando o que pra entrar num avião e sumir do mapa?

– Sumir como? Minha cara feia está estampada na primeira página de todos os jornais do planeta.

– Sei lá. Floresta Amazônica, deserto australiano... entrar debaixo de uma pedra e só sair depois que tudo isso passar.

– Não dá pra viver assim, com medo da minha própria sombra.

– Melhor do que não ter sombra nenhuma.

– Se a gente pegar o cara... pronto, resolvido.

– E se não pegar?

Wolf apenas deu de ombros, sem saber o que responder. O sinal abriu, Finlay arrancou.

Andrea foi recebida com uma salva de palmas ao entrar na redação do jornal. Muitos tapinhas nas costas, muitas felicitações. Ainda tinha na blusa os respingos de sangue falso que não conseguira limpar no banheiro do hospital. Inquietava-se terrivelmente com o estado de Rory, que permanecera internado para a irrigação periódica das queimaduras, uma ação contra o ácido que após oito horas ainda comia suas carnes por dentro. Segundo o especialista, era bem provável que ele perdesse o polegar da mão direita, bem como os movimentos do indicador caso houvesse mais danos aos nervos.

Os aplausos foram se dissipando quando ela sentou à sua mesa. As imagens de Garland sendo queimado vivo passavam em câmera lenta nos monitores da sala, exibidas pela centésima vez no dia. A câmera largada por Rory havia capturado tudo, a rachadura na lente emoldurando a cena com perfeição. Andrea revirou os olhos, enojada depois de encontrar e ler o bilhete deixado por Elijah: “Desculpa, precisei dar uma saída. Hoje você brilhou. Reunião na segunda-feira bem cedo pra discutirmos seu futuro na emissora: você fez por merecer. Elijah.”

O tal “futuro” com certeza significava a posição permanente de âncora com a qual ela tanto sonhara, mas, em vez da alegria esperada, Andrea sentiu um vazio no peito. Sem prestar muita atenção no que estava fazendo, rasgou o envelope pardo que encontrou na bandeja das correspondências. Algo caiu sobre a mesa: uma estranha espiral metálica. Dentro do envelope havia uma foto de Rory deixando o hotel. Imediatamente ela enviou uma mensagem de texto para Emily Baxter. Mesmo sabendo que aquela segunda mensagem do assassino renderia mais um furo de reportagem e que fortaleceria ainda mais sua posição na emissora, ela recolocou a foto e a espiral no envelope e o trancou na gaveta. Não tinha a menor intenção de continuar naquele jogo.

As velas mal equilibradas no centro da mesa de jantar eram ao mesmo tempo um toque romântico e um risco de incêndio. Coubera a Tia fechar o salão, portanto Edmunds chegara em casa antes dela e fora direto para a cozinha preparar o jantar. Deparando com tamanha demonstração de carinho, Tia abrira um sorriso de orelha a orelha e guardara no congelador a porção individual de comida que havia comprado na rua. Eles curtiam então a tranquilidade do seu jantar a dois, turbinado com uma garrafa de vinho branco e uma sobremesa comprada no supermercado, assim como tinham feito tantas vezes até a transferência de Edmunds.

Antes de sair do trabalho ele imprimiu uma boa pilha de casos antigos para estudar em casa depois que Tia fosse dormir. Guardara-os em cima dos armários da cozinha, onde a noiva de 1,50 metro dificilmente os encontraria. Já os havia esquecido completamente até que o papo deu uma guinada para o seu novo cargo na polícia.

Inconscientemente afagando sua barriga de grávida, Tia perguntou:

– Você estava lá? Quando o jornalista...

– Não.

– Mas sua chefe estava, não estava? Aquela comandante indiana mencionou o nome dela, eu ouvi.

– Emily? Na verdade ela não é minha chefe. Ela é... bem, pra todos os efeitos ela é minha chefe, sim.

– Então... o que você estava fazendo enquanto essa loucura toda acontecia?

Estava mais do que óbvio que Tia vinha se esforçando para demonstrar algum interesse no trabalho dele. As informações eram confidenciais, claro, mas ele não podia simplesmente alienar a noiva. Então decidiu revelar apenas os aspectos menos relevantes da investigação: além de matar um pouco da curiosidade dela, provavelmente a deixaria mais tranquila ao pintar seu papel na equipe como mais desimportante do que de fato era.

– Você viu as fotos do Boneco de Pano nos jornais, não viu? Bem, o braço direito pertencia a uma mulher.

– Quem?

– Isso é o que estou tentando descobrir. Ela estava usando dois tipos diferentes de esmalte nas unhas, o que pode nos dar uma pista quanto à identidade dela.

– Dois tipos de esmalte na mesma mão?

– O polegar e três outros dedos estavam pintados com Crushed Candy, mas o do mindinho era bem diferente.

– Mas você acha que vai descobrir quem ela é só com o esmalte?

– Por enquanto é o que temos – disse Edmunds.

– Então tem de ser um esmalte bem especial, né? – palpitou Tia. – Quer dizer, senão...

– Especial? Como assim?

Edmunds ergueu suas antenas.

– Tipo... Tem uma perua que toda semana vai fazer as unhas no salão e a Sheri precisa encomendar um esmalte só pra ela: um esmalte que vem com flocos de ouro dentro, ouro verdadeiro ou alguma outra palhaçada dessas. Não vendem nas lojas porque é muito fácil de roubar e cada frasco custa mais ou menos 100 libras.

Edmunds tomou a mão dela e disse:

– T, você é um gênio!

Bastaram trinta minutos de pesquisa na internet para que eles descobrissem juntos as principais marcas de esmaltes absurdamente caros e ­Edmunds teve a impressão de que finalmente havia encontrado o que procurava: uma edição limitada da Chanel chamada Feu de Russie 347.

– Um frasco desse esmalte chegou a ser vendido por 10 mil dólares na Semana de Moda de Moscou de 2007! – exclamou Tia, lendo no computador enquanto Edmunds servia mais vinho para ambos.

– Dez mil dólares por um frasco de esmalte? – disse ele, pasmo.

– Provavelmente num leilão de caridade ou algo parecido. Mesmo assim imagino que não tenha muita gente no mundo com um esmalte desses dentro da bolsa.

A detetive Baxter havia recebido uma mensagem de texto do novato, pedindo que ela o encontrasse na loja Chanel da rua Sloane às dez da manhã. Ao lembrá-lo de que seria afastada do caso na segunda-feira seguinte, ouvira de volta apenas um lembrete: ainda era sábado.

Ela já estava atrasada, tinha dormido mais que a cama e agora se via presa atrás de um cadeirante na multidão que enchia a calçada. Após a morte horrenda de Garland, sua vontade era se trancar em casa e vegetar na segurança do seu sofá, exatamente o que ela havia feito na noite anterior, esvaziando duas garrafas de vinho diante da televisão.

Quando o cadeirante ficou preso no gradil de um bueiro, ela aproveitou a oportunidade para ultrapassá-lo e encontrou Edmunds à sua espera mais adiante na rua. Vinha pensando bastante na hipótese levantada pelo novato de que havia um informante na equipe. Quanto mais refletia, mais achava a ideia absurda. Wolf, claro, estava fora de questão. Finlay era plenamente confiável. Simmons também, inclusive vinha enfrentando medidas disciplinares por ter tomado o partido dela. Quanto ao próprio Edmunds... bem, ela jamais admitiria isso na frente do garoto, mas confiava nele tanto quanto nos demais.

Recebeu o café morno que ele havia comprado em algum lugar, depois ouviu com paciência a história sobre a contribuição de Tia no jantar da véspera. Gostou que ele tivesse voltado a tratá-la como a chefe mal-humorada de sempre, sem os abraços de comiseração da tarde anterior, por mais bem-vindos que tivessem sido. A confiança que ele depositava nela bastava para fortalecer sua confiança em si mesma.

Uma gerente viera da loja principal da Oxford Street para encontrá-los na loja da rua Sloane. A mulher, por sorte eficientíssima, passara mais de uma hora fazendo telefonemas e verificando faturas para ajudá-los. Com isso produzira uma lista de dezoito transações, sete das quais possuíam nomes e endereços de entrega.

– Outros frascos foram enviados para uso em leilões, premiações e eventos filantrópicos – explicou ela. – As pessoas das quais possuímos os dados de contato, claro, são as nossas melhores clientes.

Emily estranhou quando ela se calou para examinar algo na sua lista.

– Algum problema? – perguntou.

– O Sr. Markusson... É um dos nossos clientes lá da Oxford Street.

A policial pegou a lista e leu com os próprios olhos.

– Diz aqui que ele mora em Estocolmo.

– Divide seu tempo entre Estocolmo e Londres. Ele e a família possuem imóveis em Mayfair. Tenho quase certeza de que tenho um endereço de entrega. Se vocês puderem esperar um minutinho...

A mulher ligou novamente para a matriz e Emily cochichou para ­Edmunds:

– Aposto que neste exato momento o Sr. Markusson deve estar peladão lá na Suécia, fazendo sua sauninha de sábado.

– Que nada – disse a gerente, afastando o celular de modo teatral. – Ele veio ontem pra Londres.

Simmons fizera questão de voltar para a mesa de Chambers. Várias pessoas já o haviam procurado com problemas banais – trocas de turno, solicitações de férias –, mas ele se recusara a ouvi-las, atendo-se apenas às questões mais urgentes para poder se concentrar no pepino que tinha nas mãos.

Sua mulher não havia digerido muito bem a notícia de que ele corria o risco de ser rebaixado, e boa parte da noite anterior fora consumida na tentativa de acalmá-la: eles ainda conseguiriam continuar pagando as mensalidades da hipoteca e viajando nas férias de verão. De um jeito ou de outro acabariam se virando. Sempre se viravam.

Ele agora enfrentava a excruciante tarefa de cotejar nome por nome a lista preparada por Edmunds, contendo todas as pessoas envolvidas no julgamento de Khalid, com o banco de dados de Pessoas Desaparecidas. Ainda não estava totalmente convencido, como o garoto, de que todos os assassinatos tinham algum vínculo, ainda que remoto, com a figura de Naguib Khalid. Contudo, isso era tudo que ele tinha nas mãos até o momento.

Sua concentração começava a fraquejar quando, no 57o nome da lista, ele enfim tropeçou numa paridade. Abrindo o relatório assinado pela própria Polícia Metropolitana, viu que a data era 29 de junho, o domingo seguinte à descoberta do Boneco no apartamento de Kentish Town. Só podia ser uma das três vítimas ainda não identificadas.

– Filho da puta... – sussurrou Simmons.

A residência londrina do sueco era uma casa geminada de quatro andares e ficava numa rua secundária, arborizada mas relativamente movimentada, de Mayfair. Baxter e Edmunds precisaram bater duas vezes à porta antes de ouvirem passos do outro lado. Foram atendidos por um homem de ombros largos com uma xícara de café na mão e um telefone espremido entre a orelha e o ombro, visivelmente musculoso sob a camisa de aspecto caro e as calças jeans. Os cabelos eram muito louros e compridos, mas com um corte definido, e o rosto exalava o perfume forte de uma loção pós-barba.

– Pois não? – disse ele com impaciência.

– Sr. Stefan Markusson?

– Eu mesmo.

– Somos da Polícia Metropolitana. Precisamos fazer algumas perguntas.

Ao contrário da primeira impressão que havia causado, Markusson os recebeu de modo descontraído e afável. Convidou-os a entrar e Emily pensou adentrar o cenário de um filme de ficção científica ambientado num palacete setecentista. Na sala principal, uma parede inteira dera lugar a portas de vidro que se abriam para um jardim interno. Ela lembrou-se de Rory, o cinegrafista, pensando que ele adoraria tudo aquilo. Tiraria algumas fotos caso o anfitrião os deixasse sozinhos em algum momento.

Markusson pediu que sua adorável filha subisse para o quarto quando ela apareceu para ver quem tinha chegado e a linda Sra. Markusson, com seus dois braços inteiros, saiu da sala para preparar um chá gelado. Edmunds já começava a achar que aquilo era uma grande perda de tempo, mas Emily, do alto da sua experiência, sabia que eram as amantes, e não as esposas, que costumavam receber os presentes mais extravagantes e caros. O mais provável era que na ausência da mulher o sueco fosse bem mais franco nas suas respostas.

– Então, em que posso ajudá-los? – disse Markusson, agora com um sotaque mais perceptível.

– Sabemos que o senhor esteve em Moscou em abril de 2007 – revelou a detetive.

– Abril de 2007...? – repetiu o homem, olhando para o alto. – Sim, na semana de moda. Minha mulher... ela arrasta a família inteira pra ver esses desfiles.

– Gostaríamos de saber um pouco mais sobre algo que o senhor comprou nesta viagem. – A detetive se calou, esperando que o sueco se lembrasse da sua compra de 10 mil dólares. Mas não lembrou. – Um frasco de esmalte Chanel?

Exatamente nesse instante a Sra. Markusson voltou com o chá e ­Emily não pôde deixar de perceber o desconforto estampado no rosto do ­marido.

– Por que você não sobe pra ficar com a Livia? – sugeriu ele, ­acariciando-a no braço. – Daqui a pouco eu vou também.

A policial revirou os olhos quando a loura escultural obedeceu sem questionar. Esperou que ela sumisse de vista e, bem mais incisiva, retomou o assunto:

– O esmalte de 10 mil dólares?

– Foi pra uma mulher que conheci aqui em Londres. Naquela época eu viajava muito e... sabe como é, a gente acaba se sentindo sozinho e...

– Francamente não estou nem um pouco interessada – interrompeu Emily. – Como se chama a mulher?

– Michelle.

– Sobrenome?

– Gaily, eu acho. Saíamos pra jantar quando eu estava na cidade. Ela adorava essas grifes de moda, então dei a ela esse presente.

– Como foi exatamente que vocês se conheceram? – perguntou a detetive.

Markusson pigarreou, depois respondeu:

– Num site de relacionamentos.

– Ou de adultérios – disparou ela.

Markusson não reagiu. Aparentemente achou a farpa merecida.

– Michelle não era uma mulher rica, por isso lhe dei o presente – explicou ele. – Pra evitar complicações, achei prudente me envolver com alguém de um nível social, digamos... diferente.

– Imagino que sim.

– Quando foi a última vez que o senhor a viu? – perguntou Edmunds, com seu caderno em punho.

Distraidamente ele deu um gole no seu chá e babou no canto da boca. Sua chefe virou o rosto para não ver.

– Terminei com ela quando minha filha nasceu em 2010.

– Muito digno da sua parte. Eu acho.

– Nunca mais tive notícias dela. Engraçado...

– O quê? – perguntou Emily.

– Pensei na Michelle diversas vezes nesta última semana, provavelmente por causa dessas coisas todas que os jornais estão noticiando.

Baxter e Edmunds se entreolharam.

– Que coisas? – perguntaram eles juntos.

– O Cremador, que apareceu morto dias atrás. Naguib Khalid, é esse o nome dele, não é? Na última vez em que esteve comigo, Michelle ficou falando nele por um bom tempo. Foi um momento importante na carreira dela.

– O quê? – perguntaram os dois novamente juntos.

– Khalid ter caído nas mãos dela – respondeu Markusson. – Ela era a agente social responsável pela inspeção da condicional dele.