Capítulo 27
Quinta-feira, 10 de julho de 2014
7h07
Um sol forte invadia a porta aberta, fazendo os seus desenhos geométricos sobre a cama. Wolf abriu os olhos. Estava sozinho no quarto de Emily, vestido da cabeça aos pés sob as cobertas. Havia despertado com o barulho de uma esteira ergométrica. À custa de muito esforço, levantou-se e calçou os sapatos que havia chutado para debaixo da cama. Depois saiu para a sala ensolarada e acenou mecanicamente para ela, que vestia uma malha de ginástica e ainda tinha os cabelos presos no rabo de cavalo torto que ele mesmo fizera na véspera. Se não a conhecesse melhor, diria que sua amiga estava descansada e revigorada. Sabia que ela tinha essa capacidade de se recompor com rapidez – o que explicava, pelo menos em parte, como ainda conseguia esconder de muita gente os seus problemas com a bebida.
Brilhando de suor na sua corrida frenética, Emily não disse nada quando ele foi para a cozinha aberta com a intenção de fazer um café.
– Você ainda tem...? – começou ele.
Irritada, ela retirou os fones de ouvido.
– Você ainda tem escovas de dente novas em casa?
Havia entre eles um acordo tácito segundo o qual Emily sempre mantinha em casa um kit extra de produtos de higiene caso ele tivesse de pernoitar ali numa situação de emergência, o que se tornara bastante comum em certa fase da vida dela. Não era de espantar que Andrea tivesse começado a suspeitar da amizade entre eles, por mais inocente que fosse.
– Última gaveta do banheiro – respondeu ela, ríspida, rapidamente voltando com o fone para o ouvido.
Wolf podia ver que ela estava cavando uma briga, mas decidiu que não morderia a isca. Aquele era um comportamento típico de Emily Baxter: sempre que ela se envergonhava de alguma coisa, ficava agressiva.
A água ferveu e Wolf ergueu uma caneca, silenciosamente perguntando se ela queria um café.
– Que foi?! – disse ela, arfando, novamente arrancando os fones.
– Só estava perguntando se você queria um café.
– Eu não bebo café. Você, mais do que ninguém, devia estar careca de saber. Só bebo vinho e esses coquetéis ridículos que vendem por aí.
– Ok. Não quer café.
– É isso que você pensa de mim, não é? Coitadinha dela! Coitadinha da alcoólatra que não sabe se cuidar! Vai, confessa.
Wolf já começava a fraquejar na decisão de não morder a isca.
– Não, não é isso que eu penso de você. Mas, voltando à questão do café...
– Não pedi pra você dormir aqui. Dormiu porque quis. Mas agora você pode ir embora com este seu nariz em pé e esta sua cara de santo, achando que é melhor que os outros. – Quanto mais ela esbravejava, mais ia ficando sem fôlego. – Quer me fazer um favor? Da próxima vez, me poupa.
– Pois é, eu devia ter te poupado ontem à noite também – berrou ele de volta. – Devia ter deixado você caída no banheiro daquele bar e terminado meu jantar em paz.
– Ah, claro, o seu jantarzinho com Ashley Lochlan. Que lindo... Acho que esse relacionamento tem tudo pra dar certo, sabia? Desde que nenhum dos dois seja brutalmente assassinado nos próximos quatro dias!
– Estou saindo pra trabalhar – disse Wolf, indo para a porta. – Obrigado pela hospitalidade.
– Não entendo por que você está fazendo isso consigo mesmo – gritou ela às costas dele. – É como dar um nome pra vaca no matadouro!
Wolf bateu a porta o mais forte que pôde, derrubando da parede um pôster com a paisagem urbana de Nova York. Afogando-se na própria adrenalina, Emily aumentou a velocidade da esteira, recolocou os fones e aumentou o volume da música.
Wolf ainda fumegava quando chegou ao trabalho e foi para a mesa de Finlay, que estava ansioso para saber como havia sido o encontro dele com Ashley Lochlan.
– Porra, por que você foi fazer uma coisa dessas comigo? – disparou Wolf.
– Fazer o quê, homem?
– Contar pra Emily sobre o meu jantar com a Lochlan!
– Olha, eu bem que tentei, mas ela sabia que eu estava escondendo algo.
– Então devia ter inventado outra coisa, caralho!
– Ah, é? Inventado outra coisa...
Wolf viu quando o pacato Finlay, geralmente o boa-praça do departamento, reencarnou o escocês feroz, o guardinha truculento que ele fora um dia nas ruas de Glasgow. Então tirou as mãos dos bolsos, caso precisasse reagir com rapidez. Conhecia a fama que o outro tinha por seu gancho de esquerda.
– É isso que os amigos fazem. Quebram o galho um do outro.
– Também sou amigo da Emily.
– Mais um motivo. Você acabou magoando a garota.
– Eu acabei magoando a garota? Eu? – disse Finlay, mas de um modo plácido, o que nunca era bom sinal. – Faz anos que vejo você cozinhando a Emily. Não sei o que vocês têm um com o outro, mas, seja lá o que for, você já perdeu um casamento por causa disso. Mesmo assim não larga o osso. Das duas, uma: ou você realmente gosta dela mas não tem colhões suficiente para assumir o compromisso ou não gosta e não tem o colhão de tirar o time de campo. Seja como for, você só tem quatro dias pra se tornar um homem de verdade.
Wolf ficou sem palavras. Não estava acostumado a vê-lo tomar o partido de outra pessoa.
– Vou sair – disse Finlay. – Tenho uma pista aí pra investigar.
– Vou com você.
– Não vai, não.
– A gente tem uma reunião de follow-up às dez, esqueceu?
– Quebra esse galho pra mim – ironizou Finlay.
Deu um tapa nas costas de Wolf e saiu.
Às 9h05, Wolf ignorou mais uma chamada da Dra. Preston-Hall, a psiquiatra; podia apostar que ouviria o telefone tocar na sala da comandante a qualquer momento. Finlay tinha saído pisando duro; Baxter acabara de gritar com alguém no seu canto da sala.
Edmunds não notava nada disso. Passara os últimos dez minutos preparando os documentos que pretendia mostrar a Wolf, curioso para saber qual seria a reação dele. Recolheu a papelada e saiu com ela entre os braços, mentalmente repetindo as palavras que havia decorado de antemão. Parou diante do detetive e, sem nenhum preâmbulo, disse:
– Gabriel Poole Junior, 2009.
Pensou ter visto nos olhos dele a fugidia centelha de alguém que reconhece um nome, mas Wolf apenas suspirou com impaciência, depois falou:
– Por acaso devo saber quem é?
Edmunds ficou desapontado, mas não se deixou abater.
– Eu imaginava que sim – disse. – Herdeiro de um império da indústria eletrônica, sumiu do seu quarto de hotel, o corpo nunca foi encontrado. Lembrou agora?
– Olha, não quero ser mal-educado, mas será que não tem outra pessoa com quem você falar disso? Não estou muito a fim de papo.
Edmunds pensou então que não havia se explicado direito.
– Desculpa. Vou começar de novo. Andei pesquisando uns casos antigos no arquivo e...
– Falei pra você não fazer isso, não falei?
– Falou, mas fica tranquilo. Fiz tudo fora do horário do expediente. Então, encontrei um...
– Espera aí, rapaz. Não tem “então” nem “meio então”. Se um superior dá uma ordem, você cumpre! – berrou Wolf, chamando para si toda a atenção. Levantou-se da mesa e foi saindo.
– Se você me d-der uma chance de explicar... – gaguejou ele. Não conseguia entender como a conversa podia ter desandado daquela forma, mas também não estava nem um pouco disposto a jogar a toalha. Tinha perguntas importantes que precisavam de resposta. – Encontrei algo realmente promissor...
Wolf voltou à mesa e Edmunds, vendo nisso uma disposição para ouvir, ofereceu a ele o primeiro dos seus documentos. Wolf puxou o calhamaço para si e arremessou no chão. Houve quem risse ou assobiasse, adolescentes atiçando uma briga no colégio. Emily se aproximou e Simmons, reassumindo a posição de chefe, ficou de pé.
– Preciso saber por que você retirou o Dossiê Poole dos arquivos – insistiu Edmunds, não sem algum temor.
– Não gostei do tom de voz – disse Wolf, encarando o novato compridão.
– Não gostei da sua resposta – devolveu ele, surpreendendo a todos, inclusive a si mesmo. – O que você estava procurando nesse dossiê?
Apertando-o pelo pescoço, Wolf arrastou o garoto e o empurrou contra a divisória da sala de reuniões, fazendo rachar o vidro.
– Ei! – gritou Simmons.
– Wolf! – berrou Emily, correndo na direção deles.
Wolf largou o estagiário, que sangrava na nuca. Baxter se colocou entre os dois.
– Porra, Wolf, que merda é essa agora?
– Fala pro seu cachorrinho de estimação ficar longe de mim! – rosnou ele.
– Ele não está mais comigo – disse ela, mal reconhecendo o homem que esbugalhava os olhos à sua frente. – Você está descontrolado, cara.
– Descontrolado, eu? – gritou ele de volta, vermelho.
Emily logo percebeu a ameaça velada: Wolf estava a um passo de revelar o segredo dela. Emily se preparou para o pior, embora visse com algum alívio a oportunidade de dar fim àquela farsa. Já não era sem tempo.
Mas ele hesitou.
– Fala pra esse moleque que é melhor ele ter alguma coisa de concreto antes de sair distribuindo acusações por aí.
– Acusações? – repetiu Emily. – Acusações de quê?
– Eu não estava acusando você de nada – retrucou Edmunds, firme. – Só queria ajudar.
Vanita finalmente emergiu da sua sala, tendo perdido todo o início da confusão.
– Ajudar com o quê? – perguntou ela simultaneamente aos dois.
– Em vez de trabalhar, este aí anda perdendo tempo com as minhas investigações do passado.
– Ah, vai à merda – disse um Edmunds em um tom bem diferente do habitual, sujando os dedos de sangue ao passar a mão na nuca machucada.
Wolf arremeteu para agredi-lo de novo, mas Simmons o deteve a tempo.
– Isso tudo é verdade? – sussurrou Emily para Edmunds.
– Encontrei uma coisa.
– Falei pra você ficar na sua, não falei? – disse ela.
– Encontrei uma coisa.
– Ah, não acredito que você vai ficar do lado dele... – choramingou Wolf.
– E não vou! – berrou ela de volta. – Quer saber? Vocês são dois idiotas!
– Chega! – gritou Vanita, lívida. Instaurou-se um silêncio sepulcral. – Edmunds, vá dar uma olhada nesta nuca na enfermaria. Detetive Baxter, volte para o seu trabalho. Fawkes, você está sumariamente suspenso.
– Você não pode me suspender – arriscou ele.
– Quer pagar pra ver? Saia já daqui.
– Comandante... – interveio Edmunds timidamente. – Sinto muito, mas vou ter de concordar com o Wolf. A gente precisa dele aqui.
– Não vou permitir esse tipo de indisciplina no meu departamento – disse ela para Wolf. – Vamos, pegue suas coisas e suma daqui.
Seguiu-se um momento de tensão, todos já antevendo a explosão que estava por vir. No entanto, contrariando as expectativas, Wolf apenas riu com sarcasmo, desvencilhou-se de Simmons e deu uma ombrada em Edmunds antes de sair marchando rumo ao elevador.
Vanita e Simmons foram os únicos que deram as caras na reunião de follow-up. Os doze nomes estavam listados no bloco de cavalete plantado no meio da sala, parecendo orgulhoso do mistério desvendado nas suas páginas. No entanto, a identificação da última vítima, Ronald Everett, não havia sido a grande epifania imaginada por Simmons. Eles ainda estavam papando mosca.
– Acho que não vem mais ninguém – disse Simmons.
– Onde está o detetive Shaw? – perguntou Vanita.
– Sei lá. Finlay não está atendendo o telefone. Edmunds foi pra enfermaria pra dar pontos no corte, e você acabou de suspender o Wolf.
– Não enrola, Terrence. Se você acha que tomei a decisão errada, diga logo de uma vez.
– Eu não diria “errada”, mas... corajosa.
– Fawkes está fora de si, o que é bastante compreensível diante das circunstâncias. Mas no momento está atrapalhando mais do que ajudando.
– Concordo plenamente, mas não posso ficar sozinho nessa operação. Se pelo menos eu pudesse ter a Emily de volta...
– Não pode. Não depois do fiasco com Garland. Vou convocar outra pessoa.
– Não temos tempo pra isso. Ashley Lochlan está marcada pra morrer daqui a dois dias, Fawkes daqui a quatro. Baxter já está familiarizada com o caso. Deixá-la de fora... Isso, sim, seria uma decisão errada.
Vanita balançou a cabeça e resmungou algo.
– Tudo bem – disse ela afinal. – Mas vou deixar minha objeção registrada por escrito. Baxter agora é responsabilidade sua.
– “A bela jurada respingada de sangue” – disse Samantha Boyd, olhando para a foto de jornal que a mostrava saindo do tribunal para a rua. – Era assim que eles me chamavam na época. Cheguei a pensar em incluir o epíteto nos meus cartões de visita.
Finlay quase não havia reconhecido a pessoa que agora sentava à sua frente. Samantha ainda era uma bela mulher, claro, mas os cabelos compridos e descoloridos da foto agora eram curtos e escuros, submetidos a um corte masculino. A maquiagem pesada não acrescentava nada ao azul dos olhos, evidente até nas fotografias em preto e branco. As roupas pareciam caras, caíam bem, mas não eram de parar o trânsito.
A terceira pessoa mais famosa do julgamento mais famoso dos últimos tempos concordara em encontrá-lo numa cafeteria no sofisticado distrito de Kensington. Ao chegar, ele pensara que o lugar estava fechado para reformas, mas ninguém entre os clientes apinhados de sacolas de compras ou entre os garçons tatuados parecia se importar com a tubulação aparente, as paredes rebocadas ou as lâmpadas peladas que pendiam do alto sem lustre tapando-as.
Aquela sua escapulida não resultava exatamente da briga com Wolf, pois estava programada desde a noite anterior. Por melhores que fossem os recursos da modernidade – rastreamento de cartões de crédito, análises periciais de pegadas e respingos de sangue –, ele acreditava piamente que a melhor maneira de investigar alguma coisa ainda era fazendo as perguntas certas às pessoas certas. Sabia que era visto pelos colegas como antiquado, um dinossauro. Mas não se importava com isso. Não tinha a menor intenção de mudar a dois anos da aposentadoria.
– Fiz o que pude pra me ver livre dessa história – disse Samantha.
– Não deve ter sido tão ruim assim – argumentou Finlay. – Bom para os negócios, imagino.
Deu um gole no café e quase engasgou: um daqueles cafés metidos a besta de que Wolf tanto gostava.
– Tem razão. As vendas triplicaram. Sobretudo as desse vestido branco. No fim passamos a recusar encomendas.
– Mas...
Ela refletiu um segundo, depois disse:
– Eu não estava posando nessa foto. Estava procurando por ajuda. Nunca quis ficar famosa, ainda por cima em circunstâncias tão... tristes. Mas de repente eu era “a bela jurada respingada de sangue”. Era só isso que as pessoas viam em mim.
– Entendo.
– Sem querer faltar ao respeito, mas... acho que não entende, não. A verdade é que tenho vergonha do que fiz naquele dia. Sei lá. A essa altura eu e os outros jurados estávamos tão influenciados pelos arroubos do detetive Fawkes, pelas acusações da imprensa contra a polícia, que acabamos nos deixando levar. Nem todos, mas quase todos. Dos doze, dez cometeram um erro irreparável. Não há dia que passe sem que eu pense nas repercussões desse veredito.
Não havia na voz dela nenhum traço de autocomiseração. Samantha assumia a responsabilidade pelo que tinha feito, só isso. Finlay tirou da pasta uma foto de Ronald Everett e colocou-a sobre a mesa.
– Conhece? – perguntou.
– Claro que conheço. Fui obrigada a sentar do lado desse asqueroso por 46 dias. Não sou exatamente uma fã.
– Na sua opinião... o que alguém poderia ter contra o Sr. Everett?
– Se você está perguntando é porque não conhece o homem. Imagino que muita gente queira vê-lo pelas costas: os maridos de todas as mulheres que ele apalpa por aí. Mas por quê? Aconteceu alguma coisa?
– Isso é confidencial.
– Não vou contar pra ninguém.
– Nem eu – disse Finlay, dando o assunto por encerrado. Pensou bastante antes de fazer a pergunta seguinte: – Por acaso havia algo no Sr. Everett que o tornava uma pessoa diferente naquele grupo? Diferente de você e dos outros?
– Diferente? – disse ela, já começando a achar que estava perdendo seu tempo com aquela conversa sem pé nem cabeça. Mas de repente lembrou: – Ah... Quer dizer, nunca ficou provado.
– Não ficou provado... o quê?
– Muitos jornalistas nos procuraram oferecendo rios de dinheiro pra que falássemos com eles. Queriam saber o que tínhamos conversado, quem tinha votado como, essas coisas.
– E você acha que Ronald Everett aceitou uma dessas ofertas?
– Acho, não. Tenho certeza. Algumas das coisas que eles publicaram saíram direto da nossa salinha privada. Daí um dia... o pobre do Stanley, que desde o início vinha lutando pelo veredito de culpado, acordou com a cara estampada na primeira página de todos os jornais, acusado das coisas mais absurdas: de preconceito contra os muçulmanos, de ter cientistas nazistas na sua árvore genealógica...
– Mas os jurados não são obrigados a evitar os jornalistas durante todo o processo?
– Você não lembra como foi aquele julgamento? Seria mais fácil evitar o ar.
Algo ocorreu a Finlay. Ele revirou sua pasta e tirou dela mais uma fotografia.
– Por acaso este foi um dos jornalistas que assediou vocês?
– Claro! – exclamou ela, surpresa. – Esse é o jornalista que morreu durante uma entrevista, não foi? Jarred Garland! Meu Deus... Eu ainda não tinha ligado uma coisa à outra. Na época ele tinha um cabelo comprido, imundo, além de uma barba grande.
– Tem certeza de que é a mesma pessoa? – perguntou Finlay. – Olha de novo.
– Absoluta. O sorrisinho irônico é exatamente o mesmo. Mas se você não está acreditando, não vai ter dificuldade pra confirmar: teve um dia que fui obrigada a chamar a polícia porque ele me seguiu até em casa e ficou ali, plantado na porta.
Edmunds não conseguia evitar: volta e meia roçava os dedos nos pontos que levara na cabeça. Ainda na enfermaria, enquanto esperava para ser atendido, relembrara todo o diálogo com Wolf, palavra por palavra, e anotara tudo em seu caderno. Não entendia o que levara o homem a reagir daquela forma. Estava exausto, de repente havia dito algo para irritá-lo, algo inadvertidamente desrespeitoso. Mas que diabos poderia ter falado para que ele se sentisse acusado de alguma coisa? Começava a desconfiar que Wolf havia mentido ao dizer que não se lembrava do tal herdeiro. Uma coisa era certa: ele havia esquecido de incluir a atualização dos laudos periciais. Talvez tivesse explodido em autodefesa.
O único aspecto positivo de tudo aquilo era que, em razão do acidente, Tia se vira obrigada a responder as mensagens de texto enviadas por ele. Até se oferecera para sair do trabalho para ficar a seu lado, mas ele havia dito que não era necessário, que já estava bem. Ficou decidido então que ela continuaria na casa da mãe até o fim da semana, pois Edmunds mal teria tempo para passar em casa nos dias seguintes. Prometeu que, assim que terminasse o sufoco, faria tudo que estivesse a seu alcance para recompensá-la.
Com a consciência limpa, ele pegou o primeiro trem para Watford e da estação tomou um táxi para o Depósito Central. Como se fosse adestrado, enfrentou a rotina de sempre para ganhar acesso ao subsolo, mas parou diante da saleta que ficava na base da escada. Na porta de vidro, um adesivo informava: ADMINISTRAÇÃO. Geralmente ele passava direto por ela, mas dessa vez bateu educadamente e entrou.
A arquivista era exatamente como ele havia imaginado: uma senhorinha muito pálida, de óculos grossos e cabelos despenteados, plantada à frente de um computador jurássico. Cumprimentou-o com a alegria das tias solitárias que se agarram com unhas e dentes a qualquer oportunidade de uma boa conversa, talvez porque ele fosse o primeiro visitante que ela recebia em muitos anos.
Edmunds aceitou o convite para sentar, mas recusou o café com educação, receando ter de pagar por ele com pelo menos uma hora do seu precioso tempo. Ouviu com paciência enquanto ela discorria sobre Jim, seu falecido marido, e sobre o fantasminha camarada que assombrava a caverna dos arquivos. Depois, com muito tato, foi guiando a conversa de volta para os trilhos.
– Quer dizer então que nenhuma caixa entra ou sai daqui sem passar pela senhora?
– Nenhuma. Escaneamos os códigos de barra a cada entrega e a cada retirada. Se alguém tentar atravessar aquela porta lá de fora sem um código válido, os alarmes disparam na mesma hora!
– Assim... a senhora pode dizer quem andou olhando o quê.
– Claro que posso.
– Então eu gostaria de ver todas as caixas que o detetive William Fawkes já tirou daqui.
– Todas? – perguntou ela assustada. – Tem certeza? O Will andava sempre por aqui.
– Todas – insistiu Edmunds.