Capítulo 36

Segunda-feira, 14 de julho de 2014

12h06

Wolf podia ouvir vozes e berros numa parte mais distante do prédio: bombeiros e policiais armados misturando-se uns aos outros nas suas respectivas buscas. De um só pulo ele saltou os últimos três degraus para o saguão e sentiu uma fincada no flanco, onde havia um ponto mal cicatrizado. Sentiu também um aperto no peito quando se viu observado do alto por um Moisés de túnica branca, sentado em seu trono no Monte Sinai, bem como pelo exército de anjos talhados nos arcos e representados nos vitrais. Sem falar nos retratos de arcebispos, cardeais e rabinos pregando a palavra divina e corroborando as crenças de Masse: existe um Deus, existe um Diabo, existem demônios transitando entre nós.

Era como se ele estivesse numa igreja.

Ignorando tudo isso ele correu para a porta certa e irrompeu na Sala 1, atropelando a poça de sangue que Emily havia deixado ali. Encontrou-a ainda no centro da sala, junto ao aquário dos réus, recostada num chão já saturado pelo sangue de Khalid. Correu na direção dela, mas Lethaniel Masse se interpôs no caminho com sua espada em riste.

– Aí está bom – disse ele, abrindo seu repugnante sorriso torto.

A detetive Baxter sentia-se mole, letárgica. Usava o cotovelo para apertar a artéria perfurada o mais forte que podia, mas receava adormecer toda vez que piscava os olhos. As calças empapadas de sangue grudavam frias nas pernas flexionadas. O rosto cobria-se com os arranhões profundos que ela própria havia produzido ao tentar arrancar a echarpe amarrada em torno da boca. Melhor deixá-la onde estava. Ela sabia que não podia perder mais sangue com uma nova tentativa.

Ainda tinha consigo a arma que escondera na cintura, na altura da lombar. Masse não a tinha visto. Aproveitando a distração dele com Wolf, ela contorceu o corpo na esperança de alcançá-la com as mãos algemadas. Não conseguiu, então tentou o outro lado. Arqueando as costas, chegou a sentir o metal da arma na ponta dos dedos e por pouco não chorou de desespero. Estava disposta a deslocar os ossos se com isso pudesse espichá-los alguns poucos milímetros a mais. No entanto, deu-se por vencida quando viu que o sangue voltara a esguichar na perna no mesmo compasso do coração disparado. Rapidamente voltou com o cotovelo para o mesmo lugar de antes, mas a poça vermelha à sua volta havia dobrado de tamanho naqueles poucos segundos de esforço inútil pelos quais ela havia pagado com vários minutos de sobrevida.

Masse havia despido o sobretudo preto para deixá-lo sobre um dos bancos. Por baixo estava usando o mesmo conjunto de calça e camisa que Wolf havia encontrado no apartamento da Goldhawk Road: sua camuflagem. Wolf ainda ofegava quando se viu novamente cara a cara com o homem. Era um pouco maior que ele, mas o que faltava em altura no ex-sargento, mais do que sobrava em músculos.

Na pressa de evacuar a sala, alguém havia esquecido uma caneta-tinteiro sobre uma pilha de papéis. Wolf estava próximo o bastante para pegá-la com um gesto discreto, sem que Masse percebesse. Na ausência de uma espada...

– Eu sabia que você estava lá ontem, em Piccadilly Circus – disse Masse, para grande surpresa de Wolf. – Eu queria testar sua competência. Mas você é um fraco, William. Foi fraco ontem. Foi fraco no dia em que deixou Khalid sair daqui com vida. E está sendo fraco agora. Posso ver nos seus olhos.

– Não se iluda, Masse. Se você não tivesse...

– Bobagem – interrompeu ele. – Vi quando você entrou em pânico no meio daquela multidão. Vi quando passou correndo por mim. Estava bem ali na sua frente, mas você não me viu. Ou será que não quis me ver?

Wolf balançou a cabeça, tentando lembrar-se do momento exato em que tinha perdido o grandalhão de vista. Claro que teria tido coragem de acabar com ele ali mesmo. Sabia que Masse estava brincando com as suas emoções, tentando desequilibrá-lo.

– Portanto... você sabe que não adianta resistir – prosseguiu Masse, calmamente. – Olha, gosto tanto de você, William, que vou lhe oferecer uma alternativa que não ofereci a nenhum dos seus colegas de infortúnio: ou você fica de joelhos, e eu prometo que serei rápido, ou você tenta se defender, sabendo que a coisa pode terminar de um jeito, digamos, desagradável pra você.

Wolf respondeu apenas com o olhar, o mesmo olhar sanguinário que podia ver no demônio à sua frente.

– Previsível como sempre – suspirou Masse, e ergueu sua espada.

Emily precisava estancar aquela hemorragia. Não ousara fazer nada enquanto Masse estava olhando, mas agora poderia arriscar uma solução menos precária do que pressionar a perna com o cotovelo, mesmo sabendo que estaria perdida caso o homem percebesse alguma coisa.

Sem tirar o cotovelo do lugar, ela respirou fundo e aos poucos conseguiu desafivelar o cinto para tirá-lo das calças. Ainda com muito esforço, em razão da fraqueza e das mãos algemadas, amarrou-o com o máximo de força que pôde em torno na coxa, logo acima do talho. A dor foi excruciante, mas o sangue se resumira a um mero fiapo. E os dois braços estavam livres para serem usados da maneira que lhe conviesse.

Masse deu um passo na direção de Wolf, e o detetive recuou um.

Outro avanço de Masse, outro recuo de Wolf.

Procurando não fazer nenhum gesto brusco, Wolf destampou a caneta surpreendentemente pesada, firmou o polegar logo abaixo da pena e ergueu o braço como se tivesse na mão uma faca.

Masse avançou para dar seu primeiro golpe de espada, mas Wolf desviou a tempo, deixando que a lâmina batesse contra a parede a seu lado. Masse arremeteu novamente, a espada cortando o ar a poucos centímetros do rosto de Wolf, mas acabou se desequilibrando com a violência dos próprios golpes. O detetive aproveitou a oportunidade e arriscou uma primeira estocada com sua caneta, espetando o braço do adversário antes de recuar de novo. Masse soltou um berro de dor, depois avaliou o ferimento sem nenhuma pressa, fascinado com o que via.

O momento de calmaria durou pouco, pois de um segundo a outro, insuflado pela inesperada ousadia, o ex-sargento reiniciou seu ataque. Wolf seguiu recuando, mas nem por isso conseguiu evitar uma estocada no ombro esquerdo. Desesperado, jogou-se contra Masse e espetou tantas vezes quanto possível, tão profundamente quanto possível, o braço com que o outro empunhava a espada. Parou apenas quando foi ao chão, surpreendido por um murro de esquerda. No tombo, acabou deixando cair sua valorosa caneta e nada pôde fazer quando ela seguiu rolando sob o banco mais próximo.

Wolf e Masse fizeram uma pequena trégua no corpo a corpo, um caído no chão, segurando o ombro machucado, o outro de pé, observando com fascínio o sangue escuro que vazava do punho da camisa. Masse não dava nenhum sinal de que sofria com dores no braço ferido, muito menos de que estava intimidado: simplesmente parecia surpreso com a extensão do estrago que um oponente tão pífio conseguira fazer. Ele tentou reerguer a espada pesada com a mão direita, mas não conseguiu, então passou-a para a esquerda.

– De joelhos, Lethaniel – ironizou Wolf enquanto se levantava. – Prometo que será rápido.

Masse crispou os músculos do rosto numa careta de indignação, depois viu Wolf olhar de relance para Emily.

– Fico me perguntando se você lutaria tanto pra defendê-la se soubesse a verdade.

Wolf ignorou a provocação e deu um passo na direção da amiga. Masse novamente se interpôs no caminho, dizendo:

– Se você soubesse que o nome dela merecia estar naquela lista muito mais que o de outros...

Wolf ficou confuso.

– O detetive Chambers não era lá muito valente. Implorou antes de morrer. Chegou a chorar, jurando que era inocente – prosseguiu Masse, lançando um olhar incriminador na direção de Baxter.

Aproveitando o breve instante de distração, Wolf avançou para esmurrá-lo. Masse conseguiu bloquear o golpe, mas cambaleou para trás e acabou caindo sobre um dos bancos.

Emily viu o sobretudo de Masse escorregar com o impacto e cair no chão, levando consigo a bolsa dela, que estava junto do casaco. O conteúdo se esparramou por perto e no meio da tralha ela rapidamente avistou três coisas: seu celular, seu molho de chaves e a tesourinha de unha que Masse usara para espetá-la, ainda manchada de sangue.

– Ao que parece – prosseguiu Masse –, não querendo prejudicar a amizade entre você e a nossa amiga aqui, Benjamin Chambers permitiu que você continuasse pensando que havia sido ele quem mandou a tal carta pra corregedoria. A mesma carta que invalidou toda a sua argumentação contra Naguib Khalid. – Ele sorriu satisfeito quando viu o olhar de perplexidade que o outro lançou para a detetive Baxter. – Tenho a impressão de que matamos a pessoa errada.

Emily não conseguiu sustentar o olhar de Wolf. Abafou um grito de desespero, depois ergueu os olhos para o teto da sala.

Wolf foi tomado de surpresa quando Masse investiu novamente com a espada na mão esquerda. Sem alternativa, jogou-se rapidamente contra ele para bloquear o golpe, ambos desabando no chão, a espada deslizando para longe no piso encerado. Em seguida, com a fúria de um lobo faminto, partiu sem nenhuma piedade para cima do sargento caído e despejou sobre ele uma saraivada de murros sobre a cabeça desfigurada pelas queimaduras. Para se defender, Masse apertou quanto pôde o ombro esquerdo do seu agressor, o ombro que ele próprio havia fraturado pouco antes com um golpe de espada. Seu movimento, no entanto, não fez mais do que atiçar a ira dele. Com um urro ensurdecedor, Wolf inclinou a cabeça para trás, depois usou a testa para golpear com força o rosto do demônio, pulverizando o que ele ainda tinha de nariz, roubando toda a força e energia que ele ainda possuía nos braços.

Sem saber o que mais fazer diante de tanta ferocidade, Masse apenas o fitava de volta com os olhos arregalados. Olhos de súplica. Olhos de medo.

Arrastando-se como podia, manchando o chão com o próprio sangue, Emily alcançou a tesourinha de unha e usou-a para picotar sua mordaça. Cada vez mais fraca, arrastou-se um pouco mais e conseguiu pegar o molho de chaves.

Ainda montado sobre Masse, Wolf imobilizou a cabeça dele, tirou seu cadarço do bolso, dobrou-o pela metade, depois passou-o em torno do pescoço do homem, determinado a estrangulá-lo. Num último surto de adrenalina, Masse começou a se debater, ora retorcendo o corpo, ora desferindo chutes a esmo. Tanto fez que conseguiu desvencilhar a cabeça.

– Você só está dificultando as coisas – disse Wolf.

Nesse mesmo instante ele localizou a caneta caída sob o banco, imunda com o sangue de Masse. Levantou-se para pegá-la, deu uma cusparada para o lado e plantou os olhos sobre o sargento. – Me responde uma coisa... – falou. – Se você é o Diabo, então eu sou o quê?

Masse arrastou-se para trás numa patética tentativa de fugir.

Sem pensar duas vezes, Wolf jogou-se novamente sobre o homem e fincou sua caneta na perna direita dele, repetindo o que o próprio Masse tinha feito com Emily pouco antes. Para calar os berros dele, pegou o cadarço e novamente o garroteou pelo pescoço, apertando até onde permitia o ombro quebrado. Gostou quando o ex-sargento começou a engasgar, cada vez mais fraco, cada vez mais ridículo nas suas tentativas de defesa. Viu também que os vasos sanguíneos começavam a explodir na esclera dele, então apertou o garrote ainda mais, chegando a tremer em razão do esforço.

– Wolf! – berrou Emily, pelejando com as chaves à medida que ia perdendo a destreza dos dedos. A sala parecia rodar à sua volta. – Wolf, para com isso!

Wolf nem ouviu, tamanha era a sua fúria. Ainda encarava Masse, vendo a vida sumir aos poucos dos olhos dele.

– Basta, Wolf! – gritou ela. Aquilo não era mais autodefesa: era uma execução. – Eu disse basta! – insistiu ela e engatilhou a arma que finalmente conseguira empunhar.

Wolf conhecia muito bem aquele clique metálico. Assustado, virou-se para trás e deparou com uma Glock apontada na sua direção. Ficou alguns segundos assim, encarando-a com perplexidade, depois despertou do transe e baixou os olhos para o que havia sobrado do sargento, um monte de cicatrizes e sangue. Foi como se estivesse vendo aquilo pela primeira vez.