Capítulo 37

Segunda-feira, 14 de julho de 2014

12h12

Emily Baxter sabia que estava prestes a apagar. Suava frio, a náusea piorava a cada segundo. Recostada no banco das testemunhas, ela mantinha a Glock apontada para Wolf, mas não sabia ao certo se o homem que estava ali era o mesmo que ela pensava conhecer. Wolf afastou-se de Masse e por alguns segundos ficou olhando para o corpo desfalecido a seus pés, parecendo surpreso com a extensão da sua própria brutalidade.

Emily podia ver que Masse estava inconsciente mas ainda vivo. De onde se encontrava, enxergava o peito dele inflar e desinflar a cada tentativa de respirar pelo nariz pulverizado; ouvia os gorgolejos do sangue na boca. Por mais que achasse que o homem merecia sofrer, não conseguia deixar de sentir pena daquele escombro de gente que já havia entregado os pontos muito antes de Wolf acabar com ele.

Gritos no saguão despertaram Wolf do seu transe. Ele correu para junto de Emily.

– Não encoste em mim! – gritou ela, apavorada.

Vendo que ela realmente ameaçava atirar, Wolf ergueu os braços do jeito que pôde.

– Posso ajudar você – disse, surpreso com a reação da amiga.

– Não se aproxime.

Wolf se deu conta de que a manga da camisa estava empapada de sangue. Com a voz embargada, perguntou:

– Você está com medo de mim?

– Estou.

– Este sangue... não é meu – disse ele na esperança de acalmá-la.

– Por acaso isso faz alguma diferença? – retrucou ela, mal acreditando no que acabara de ouvir. Já começava a arrastar as palavras. – Olha só o que você fez! – disse, apontando para o homem que morria aos poucos no chão da sala. – Você é um monstro!

Wolf limpou os olhos marejados de emoção, sujos do sangue de Masse.

– Só quando preciso ser... – disse ele melancolicamente, sofrendo para manter os braços erguidos. – Jamais faria alguma coisa pra machucá-la.

– Tarde demais – ironizou ela. Vendo a mágoa que havia causado, receou amolecer o coração. Uma porta bateu por perto em algum lugar. – Socorro! – gritou ela, disposta a acabar com aquilo o mais rápido possível. – Wolf, preciso saber a verdade: você realmente botou este homem atrás daquelas pessoas?

Wolf hesitou um instante, depois disse:

– Sim. No dia em que Annabelle Adams morreu.

A confissão teve sobre Emily o efeito de uma pedrada.

– Depois que fui reincorporado – prosseguiu ele –, comecei a investigar as histórias, mas pensei que aquilo não era real, juro que pensei! Até que vi aquela lista duas semanas atrás. – Fixando os olhos nela, disse: – Cometi um erro, Emily. Um erro terrível. Mas tudo que fiz até agora foi pra corrigir esse erro. Nunca quis que aquelas pessoas morressem.

Ela começava a escorregar para o chão, a respiração cada vez mais lenta, a arma pesando cada vez mais na mão fechada em punho.

– Você podia ter falado comigo – balbuciou ela. – Podia ter me ­procurado.

– Mas como? Como eu poderia lhe contar uma coisa dessas? Tudo que fiz com aquelas pessoas, com os nossos amigos... com você... – disse ele, apavorado com a poça de sangue que via crescer em torno da amiga.

Emily podia ver que ele estava tão arrasado quanto naquela foto de jornal que o mostrava ajoelhado ao lado do corpo de Elizabeth Tate. Por mais que viesse tentando evitar, nada pôde fazer quando uma lágrima lhe escapou dos olhos para rolar face abaixo.

– Eles teriam me tirado do caso – prosseguiu Wolf. – Provavelmente teriam me suspendido também. Pensei que pudesse ser útil pra equipe. Eu sabia que podia encontrar esse demônio! – disse ele, apontando para Masse. – Já tinha feito uma boa pesquisa inicial.

– Até quero acreditar em você, Wolf, mas...

Emily não aguentou. Deixou a arma cair e amoleceu para o lado.

Mais gritos no saguão: o inimigo que se aproximava. Wolf olhou para a porta que ficava atrás do banco das testemunhas e teve um lampejo das grades que o esperavam caso ele não desse um jeito de sair dali. Com todo cuidado ele reacomodou a colega no chão, depois embolou o casaco de Masse para colocar sob os calcanhares dela, erguendo as pernas acima do coração exaurido. Em seguida apertou o torniquete improvisado na coxa e grunhiu com a dor lancinante que sentiu no ombro. Ajoelhado ao lado da amiga, ainda apertando o cinto com as forças que tinha, viu que ela começava recobrar um pouco da consciência, a perna latejando no mesmo ritmo preguiçoso do coração.

– Não... – sussurrou ela, tentando afastá-lo ao mesmo tempo que soerguia o tronco.

– Não se mexa – disse ele, ajudando-a a se deitar novamente. – Você ­desmaiou.

Ela demorou alguns segundos para processar a informação. Dardejando os olhos à sua volta para confirmar onde estava, deparou com a arma ainda caída por perto. Para surpresa de Wolf, não a pegou, mas ofereceu-lhe a mão trêmula.

Wolf tomou-a na sua e apertou-a tão carinhosamente quanto permitiam os dedos abrutalhados. Em seguida ouviu um clique rápido, sentindo no pulso a superfície fria de algo metálico.

– Você está preso – sussurrou Emily.

Ele rapidamente recolheu a mão, mas riu quando viu a dela subir junto, pendurada no outro aro da algema. Conhecia a amiga bem o bastante para saber que ela não deixaria algo tão trivial quanto a morte iminente demovê-la dos seus propósitos. Resignado, sentou-se no chão ao lado dela e pressionou ambas as mãos sobre o ferimento na perna, logo abaixo do torniquete.

– Aquela carta... – começou Emily. Apesar de tudo, ainda achava que devia uma explicação.

– Águas passadas – disse Wolf.

– Andrea e eu... a gente ficou preocupada com você. Só queríamos ­ajudar.

Masse deixou escapar um ruído gutural antes de ficar completamente imóvel no seu canto da sala. Emily olhou para ele, aflita. Wolf olhou também, esperançoso. Até que o homem gorgolejou ruidosamente e voltou a respirar.

– Merda – sussurrou Wolf, e riu ao ser repreendido por uma careta dela. Depois, traindo na voz um misto de preocupação, censura e uma pitada de admiração, perguntou: – Onde você estava com a cabeça quando resolveu vir sozinha pra cá?

– Precisava salvar você. Convencer você a se entregar antes que alguém metesse uma bala na sua cabeça.

– E agora? Está satisfeita?

– Mais ou menos – riu ela, sentindo-se forte o bastante para voltar a sentar.

Um policial berrou por perto:

– Aqui não tem ninguém!

Emily sentiu a madeira do piso reverberar com o tropel dos coturnos no saguão. Wolf olhou com impaciência para a porta aberta da sala.

– Estamos aqui! – gritou ele.

De repente a detetive percebeu que em nenhum momento ele havia procurado justificar suas ações, muito menos pedira que ela o soltasse ou sustentasse alguma mentira para provar sua inocência. Pela primeira vez na vida ele assumia a responsabilidade em vez de recorrer a subterfúgios.

– Estamos aqui! – repetiu ele.

Emily tomou a mão dele outra vez, agora com um carinho sincero. Sorrindo, disse:

– Você não me abandonou aqui.

– Cheguei a pensar na ideia – riu ele.

– Mas não abandonou, isso é o que importa – disse ela antes de libertá-lo da algema.

Por um instante Wolf ficou olhando para a mão livre sem entender muito bem o que estava acontecendo.

– Anda, vai! – sussurrou ela.

Wolf permaneceu exatamente onde estava, ainda pressionando a perna dela.

Os coturnos se aproximavam com a velocidade de um trem.

– Vai logo! – insistiu ela, recostando-se melhor no banco atrás de si. – Wolf, por favor!

– Não vou deixar você aqui sozinha.

– Não vou ficar sozinha – argumentou ela, meio tonta outra vez. – Eles já estão chegando, vão me ajudar.

Wolf chegou a abrir a boca para dizer alguma coisa, mas Emily foi mais rápida. Os policiais estavam cada vez mais perto.

– Anda logo, você não tem tempo a perder! – disse ela, e reuniu as forças que ainda tinha para empurrá-lo.

Wolf ficou desorientado, indeciso, mas de repente pegou o casaco embolado no chão e correu para a porta atrás do banco das testemunhas. Baxter viu quando ele parou um instante para fitá-la uma última vez, mas não detectou no azul dos olhos dele nenhum vestígio do monstro que pouco antes fizera picadinho de um ex-sargento do Exército britânico. Depois não o viu mais.

Ela olhou para Masse, duvidando que ele sobrevivesse, depois lembrou que precisava esconder a Glock. Tateou o chão à sua direita, mas não a encontrou. Então girou a cabeça para enxergar melhor, não sem algum esforço, e de repente deduziu o que havia acontecido: Wolf levara a arma consigo.

– Filho da puta... – sussurrou e ergueu seu distintivo bem alto assim que viu os policiais armados invadirem a sala.

Wolf se embrenhou nos corredores que conhecia feito a palma da mão. Abotoou o sobretudo de Masse para esconder a camisa manchada de sangue, vestiu os óculos escuros e tomou a primeira saída de emergência que encontrou. Imediatamente ouviu os alarmes dispararem à sua volta, mas sabia que ninguém os ouviria da rua, tamanho era o alvoroço diante do prédio.

A chuva intensa dava aos caminhões dos bombeiros um lustro adicional, o vermelho deles fazendo um forte contraste com o preto do céu. Os repórteres e curiosos formavam um contingente cada vez maior do outro lado da rua, acotovelando-se para ver o que acontecia no prédio cercado.

Wolf atravessou calmamente a terra de ninguém entre a calçada e o cordão de isolamento da polícia, passou por dois paramédicos que entravam no prédio, depois mostrou seu distintivo displicentemente para um jovem policial que nem percebeu sua presença, ocupado que estava na contenção da manada de civis. Ao passar por baixo do cordão de isolamento, olhou de relance para a estátua da deusa da Justiça que observava a tudo do alto do prédio, depois levantou o capuz do casaco e se jogou no mar de guarda-chuvas pretos, atropelado por uns e atropelando outros, indiferente à irritação de todos.

Nenhuma daquelas pessoas fazia ideia do monstro que passava por elas: um lobo em pele de cordeiro.