Segunda-feira, 24 de maio de 2010

 

Samantha Boyd passou por baixo do cordão de isolamento da polícia e olhou para a estátua da Justiça que se empoleirava no alto do Old ­Bailey, o infame e centenário tribunal no centro de Londres. Sabia que era uma imagem de retidão e integridade, mas agora a enxergava de outro jeito: uma divindade desiludida e cética, prestes a pular daquela cúpula para a calçada muitos metros abaixo. Não era de espantar que, ao contrário de todas as outras estátuas, ela não tivesse os olhos vendados: o conceito de “justiça cega” chegava a ser uma ingenuidade, especialmente num sistema tão contaminado pelo racismo e pela corrupção.

As ruas e estações de metrô vizinhas haviam sido novamente fechadas por causa da multidão de repórteres a postos diante do prédio, transformando aquela parte tão movimentada da cidade num grande assentamento de classe média. O chão estava repleto de embalagens das lanchonetes caras da região. Alguns dobravam seus sacos de dormir de grife enquanto outros se barbeavam com seus aparelhos de última geração. Um em particular, por mais que tentasse desamassar a camisa com um ferro portátil, mal conseguia disfarçar o fato de que havia pernoitado com ela no corpo.

Samantha ia abrindo caminho com certa aflição, temendo ser reconhecida. Atrasada, precisara apertar o passo na caminhada desde a estação de Chancery Lane e agora estava suando, incomodada com o coque apertado em que prendera os cabelos numa vã tentativa de mudar a aparência. Desde o primeiro dia do julgamento a imprensa vinha acompanhando de perto todos os envolvidos. Aquele seria o 46o e era bem provável que àquela altura ela já tivesse aparecido em quase todos os grandes jornais do planeta. Chegara ao ponto de ser obrigada a chamar a polícia quando um repórter particularmente obstinado a perseguira até seu apartamento em Kensington e lá ficara. Por isso ela agora andava com a cabeça baixa, olhando para o chão, determinada a passar despercebida.

Duas filas compridas haviam se formado na esquina da rua Newgate: uma para os banheiros químicos, insuficientes para tanta gente, e outra para o quiosque do Starbucks. Seguindo pelo meio dos passantes, Samantha irrompeu na direção dos policiais que montavam guarda diante de uma das entradas mais tranquilas do tribunal. Quando acidentalmente invadiu o quadro de uma das inúmeras gravações que os repórteres vinham fazendo para os telejornais, despertou a ira de uma japonesinha, que esbravejou sonoramente na sua língua natal.

Ignorando-a, pensou consigo mesma: “Último dia.” Se tudo corresse bem, dali a oito horas ela teria de volta sua vida normal.

À entrada ela mostrou seu documento de identidade a um policial desconhecido, depois enfrentou com paciência um ritual mais do que conhecido: deixou a bolsa no guarda-volumes de sempre; explicou pela enésima vez, ao passar pelo detector de metais, que a aliança de noivado não saía do dedo; afligiu-se de novo com as possíveis marcas de suor ao ser revistada. Só então embrenhou pelo labirinto de corredores para se juntar aos outros onze membros do júri e tomar com eles uma xícara de café instantâneo morno.

Diante da inexplicável atenção da mídia internacional e o incidente dela com o repórter obstinado, uma decisão até ali sem precedentes havia sido tomada pelas autoridades: isolar todos os jurados num mesmo hotel, apesar da grita geral contra os custos astronômicos que deveriam ser pagos com o dinheiro do contribuinte. Ao cabo de quase dois meses, a conversa entre eles durante o café da manhã consistia quase sempre na má qualidade dos colchões, nas dores lombares que eles provocavam, na falta de opções do serviço de quarto e nas coisas das quais sentiam saudades: cônjuges, filhos e o último episódio de Lost.

Quando o oficial de justiça enfim surgiu para buscá-los, instalou-se rapidamente a silenciosa tensão que até aquele momento vinha sendo mascarada pela conversa fiada. O primeiro jurado, um senhor mais velho chamado Stanley (escolhido pelos demais aparentemente por nenhum outro motivo senão a espantosa semelhança com o Gandalf de O Senhor dos Anéis), levantou-se à custa de algum esforço e puxou a fila para a audiência.

A Sala 1 daquele fórum, talvez uma das mais famosas do mundo, era usada exclusivamente para o julgamento dos casos mais críticos. Era nela que a maioria das celebridades do universo do crime, gente como Hawley Harvey Crippen, Peter Sutcliffe e Dennis Nilsen, havia passado para responder por seus inúmeros pecados. Uma luz chapada vazava dos janelões de vidro fosco para iluminar o lambri das paredes e o couro verde dos estofados.

Ao ocupar seu lugar na primeira fileira da bancada do júri, o mais próximo do banco dos réus, Samantha se deu conta de que o vestido branco que estava usando, uma criação sua, talvez fosse curto demais. Então colocou sobre o colo o dossiê dos jurados, para grande decepção do senhorzinho assanhado que no primeiro dia de julgamento quase havia atropelado um colega para assegurar a cadeira vizinha à dela.

Diferentemente dos tribunais do cinema americano, em que os réus quase sempre muito elegantes dividem uma mesa com seus advogados, no Old Bailey eles enfrentavam sozinhos a intimidante imponência da sala, trancafiados numa espécie de aquário, um cercadinho elevado com um guarda-corpo de vidro, baixo porém acintoso, sinal mais do que evidente do perigo que eles representavam para o resto da sociedade.

Culpados até que fosse provado o contrário.

Logo à frente do banco dos réus, à esquerda de Samantha, ficava a bancada dos juízes. Uma cornija de madeira, com uma espada de punho dourado sob o brasão de armas da casa real britânica, decorava o espaço logo atrás da cadeira central, a única que havia permanecido vazia durante todo o processo. O centro da sala era reservado para o escrivão e para as equipes da acusação e da defesa. A galeria da plateia, uma espécie de mezanino no fundo da sala, apinhava-se com os zumbis mal dormidos que haviam chegado na véspera para garantir um lugar no último dia daquele julgamento histórico. Os bancos sob a galeria acomodavam uma confusão de pessoas vagamente envolvidas nos trabalhos do dia: especialistas que os advogados poderiam convocar (mas que dificilmente convocariam), vários oficiais de justiça e, claro, o responsável pela detenção do réu e figura central de toda a controvérsia: o detetive William Oliver Layton-Fawkes, também conhecido como Wolf (Lobo) por causa das iniciais do seu nome.

Wolf não havia faltado a nenhum dos 46 dias do julgamento. Escondido no seu assento junto da saída, de modo geral ele não fazia mais do que ficar olhando friamente para o réu trancafiado no aquário. Era um sujeito forte, de olhos muito azuis, e aparentava uns 40 e poucos anos apesar do rosto já um tanto castigado pelo tempo. Samantha talvez visse nele um homem bonito não fosse pelo aspecto cansado de quem não havia dormido ­durante meses e que carregava nos ombros todo o peso do mundo. O que não estava muito longe da verdade.

O Cremador, tal como o réu fora apelidado pela imprensa, revelara-se o mais prolífico serial killer de toda a história londrina: 27 vítimas em 27 dias, todas elas prostitutas entre 14 e 16 anos, violência suficiente para despertar as massas para a dura realidade até então ignorada das suas esquinas. Todas as moças haviam sido profundamente sedadas antes de serem queimadas vivas, e a maioria fora encontrada ainda em chamas, o fogo destruindo tudo o que pudesse servir de pista para a polícia. Além disso, as mortes tinham cessado de uma hora para outra, desconcertando ainda mais os investigadores que até então não haviam identificado nenhum suspeito. A Polícia Metropolitana fora duramente criticada por sua inércia ao longo da chacina de tantas almas inocentes, mas dezoito dias após a última morte, Wolf havia encontrado e prendido seu homem.

O réu no aquário era o taxista Naguib Khalid, cidadão britânico de origem paquistanesa, muçulmano sunita. Sozinho no mundo, Khalid tinha um pequeno histórico não muito grave de incêndios criminosos, e o caso já parecia praticamente resolvido quando provas fundamentadas em amostras de DNA, vinculando três das vítimas ao banco traseiro do seu carro, haviam sido apresentadas ao júri após o depoimento avassalador de Wolf. Até que a coisa mudou radicalmente de figura.

Álibis vieram à tona para contradizer os relatórios de vigilância fornecidos por Wolf e sua equipe, bem como denúncias de agressão física e ­coerção no período em que Khalid passara detido. Laudos periciais foram a­presentados, afirmando que as amostras de DNA não podiam ser consideradas conclusivas. E para grande deleite dos advogados de defesa, um representante da corregedoria da polícia apresentara-se para mostrar uma carta que chegara às suas mãos pouco antes do último assassinato: um policial anônimo, colega de Wolf, dizia-se preocupado com o modo “obsessivo” e “emocional” com que o detetive vinha conduzindo a investigação, chegando ao ponto de recomendar o afastamento dele.

De uma hora para outra, muita lenha foi jogada naquela fogueira já tão escandalosa por si só. A polícia foi acusada de usar Khalid como bode expiatório para a própria incompetência. Tanto o comissário quanto o vice-comissário da Divisão de Operações e Crimes Qualificados foram pressionados a entregar o cargo por conta do desgoverno descoberto na sua gestão conjunta. Os tabloides não falavam de outra coisa que não fosse o malfadado detetive e seus supostos problemas com o álcool ou a suposta agressividade que havia arruinado seu casamento. A certa altura a defesa precisou ser repreendida ao sugerir, num arroubo de autoconfiança, que Wolf e o réu trocassem de lugar. Enquanto isso, Naguib Khalid não fazia mais do que observar o circo pegar fogo, sem dar nenhum sinal de que estava feliz com aquela guinada que o fizera passar de demônio a vítima.

O último dia de julgamento começou como esperado. Defesa e acusação fizeram suas observações finais diante do juiz: um rápido resumo das poucas provas ainda válidas, seguido de algumas considerações sobre os meandros da lei. Depois, os doze jurados foram levados para debater seu veredito em uma sala privada, decorada com a mesma falta de imaginação de lambris e couro verde. Ali ficariam por quase cinco horas.

Samantha já sabia havia muito como iria votar, portanto ficou surpresa ao constatar a divisão entre seus colegas. Jamais se deixaria influenciar pela opinião pública, ela vinha dizendo a si mesma, embora fosse um alívio saber que seu voto não arranharia ainda mais aquela imagem pessoal da qual agora dependiam sua loja, seu ganha-pão e sua felicidade em geral. Os mesmos argumentos foram repetidos à exaustão, e sempre havia aquele que chamava atenção para certo aspecto do depoimento do detetive, apenas para ser brutalmente silenciado pelos demais e ouvir pela milésima vez que aquilo não tinha nenhum fundamento, e que deveria ser ­ignorado.

De vez em quando Stanley solicitava uma votação, após a qual um bilhete era levado ao juiz para informar que eles ainda não haviam chegado a um consenso. A cada votação, cada um dos jurados ia cedendo à pressão da maioria cada vez mais expressiva até que, lá pelas tantas, chegou-se ao resultado suficientemente majoritário de dez contra dois. Stanley finalmente entregou o bilhete definitivo ao oficial de justiça e dez minutos depois foi orientado a voltar à audiência junto com os demais.

Ao entrar de novo na sala, Samantha teve a impressão de que todos os olhares se voltaram imediatamente para ela. Num primeiro momento, ficou envergonhada com o barulho que os sapatos de salto alto faziam contra o silêncio da plateia, sossegando apenas quando todos se acomodaram na bancada e os seus ruídos pessoais foram engolidos pelo burburinho geral.

Percebia que alguns a avaliavam na esperança de adivinhar o veredito, impacientes pelo anúncio oficial. O que era ótimo. Até aquele momento, ela e os demais membros do júri vinham sendo tratados com alguma condescendência pelos figurões emperucados da magistratura, mas agora a situação havia se invertido: eram eles, os jurados, que tinham a posse da bola. Sentindo-se na pele de uma criança detentora de um importante segredo, ela precisou se conter para não rir.

– Senhor réu, por favor, fique de pé – bradou o oficial de justiça.

Não sem alguma hesitação, Naguib Khalid se levantou no aquário.

– Senhor primeiro jurado, por favor, fique de pé.

Stanley se levantou na ponta da fileira em que se achava Samantha.

– Os senhores do júri chegaram a um veredito unânime?

– Não... – balbuciou Stanley, quase inaudível. Sob o olhar impaciente de Samantha, ele limpou a garganta e, a plenos pulmões, repetiu: – Não!

– Alcançaram um veredito de maioria absoluta?

– Alcançamos – disse o velho, e se corrigiu na mesma hora, ciente de que havia faltado aos rigores do protocolo forense: – Desculpe... Sim!

O oficial olhou para o juiz, que meneou a cabeça, sinalizando que aceitava o veredito majoritário.

– Nos seus 27 indiciamentos por homicídio, o réu, na deliberação dos senhores jurados, é culpado ou inocente?

Samantha sentiu um súbito frio na barriga, o que era estranho, pois já sabia o que estava por vir. Várias cadeiras rangeram quando os seus ocupantes se inclinaram para a frente, ansiosos.

– Inocente, senhor oficial.

Samantha olhou de relance para Khalid, esperando ver sua reação. Ele tremia de alívio com o rosto entre as mãos.

Foi então que começou o tumulto.

Wolf não demorou mais do que alguns segundos para alcançar o aquário, trepar no guarda-corpo de vidro e içar Khalid pela cabeça. O taxista desabou de mau jeito no chão e nem teve tempo para gemer ou gritar, pois foi brutalmente atingido nas costelas. Wolf chegou a ferir a própria mão, tamanha a violência dos golpes.

Um alarme disparou em algum lugar.

Khalid reagiu com um murro, e Wolf despencou sobre a bancada do júri, sentindo o sangue na boca enquanto derrubava a mulher às suas costas – Samantha. Antes que pudesse se levantar, vários seguranças já haviam chegado para se interpor entre ele e o corpo caído junto à base do aquário. Wolf ainda tentou prosseguir no ataque, desferindo chutes para todos os lados, mas logo foi rendido e empurrado para o chão, desabando não muito longe de onde havia caído o porrete de um dos seguranças que conseguira acertar. Podia sentir o cheiro forte do piso encerado, misturado ao do próprio suor.

Khalid parecia morto, mas Wolf precisava ter certeza.

Num último momento de adrenalina, Wolf se desvencilhou do segurança e se arrastou até o corpo inerte embebido em manchas escuras de sangue. Pegou o porrete a seu lado e já ia fazendo uso dele quando levou na cabeça um murro forte o bastante para jogá-lo de volta ao chão. Zonzo, observou enquanto o segurança lhe desferia um segundo golpe ao mesmo tempo que seus instintos o impeliam a continuar atacando.

Não mais do que vinte segundos se passaram desde o anúncio do veredito. Wolf sabia que não havia mais nada a ser feito e rezou para que tivesse sido o suficiente.

As pessoas agora gritavam enquanto corriam na direção das portas de saída, mas os seguranças tentavam impedir a passagem delas. Estatelada no chão, Samantha olhava, atônita, para o nada à sua frente, alheia à baderna. De repente uma mulher apareceu para tirá-la dali, puxando-a pelo braço e gritando algo que ela não conseguia entender. Na realidade, ela mal percebia o alarme que ainda soava, tamanho o seu desatino. Já no saguão do prédio ela escorregou e bateu com a cabeça no joelho de sua salvadora. Não chegou a sentir muita dor, mas desabou de costas nos desenhos em preto e branco do mármore siciliano e ali ficou, mais atordoada do que antes, olhando vagamente para o barroco da abóbada 20 metros acima, para as estátuas e os vitrais.

A mulher ajudou-a a se levantar assim que uma multidão passou correndo por elas. Conduziu-a até o fundo do saguão, onde ficava a entrada principal do prédio, fora de uso em dias de grande comoção popular, depois voltou às pressas à sala do julgamento. A gigantesca porta de madeira estava aberta, assim como o gradil de ferro, e o céu nublado parecia acenar para que ela saísse.

Samantha cambaleou para a rua e deu de cara com uma matilha ensandecida de repórteres e fotógrafos. A cena não teria sido mais perfeita caso ela tivesse posado deliberadamente: a bela jurada com seu vestido branco respingado de sangue, encimada pelo frontão em que o Anjo Escriba, ladeado pelas virtudes Força e Verdade, preparava sua interminável lista de pecadores para enviar ao chefe celeste. Dando as costas para o espocar ofuscante dos flashes, ela olhou para o alto e leu o que estava talhado na pedra da arquitrave, acima das quatro colunas que sem dúvida estavam ali para sustentar o peso metafórico das palavras:

DEFENDER OS FILHOS DOS POBRES & PUNIR OS MALFEITORES

Diante daquilo ela sentiu um peso no coração, achando que de algum modo havia negligenciado seu dever de cidadã. Seria mesmo possível botar a mão no fogo por Khalid? Que motivos ela realmente tinha para acreditar na inocência dele tão inequivocamente quanto o detetive acreditava na culpa? Olhando de novo para a imagem do anjo encapuzado, ficou com a impressão de que ele havia acabado de anotar o nome dela no livro que trazia sobre o colo.

Samantha Boyd também havia sido julgada.