Acabamos sem nunca descobrir o que aconteceu com Sumire. Como Miu disse, ela desapareceu feito fumaça.
Dois dias depois, Miu voltou à ilha na barca de meio-dia, com um funcionário da embaixada do Japão e um policial encarregado de assuntos turísticos. Reuniram-se com a polícia local e encaminharam uma investigação em grande escala, envolvendo os ilhéus. A polícia divulgou uma solicitação pública de informações, exibindo uma versão ampliada da foto do passaporte de Sumire em um jornal nacional. Várias pessoas entraram em contato, mas nada deu resultado. A informação acabava sempre por dizer respeito a outra pessoa.
Os pais de Sumire também foram para a ilha. Eu parti um pouco antes de eles chegarem. O novo semestre na escola se aproximava, mas, principalmente, não consegui suportar a idéia de enfrentá-los. Além disso, a imprensa no Japão tinha ouvido falar dos acontecimentos e começara a contactar a embaixada japonesa e a polícia local. Eu disse a Miu que estava na hora de eu retornar a Tóquio. Permanecer por mais tempo na ilha não ajudaria a encontrar Sumire.
Miu concordou. Você já fez muito, disse ela. Realmente. Se não tivesse vindo, eu teria ficado completamente perdida. Não se preocupe. Explicarei tudo aos pais de Sumire. E me ocuparei dos repórteres. Deixe isso comigo. Para começar, você não tem responsabilidade nenhuma no que aconteceu. Posso ser muito metódica quando é preciso, e consigo ficar firme.
Ela me levou ao porto. Eu tomaria a barca da tarde para Rodes. Fazia exatamente dez dias desde que Sumire tinha desaparecido. Miu me abraçou quando eu estava para embarcar. Um abraço muito natural. Por um longo momento, passou a mão em minhas costas, em silêncio. O sol da tarde estava quente, e estranhei sua pele fria. Sua mão estava tentando me dizer alguma coisa. Fechei os olhos e escutei as palavras. Não palavras — algo que não se fundia em linguagem. No meio do nosso silêncio, algo se passou entre nós.
— Cuide-se — disse Miu.
— Você também — eu disse. Ficamos um pouco ali, em frente da prancha de embarque.
— Quero que me responda francamente — disse Miu em um tom grave, logo antes de eu embarcar. — Acha que Sumire não vive mais?
Sacudi a cabeça.
— Não posso provar, mas sinto que ela continua viva em algum lugar. Mesmo depois de tanto tempo, não consigo ter a sensação de que ela está morta.
Miu cruzou seus braços bronzeados e olhou para mim.
— Na verdade, sinto exatamente a mesma coisa — disse ela. — Que Sumire não está morta. Mas também sinto que nunca mais a verei. Embora eu tampouco possa provar.
Não falei nada. O silêncio entrelaçou-se nos espaços à nossa volta. Aves marinhas ganiram ao atravessar o céu sem nuvens, e, no café, o garçom sempre sonolento ergueu mais uma bandeja de bebidas.
Miu apertou os lábios e ficou absorta em pensamentos.
— Você me odeia? — perguntou por fim.
— Porque Sumire desapareceu?
— Sim.
— Por que a odiaria?
— Não sei. — Sua voz tingiu-se de uma exaustão há muito reprimida. — Tenho a impressão de que nunca mais o verei também. Foi por isso que perguntei.
— Eu não a odeio — eu disse.
— Mas quem pode afirmar no futuro?
— Não odeio as pessoas por coisas assim.
Miu tirou o chapéu, ajeitou a franja e tornou a colocá-lo. Olhou-me com atenção.
— Talvez porque não espere nada de ninguém — disse ela. Seu olhar foi profundo e límpido, como o escuro crepuscular do dia em que nos conhecemos. — Eu não sou assim. Só quero que saiba que gosto de você. Gosto muito.
E nos despedimos. A barca afastou-se do cais, a hélice revolvendo a água enquanto girava 180 graus. Miu ficou no porto me observando partir. Usava um vestido branco justo e, ocasionalmente, estendia o braço para segurar o chapéu e impedir que fosse levado pelo vento. Em pé ali, no cais daquela pequena ilha grega, parecia algo de um mundo diferente, fugaz, cheia de graça e beleza. Recostei-me na balaustrada do convés e observei-a até desaparecer. O tempo pareceu se imobilizar, a cena ficou gravada em minha memória para sempre.
Mas o tempo recomeçou a se mover e Miu foi-se tornando menor, e menor, até se tornar um ponto indistinto e, por fim, foi tragada no ar tremeluzente. A cidade foi se distanciando, a forma das montanhas se tornando indistintas e, finalmente, a ilha fundiu-se na névoa de luz, tornando-se um borrão, até desaparecer completamente. Outra ilha surgiu substituindo-a e, de maneira semelhante, desapareceu a distância. Com o passar do tempo, todas as coisas que ali deixei pareceram nunca ter existido.
Talvez eu devesse ter ficado com Miu. E daí se o semestre estava para começar? Devia encorajar Miu, fazer tudo que pudesse para ajudá-la na busca e, se algo terrível acontecesse, então a abraçaria, a consolaria como pudesse. Miu me queria, acho, no sentido que eu a queria também.
Ela tinha se fixado no meu coração com uma intensidade incomum.
Percebi tudo isso quando estava no convés e a observava desaparecer a distância. Um sentimento me tomou, como se mil cordões me puxassem. Talvez não um amor romântico, mas algo bem próximo. Aturdido, sentei-me em um banco, pus a bolsa sobre os joelhos e observei a esteira branca deixada pelo barco. Gaivotas acompanhavam a barca, bem próximas à esteira. Eu ainda podia sentir as mãos de Miu nas minhas costas, como a pequenina sombra de uma alma.
Pretendia voar imediatamente de volta a Tóquio, mas, não sei por quê, a reserva que eu tinha feito fora cancelada, e acabei passando a noite em Atenas. O ônibus da companhia aérea me conduziu a um hotel na cidade. Um hotel confortável, agradável, perto do distrito de Plaka que, infelizmente, estava lotado de um grupo alemão turbulento. Sem ter o que fazer, vaguei pela cidade, comprei suvenires para ninguém em particular e, ao anoitecer, subi ao topo da Acrópole. Deitei-me em uma laje, a brisa crepuscular soprando sobre mim, e contemplei o templo branco flutuando lá em cima, na luz azulada dos holofotes. Uma cena onírica, encantadora.
Mas tudo o que eu sentia era uma solidão sem par. Antes que eu percebesse, o mundo em volta foi privado de cor. Do cimo maltratado da montanha, as ruínas desses sentimentos vazios, vi a minha própria vida estendendo-se no futuro. Parecia uma ilustração de um romance de ficção científica que li em criança, sobre a superfície desolada de um planeta deserto. Nenhum sinal de vida. Cada dia parecia durar para sempre, o ar ou estava fervendo ou gelando. A nave espacial que me levara para lá tinha desaparecido, e eu estava preso. Tinha de sobreviver sozinho.
De novo, compreendi como Sumire era importante, era insubstituível para mim. À sua maneira, uma maneira especial, ela tinha me mantido amarrado ao mundo. Quando conversava com ela e lia suas histórias, minha mente se expandia, e eu era capaz de ver coisas que nunca tinha visto antes. Sem esforço, fomos nos aproximando. Como dois amantes jovens se despindo um em frente do outro. Sumire e eu expusemos nossos corações um para o outro, uma experiência que nunca mais tive com ninguém. Tratávamos com carinho o que vivíamos juntos, embora nunca colocássemos em palavras como era precioso.
É claro que dói nunca termos nos amado de uma maneira física. Teríamos sido muito mais felizes. Mas foi como a maré, a mudança de estações — algo imutável, um destino impossível de ser alterado. Não importa o quão inteligentemente podíamos resguardá-la, a nossa amizade delicada não ia durar para sempre. Estávamos fadados a um impasse. Isso estava dolorosamente claro.
Eu amava Sumire, mais do que qualquer outra pessoa, e a queria mais do que a qualquer outra coisa no mundo. E não podia simplesmente arquivar esse sentimento, pois não havia nada que pudesse substituí-lo.
Sonhei que um dia aconteceria uma transformação repentina, importante. Mesmo que as chances de isso ocorrer realmente fossem escassas, podia sonhar, não podia? Mas eu sabia que nunca se tornaria realidade.
Como a maré, quando retrocede, deixa o litoral completamente limpo, Sumire, ao partir, me deixou em um mundo distorcido, vazio. Um mundo sombrio, frio, em que o que ela e eu tínhamos vivido nunca mais aconteceria.
Cada um de nós tem um quê especial que só podemos usufruir em um momento especial da nossa vida. Como uma pequena chama. Alguns poucos afortunados cuidam dessa chama, alimentam-na, segurando-a como uma tocha para iluminar seu caminho. Mas, uma vez apagada, nunca mais se acende. O que eu tinha perdido não tinha sido somente Sumire. Eu tinha perdido essa chama preciosa.
Como será — no outro lado? Sumire estava lá, e também a parte perdida de Miu. A Miu de cabelo preto e apetite sexual sadio. Talvez tenham se esbarrado, se amado, se completado. “Fazemos coisas que não se consegue pôr em palavras”, Sumire, provavelmente, me diria, colocando em palavras do mesmo jeito.
Terá lugar para mim lá? Poderei estar com elas? Enquanto fazem um amor apaixonado, sentarei em um canto de um quarto em algum lugar e me distrairei lendo Obras reunidas de Balzac. Depois que tomassem banho, Sumire e eu faríamos longos passeios e conversaríamos sobre todo tipo de coisas — como sempre, com Sumire falando a maior parte do tempo. Mas a nossa relação duraria para sempre? É natural? “É claro”, diria Sumire. “Nem precisa perguntar isso. Pois você é o meu único e verdadeiro amigo!”
Mas eu não tinha uma pista de como chegar a esse mundo. Passei a mão sobre a face de rocha dura, escorregadia, da Acrópole. A história tinha se filtrado na superfície e estava armazenada dentro. Querendo ou não, eu estou aprisionado neste fluxo de tempo. Não posso escapar. Não — isso não é totalmente verdade. A verdade é que realmente eu não quero escapar.
Amanhã, pegarei um avião e voarei de volta a Tóquio. As férias de verão estão chegando ao fim, e tenho de entrar, mais uma vez, na corrente incessante do cotidiano. Lá há lugar para mim. O meu apartamento, a minha mesa, a minha sala de aula, os meus alunos. Dias tranqüilos me aguardam, romances para ler. Uma aventura ocasional.
Mas amanhã serei uma pessoa diferente, nunca mais serei quem eu fui. Não que alguém vá notar quando eu chegar ao Japão. No exterior nada estará diferente. Mas alguma coisa no interior se extinguiu, desapareceu. Sangue foi derramado, e algo dentro de mim se foi. De cabeça baixa, sem uma palavra, esse algo saiu de cena. A porta abre; a porta fecha. As luzes se apagam. Este é o último dia da pessoa que sou agora. O último crepúsculo. Quando amanhecer, a pessoa que sou não estará mais aqui. Outro ocupará este corpo.
Por que as pessoas têm de ser tão sós? Qual o sentido disso tudo? Milhões de pessoas neste mundo, todas ansiando, esperando que outros as satisfaçam, e contudo se isolando. Por quê? A terra foi posta aqui só para alimentar a solidão humana?
Virei-me de costas na laje, contemplei o céu e pensei em todos os satélites feitos pelo homem girando ao redor da Terra. O horizonte continuava delineado com um brilho tênue, e estrelas começavam a cintilar no céu profundo, cor de vinho. Busquei entre elas a luz de um satélite, mas ainda estava muito claro para localizar um a olho nu. As poucas estrelas pareciam fixas no lugar, imóveis. Fechei os olhos e prestei bastante atenção aos descendentes do Sputnik, mesmo agora circulando ao redor da Terra, a gravidade seu único elo com o planeta. Almas solitárias de metal, na escuridão desobstruída do espaço, encontravam-se, passavam umas pelas outras e se separavam, nunca mais se encontrando. Nenhuma palavra entre elas. Nenhuma promessa a cumprir.