Nasci no último dia do ano, pouco depois das seis da tarde. Fui planejado. Assim que minha mãe contou que estava grávida, meu pai disse: “Ela está grávida do Marcelo!” Desde então, começaram a fazer roupas de criança. Em tudo estava bordado “Marcelo”. Meu pai queria que fosse menino, e o nome já estava decidido.
Nasci numa casinha linda, que tinha lago, peixinhos e plantas. Lembro-me bem desse lago e da fachada da casa. Não foi onde passei a infância, mas não a esqueci. Fui até lá depois dos tiros. Parei um tempo, fiquei olhando. Tentei, mas não consegui ver o outro lado do muro. A casa estava fechada.
Minha tia mora no mesmo lugar até hoje: rua Vítor Alves. Ali eu vivi aquele subúrbio dos sonhos, que é a minha ideia de infância.
A geração dos meus pais foi a primeira do bairro a querer uma vida mais urbana. Antes, ou você tinha uma birosca, ou trabalhava com a enxada. Mas, naquele momento, aquela área de Campo Grande passou a ter outra opção de vida, além do campo e do comércio local: começou a virar uma cidade-dormitório, os pais saindo cedo para trabalhar e voltando para casa à noite.
No fim da tarde, as mulheres começavam a varrer a calçada, repetindo o que já haviam feito pela manhã. Depois se concentravam nos portões, botavam as cadeiras na calçada e ficavam de papo, vendo as crianças brincando na rua. Era uma forma de receber os maridos que voltavam do trabalho. Eu via essa ciranda e adorava: a chegada dos pais. Não para mim, que só ia vê-los às dez da noite. Mas a maioria sentia essa energia, o que acabava juntando todo mundo.
Eu me ressentia um pouco com essa história de os meus pais não chegarem no fim da tarde. Principalmente o meu pai. Não era tão ruim no caso da minha mãe, porque, como era professora, muitas vezes eu estudava no mesmo colégio em que ela trabalhava – de alguma forma, permanecia sob seus cuidados e orientação. Mais duro para mim era a ausência física do meu pai. Mas o importante é que nunca senti o vazio da falta de amor. Lembro-me do ritual da chegada dos trabalhadores, as conversas nos portões, as mulheres varrendo, conversando, e as crianças brincando na calçada, como algo épico. Foi uma das primeiras noções que tive de comunidade, uma das primeiras vezes que experimentei esse orgulho do comum, de comungar o espaço público.
Por mais que a gente não tivesse grana, aquele foi um bom lugar para ter nascido. Ficava numa área que parecia um bairro fechado. Todos os vizinhos se conheciam. Vejo fotos dos meus pais naquela época, e eles sempre me passam a impressão de um casal com muita confiança no futuro: sem medo e felizes por estarem iniciando uma família. Quando nasci, eles já estavam juntos havia pelo menos uns dois anos.
Meus pais se conheceram por intermédio de amigos próximos. Nessa época, na comunidade em que viviam, o máximo para a mulher era ser normalista. Estudar significava ter que sair de Campo Grande rumo ao centro da cidade, fazer uma prova de admissão e pegar trem. Era uma coisa de poder feminino. A garota, com 15 anos, tinha que adquirir autonomia para andar sozinha. As normalistas vinham todas no mesmo vagão do trem – e os homens interessados nelas, também.
Os dois eram professores. Na minha infância, cada um tinha dois empregos. No ano em que nasci, 1965, meu pai ainda não tinha completado nem o antigo primário. Em cinco anos, tornou-se professor. Teve que fazer um esforço enorme. Havia o que era conhecido como “Artigo 99”, um tipo de supletivo para adultos, que permitia estudar à noite, levar apostilas para casa e depois fazer as provas. Ele sempre teve muita determinação, uma vontade enorme. Meu avô achava que, se ele trabalhasse para a prefeitura capinando, já seria o máximo.
A minha família paterna era muito mais pobre que a materna. Meu pai demorou a morar em uma casa de tijolos, por exemplo. Mas ele tinha interesse em aprender, além da vaidade. Ele adora contar uma história que me lembra um pouco a mim mesmo. Meu avô tinha um amigo chamado Chico Cacareco, que trabalhava catando lixo. Tudo o que achava de interessante levava para casa – inclusive livros. A questão é que ele era analfabeto. Tinha pilhas de livros e discos. E, mesmo analfabeto, sempre que podia aumentava sua biblioteca. Chico Cacareco fortalecia no meu pai esse desejo de saber sempre mais. Acho que é por isso que gosta tanto da história.
Vivi algo parecido, essa vontade de superar uma espécie de quadro desfavorável, uma adversidade, por conta de uma árvore que ficava atrás da casa da minha tia. Era um pé de fícus, em que não é muito difícil subir. Eu tinha uns 5 anos e sempre fui o mais atirado. Subi no primeiro galho, fui indo, indo, e pude ver o meu bairro de cima. Vi o horizonte. Olhava aquelas pipas no final da tarde e me perguntava o que havia depois delas. Queria ir para lá, saber o que existia bem longe. Eu tinha algo assim como um tédio infantil. Achava chata aquela área que delimitavam para mim. Ver todo mundo escutando jogo no rádio de pilha aos domingos me dava um tédio fodido. Como é que podiam gostar tanto daquilo? Só fui curtir futebol mais tarde.
Os amigos do meu pai eram os mais descolados daquela comunidade, e a afinidade se dava muito pela leitura. Ele podia não ter informação, mas sentia necessidade de mudar. Tinha até amigos que iam estudar medicina. A vaidade dele era usar a melhor roupa e transmitir conhecimento, sabedoria. Ele queria mostrar que era de outro nível social. Durante muito tempo, só o julguei pela vaidade. Hoje percebo que ele tinha uma necessidade de se inserir no mundo, de ser contemporâneo. Lia Sartre, ouvia Beatles – o que foi revolucionário para ele –, consumia Cinema Novo, filmes franceses e bossa nova. Ambicionava fazer parte de tudo isso. A roupa não era só uma questão estética – era principalmente comportamental. A geração dele foi a primeira a entender que a moda era uma forma de expressão. Ele também queria se vestir bem, usar algo que o representasse como era por dentro.
Meu pai e meu padrinho, Enéas, contam que chegavam a ter diarreia pelo nervosismo de buscar uma nova vida. Eles já sabiam onde estavam os banheiros mais limpos, o papel mais macio e o sabão mais cheiroso. Na mesma época, também frequentavam os bailes do Clube dos Aliados, em Campo Grande. Essa fricção social impulsionou meu pai. Sou fruto dessa tentativa de se libertar das rédeas sociais. Se ele não tivesse dado esse salto, eu também não poderia dar os saltos que dei. Hoje, é muito importante me ver como consequência de algo que, na minha ignorância, em algum momento julguei “menor”.
Acho que me desenvolvi procurando ser uma contrapartida da vaidade que via no meu pai. Como todo filho saudável, não queria repetir o modelo dele. Isso não tirou a ideia de ter meu ego, um ego grande. Por outro lado, me proporcionou um sentido de que a educação serve para controlar esse monstro interior. De alguma forma, consigo conviver bem com esse monstro, sem que ele agrida os outros ou interfira no meu trabalho.
Essa energia de reverter o contexto difícil foi um trampolim para o meu pai. A maneira como externava essas mudanças algumas vezes me parecia vulgar e me dava medo. Como qualquer remédio, se ministrado em excesso, vira veneno. Até porque chegou um momento da adolescência em que quis ser aceito e não fui. E quis ser aceito pela roupinha certa, pelo valor material. Isso me causou depressão, porque eu não era mesmo “aceitável”.
Rumei então para o outro lado. Tive um amigo, o Magoo, que foi muito importante. Ele sacava de música, foi o primeiro cara que vi usar um walkman. Foi ele quem me falou: “Nós somos feios, cara, e não sabemos nem jogar esporte com bola. Então desista. Não adianta você comprar uma camisa descolada, isso não vai fazer você ser aceito.” Entendi, e passei para o outro lado. O Magoo dizia que esse “deslocamento” entre o que éramos e o que queríamos ser estava nos doendo na idade exata, a adolescência. Ele achava triste ver o pai, com mais de 50 anos, vivendo isso. O Magoo chamava este sentimento de “perrengue”.
Ter sido uma criança com essas percepções me fez colher coisas boas, mas também teve um efeito colateral. Sou um cara com baixa autoestima.
Meu avô materno era muito severo e conhecido no bairro como brigão, o que marcou a personalidade da minha mãe e da minha tia. O cara era hábil no cavalo, ganhava corrida, já que teve fazenda a vida toda. Era proprietário de mais de um imóvel, tinha um comércio próprio. Além disso, possuía um senso de justiça meio agressivo. Na casa ao lado morava um homem que batia na mulher. Uma vez minha mãe e minha tia ouviram um barulho e souberam que ele estava batendo na mulher. Meu avô não se conteve e partiu para o enfrentamento: “Não tenho nada a ver com o que você faz aí dentro, mas, se as minhas filhas ouvirem um homem batendo na mulher mais uma vez, eu vou dar uma surra em você.” Aconteceu. Resultado: ele entrou e deu um pau no cara.
Ele era bom na porrada e muito sério. Não usava arma, nem sequer era forte. Naquele tempo, arma não era popular, mas ele tinha o tal senso de justiça. Um dia, um bêbado mexeu com a minha mãe e meu avô bateu no sujeito. Era tudo na porrada. Ele começou a ser visto com o maior respeito no local porque não tinha envolvimento com o crime. Era correto, mas sem muita paciência.
Teve muita resistência em aceitar meu pai. Meu avô paterno tocava pandeiro, engraxava a linha do bonde, gostava muito de mulheres e álcool. Era um bon vivant. O pai da minha mãe achava tudo isso uma merda: “Com essa origem, não vai ter nada de bom para a minha filha.” Quando ela anunciou que estava namorando, ele ficou puto. E, quando comunicou que ia ficar noiva, os dois começaram a discutir e ele acabou jogando uma caneca nela. Meu pai enfrentou esse “apartheid econômico”. Todo mundo gostava dele, menos o meu avô. Ele via a filha formada no curso normal, com um futuro pela frente, e ficava preocupado, pois meu pai não poderia dar a ela um bom futuro. O tempo foi passando e ele testemunhou a luta do meu pai para progredir. Quando meu pai entrou na faculdade, foi uma redenção. No final da vida do meu avô, eles acabaram ficando amigos. Meu avô tinha asma, e muitas vezes era meu pai quem o levava ao hospital.
A convivência com meu avô materno era muito legal. Havia apenas a sombra do cigarro. Ele fumava muito, teve um enfisema pulmonar e acabou morrendo disso. Optou pelo cigarro e morreu convicto. Quando eu falava que era neto do Inácio, tudo mudava. Mesmo com ele já muito debilitado, as pessoas mantinham o respeito: “O Seu Inácio!”
Ele também tinha uma percepção de que afilhado é quase filho. Criou vários. Mamãe e, principalmente, minha tia também. Havia sempre uma criança criada pela minha mãe ou pela minha tia. Foi bom, porque podia ser preto, pobre, não tinha essa. Por conta disso, mantive durante muito tempo a ingenuidade de que não havia discriminação ou preconceito social ou racial. Quando eu era garoto, a única diferença que percebia entre um negro e eu era que as mulheres esticavam o cabelo com ferro quente, e isso produzia um cheiro muito forte. Elas passavam henê, alisavam, ficavam horas nessa função. Eu não gostava daquele cheiro e não entendia o porquê daquilo tudo.
Só via meus pais e meus tios – ocupados com seus dois empregos – depois das dez da noite ou no fim de semana. A menina que tomava conta da gente era de uma família que morava na nossa rua. Suas irmãs e seus irmãos também ajudavam. Eu e meus oito primos tínhamos idades próximas às das crianças da família da menina. Fomos, então, criados como um núcleo só. Meu irmão Renato tem cinco anos a menos do que eu. Paulinho, que é cinco anos mais velho, foi um dos afilhados do meu avô que acabou morando com a gente. Ele tinha família, mas era tratado como filho do meu avô lá em casa. Sempre o chamei de primo, e é como se fosse. E “ser como se fosse” é mais do que ser de fato. Sobretudo num país como o Brasil, onde tem até o queijo “tipo Roquefort”, que só existe aqui! Tem tanto tipo que até a Fiat fez um carro chamado Tipo. Eu tive uma namorada americana que achava isso o máximo, dizia que a gente institucionalizou o “ser o que não é”. É tipo.
Meu pai sempre foi um puta jogador de futebol, coisa que não herdei. Acho que isso o deixou frustrado, e ele não conseguia brincar comigo de outras coisas. O que fazia era me presentear com brinquedos na medida de suas possibilidades. Eu adorava carrinhos, o que me levava a lançar mão de pedaços de tijolo e fingir que eram carros. Também gostava de desenhar. Ficava horas a fio deitado e via na parede pontos irregulares que formavam figuras, como costumamos fazer com as nuvens. Eu desenhava essas figuras na própria parede. Nunca fui muito de jogos ou esporte. Eu me amarrava em pipa, mas também era péssimo nisso. Gostava mais para fazer parte da turma. Em todas as brincadeiras, eu sempre era o pior.
Minha habilidade motora é desgraçadamente ruim. Não sei se por falta de interesse, já que eu vivia no mundo da lua, meio abestado. Por falta de tentativa, nunca foi. Meu pai era foda com o pião, já eu não tinha habilidade com pião nem com porra nenhuma. Meu pai me dava uma bola e eu a usava como boia. Sempre gostei do mar, de nadar, mergulhar, pescar, pegar onda.
Eu ainda era bem novo quando meu pai cursou a faculdade de História. Um dia, ele chegou com um projeto, um trabalho encadernado. Era como um livro que tinha escrito: impactante, colorido e com figuras. Estava repleto de palavras e assuntos que eu não conhecia. O conhecimento estava ali, materializado naquele papel, encadernado. E foi como se eu tivesse acesso àquilo. Eu podia tocar e experimentar a textura do novo conhecimento, as conquistas do meu pai. A partir de então comecei a ter mais respeito pelo saber e passei a entender que isso era muito importante para ele.