Moldei grande parte da minha personalidade na infância. Tenho muitos amigos da adolescência e, quando olho para o passado, vejo que a construção do homem que sou agora se deu na infância, e não na adolescência.
No grupo dos meus primos, eu não era o mais forte nem o mais corajoso. Mas era como a história do fícus que eu escalava: se botasse uma coisa na cabeça, ia fazer. Essa determinação era uma das únicas virtudes que eu tinha, embora não ter tanta coragem também possa ser bom; o medo ajuda a se precaver. Eu era tímido para expressar o humor que já estava dentro de mim e, à medida que a timidez diminuía, o humor ocupava seu espaço. Foi algo que me ajudou. Eu tinha poucos amigos, e a descoberta do humor foi decisiva.
É dessa época – e graças ao Paulinho – minha primeira referência mais próxima de cultura pop. Ele me trouxe a noção do valor do subúrbio, a ideia do rock. Meu primo era pequeno, magro para caralho, mas era quem queria ser. Sempre foi assim. Mesmo sem grana, ele dava um jeito: construía umas bicicletas, uns carrinhos de rolimã. Fazia um lance que era foda: saíamos para ir ao centro de Campo Grande e, nas lojas de eletrodomésticos, ele botava soul e funk nos aparelhos. Unia-se a uns dois ou três e eles ficavam lá, na porta da loja, dançando tipo James Brown. Juntava uma porrada de gente para ver. Eu de lado, morrendo de vergonha, e ele lá, amarradão. Naquele tempo, ninguém tinha som alto em casa. Os vendedores davam corda, porque era bom para mostrar a potência do som.
Paulinho foi protagonista de muitas histórias. Houve um festival de rock em Saquarema, e ele foi com um amigo. Usava uma camiseta Hering que ele mesmo tinha pintado, uma calça do Exército extremamente larga, mais apertada na boca, chinelo (na época, só existia chinelo Havaianas branco, mas, como a sola era colorida, a gente virava e remontava para ter cor) e uma mochilinha. Enquanto isso, eu me preocupava: “Onde ele vai dormir?” Paulinho não tinha a menor ideia e nem ligava para isso. Eu pensava: “O cara não tem nada! Vai dormir no tempo! Que lugar é esse a que ele vai e em que se propõe a estar feliz sem ter nada? Como pode estar feliz assim?” Para mim, até então, felicidade era casa, lar, amigos, comida. Isso me despertou: o cara acreditava em uma coisa e vivia em função dela. E que coisa era essa? Era a música, o rock. Foi a primeira vez que vi a música como algo transgressor, como contracultura, comportamento. Ainda sem saber direito, era a atitude dele que eu admirava mais do que tudo. A música funcionava como um ponto de encontro, de comunhão. Ele estava radiante de passar esse perrengue. De minha parte, entendia que esse negócio devia ser mesmo muito bom para ele topar tudo.
Isso já foi na época em que o Paulinho era cocota. Na história de bailes do subúrbio, existia a divisão entre os brown e os cocotas. Os brown eram os que seguiam James Brown, e os cocotas ouviam rock e adotavam um visual meio Califórnia. Em muitos bailes, dava até briga. Paulinho chegou a ser brown, mas depois virou cocota.
O movimento brown representava a primeira vez em que se assumia a negritude. E esse era o caminho. O primeiro momento em que me expus numa manifestação artística foi cantando uma música do Simonal. Para isso, eu tinha que colocar uma faixa na cabeça, como ele costumava fazer. Era um símbolo de negritude, uma coisa que estava sendo construída ali e que tinha muito a ver com a dança e com o ritmo.
Havia também a cultura hippie, com a transgressão e a droga. O rock propriamente dito me assustava. Quando Paulinho botava um rock, Led Zeppelin, eu ouvia aquele cara gritando... “Como é que pode gritar assim?”, eu pensava. “Isso é coisa do mal!” Já o funk era totalmente ritmado. Só comecei a ouvir rock por volta dos 17 anos, e mesmo assim era um rock que tinha que ter ritmo. Tanto que a banda de rock mais importante para mim é The Clash. Quando ouvi o Clash pela primeira vez não gostei – ou melhor, odiei! Isso porque o primeiro disco que escutei era o mais rock. Foi o último com a formação original. Com 20 anos é que fui mesmo perceber: “Será que essa banda é capaz de tocar tudo?” Isso me abriu o mundo. Antes não conseguia entender, não me chegava.
Na infância, tive outro grande amigo, o Marcos Fernando. Ele era meio diferente: a família tinha grana e morava em um sítio. Seus brinquedos eram especiais e ele gostava de outras atividades. Eu tinha pouco contato com esse garoto, ainda que muito intenso. Ele era mais protegido pela família do que meus outros amigos. Brincar com ele significava ir à casa dele, onde os hábitos eram diferentes. Era raro eu passar um dia na casa de alguém, exceto na dele.
Os amigos, mesmo que poucos, eram um descanso da minha vida tumultuada na escola. Minha alfabetização foi traumática. Achava que, por minha mãe ser professora, teria regalias e mais liberdade. Foi o contrário: “Vai ser o exemplo.” Ela era muito severa. Eu e meu irmão sofríamos, em especial nos ditados. Ela chegou a fazer menção de nos bater com o chinelo – uma das poucas vezes em que nos ameaçou fisicamente. Temos dificuldade de escrever certo até hoje, por trauma.
Todos lá em casa entravam no colégio antes do habitual. Fiz a primeira série com 6 anos. Foi um pedido dos meus pais à escola, porque eles não tinham onde nos deixar. Aprendi a ler e escrever muito cedo. Mas só na faculdade saquei a importância de ler como forma de defesa. No ginásio, me obrigaram a ler Dom Casmurro e não gostei. Eram dois ou três livros por ano e depois uma prova. Até hoje não li Machado de Assis, mesmo sabendo que é importante – fiquei com esse trauma da escola. Eu e um monte de gente! Deveriam indicar outros livros para alunos tão jovens.
Aos 16, comecei a ter acesso a textos de sociologia e antropologia. Na primeira vez, não entendi nada – nem o português, porque era uma linguagem acadêmica. Não tinha ideia do que Umberto Eco estava falando. Até mergulhar nesses textos. Não era obrigação nem algo para o futuro. Era para o meu presente. Foi uma evolução. Aprendi a tirar proveito da leitura. Mantive, em sacos amarrados, os textos que xerocava. Precisava tê-los fisicamente.
Faço o mesmo com os livros. Mesmo tendo lido boa parte dos que tenho, prefiro mantê-los por perto, saber que, em uma madrugada, podem ser uma referência e vão estar lá. Ler foi libertador. A leitura pode ser amiga e companheira. Ela mudou até minha maneira de falar. Tomava uma dura da polícia e percebia que o guarda me respeitava mais por eu ter outra forma de me expressar. Isso garantia – literalmente – minha libertação.
Fui botando em prática o que os textos me ensinavam. Lia Nietzsche e Baudelaire, que têm, em geral, uma visão cruel da humanidade. Eles me confortavam. Estava meio deprimido, então lia autores de acordo com o que eu sentia e que, apesar do desconforto que causavam, não tinham um mau entendimento da vida. Era uma sensação ótima constatar que eu não estava sozinho – um sujeito, um século atrás, tinha questionado as mesmas coisas que eu sentia no meu dia a dia.
Errados estavam os outros! Achei O capital chato para caralho, mas percebi que ganhar dinheiro dessa maneira que conhecíamos não era a única opção. Pensar sobre isso, entender que existiam formas diferentes de viver, era mais uma vez libertador. Nunca acreditei que o comunismo ou o socialismo fossem uma opção. Apenas sabia que esse capitalismo que a gente vive, esse sistema econômico, não é o ideal. Esses questionamentos não eram partilhados por meus amigos. Suas ambições se limitavam a trabalhar para comprar um carro, juntar grana e ter uma mulher gostosa com cabelo pintado de louro. O sentido era esse.
Com os livros, me dei conta de que não tinha que seguir assim. Desde a infância sofria com a diferença brutal de atitudes e por me sentir diferente. Ninguém havia me falado que o pobre tinha menos poder, que o preto tinha menos força na sociedade, que o pobre tinha que trabalhar mais para o rico ganhar mais. Ninguém tinha me falado, a não ser os livros. Os livros e a rua. Ninguém havia me explicado por que o preto é visto de uma forma diferente. Tudo isso me chocou no momento em que eu construía os meus valores. Em casa, tinha um sentimento de culpa enorme – que trago até hoje – porque meus brinquedos eram melhores (meus tios tinham seis filhos, e meus pais, apenas dois).
Sou inábil com dinheiro. Mas, em razão dos tiros, aproveitei o distanciamento: fiquei mais de dois anos sem segurar uma cédula de dinheiro, totalmente fora desse contato. O que vivi na infância – desde a árvore no fundo do quintal até a diferença nos brinquedos, a falta de talento com os jogos de rua e a timidez – me ronda ainda mais. Felizmente consigo colocar tudo isso no meu trabalho.
Todos os brinquedos que ganhava viravam objetos para batucar. Eu batucava em todo canto. Se me dessem um trenzinho, pegava duas colheres de pau e ia bater nele. Sempre vestido com uma capa – era a minha coisa de super-herói. E tinha também a imagem dos Beatles com umas capas. Para mim, eles eram meio super-heróis, não eram pessoas de verdade. Quando batucava, eu era um herói. No colégio, o mais importante era batucar na carteira. Na adolescência, tinha um cara, o Severino, que batucava para caralho e tirava uns solos de bateria. Virou meu ídolo!
A descoberta do ritmo foi sensacional, ler foi libertador, mas ainda mais libertador foi escrever. Escrever de verdade!
Antes um pouco, eu desenhava. Mostrei habilidade desde cedo. Como meu pai desenhava muito bem, aquilo me intimidava. Mas ele gostava dos meus desenhos e queria mostrá-los para as pessoas – uma exposição que eu detestava. Já a escrita veio na adolescência, quando eu me expressava de verdade, e não somente escrevia. Aquilo virava um pedacinho de papel no fundo da gaveta. Ninguém via. Eu não correria o risco de ser exposto, como acontecia com os desenhos.
No início, eram uns textos meio deprimidos, sobre essa falta de encaixe. Não tinha noção política nem poética. Eram umas coisas estilo Renato Russo, umas poesias tipo a canção “Índios”. Tanto que, quando essa música apareceu, eu senti que poderia ter sido o autor! Não seria tão bem-feita quanto a que o Renato fez, mas teria o mesmo sentimento. Nunca escrevi diário nem poesia romântica. Não que não me doesse, já que sempre fui romântico para caramba, mas era algo mais profundo. Antes de pensar por que a mulher que eu amava não gostava de mim, refletia sobre o desajuste de não ser notado pelo que eu era, de não estar dentro da fórmula. Escrevia que ela não gostava de mim porque eu era um outsider. Na época eu nem sabia que era esse o nome, mas era assim que me via: um outsider. Até hoje me vejo assim.
Faz parte da minha construção, das minhas preocupações, questionar mais a razão de não ser aceito do que a falta de aceitação propriamente. Quando comecei a escrever, não sabia que isso poderia virar poesia ou uma canção. Era botar os bichos para fora, buscar um conforto e amenizar a minha dor. Eu já percebia que o mundo era cruel. O que me doía não era só o que era íntimo, como a rejeição de uma mulher.
Um episódio com um amigo, o Tuscula, marca bem isso. Quando tínhamos uns 16 anos – eu já me achava homem feito –, Tuscula era alto, forte e jogava vôlei para caralho. Combinamos de jogar de noite, umas nove horas. A bola de vôlei era de uma menina portuguesa e precisávamos ir à casa dela para pedir emprestada. Eu estava armando a rede e falei: “Tuscula, vai lá pedir a bola.” Ele se negou a ir. Insisti, e ele respondeu: “Acho que não dá para ir. São nove horas da noite.” E eu: “Com certeza ela ainda está acordada. Está na hora da novela. Por que você não vai?” Aí ele se abriu: “Porque já pensou chegar um negão na casa deles numa hora dessas? Eles são portugueses, tudo lourinho.” Eu não entendi, e ele continuou: “Se você chegar lá, é uma coisa; se eu chegar, é outra.” Foi mais uma das vezes em que percebi como eu era despreparado para a vida real. Fui lá e disse: “Eu fico aqui e você vai tocar a campainha.” As casas eram todas sem muro, formato americano. Ele tocou a campainha e a menina abriu. “Dá para emprestar a bola para a gente?” E ela: “Só um instantinho...” Foi lá dentro e entregou a bola. Não teve nenhuma reação preconceituosa. Ele é que já tinha esse sentimento de inferioridade enraizado.
Tempos depois, quando eu estava começando a faculdade, já de volta ao Rio depois de morar em Angra, foi que me dei conta: “Isso existe!” E essa percepção fatalmente vira recheio de papel, e esse papel vira recheio de gaveta. Doía demais a certeza de estar despreparado para a vida. Passou a ser um dos meus temas favoritos. Só não sabia que esse recheio de gaveta falava não só sobre mim, mas sobre a sociedade como um todo. Isso eu fui percebendo aos poucos.