“Sua música mudou a minha vida!”

A primeira pessoa a quem mostrei algo que tinha escrito foi uma namorada, a Renata. Eu era o oposto dela. Antes de mim, ela namorava um amigo meu, que jogava vôlei, era bonito e era bom em tudo o que fazia. Ela era uma garota bonita também, que poderia até fazer o tipo patricinha, mas tinha algo mais. Não era fútil. Ela via em mim uma possibilidade diferente e, por isso, fiquei tranquilo de mostrar a ela o que eu escrevia. Em algum momento, a gente construiu uma amizade muito grande. Então, quando fui tocar na banda KMD-5 e escrevia algumas letras de música, mostrei a ela meus escritos.

Era uma banda criada na Baixada Fluminense. Quando cheguei àquela realidade, desmoronei ao constatar a situação das pessoas. Entrava chorando no ônibus para voltar para casa. Certa vez, perguntei a um garoto que tocava percussão lá com a gente, ao ver um monte de lixo: “Não tem lixeiro aqui?” E ele me respondeu: “Faz anos que não.”

Nunca tive nada parecido com alguma epifania que tenha me feito dar mais valor ao que escrevia ou achar que eu tinha a missão de escrever. Nada disso. Foi só n’O Rappa que isso virou endêmico e ecoa até hoje. Mas n’O Rappa acabei massacrado pelo fato de fazer muitas músicas – o autor das letras tem 50% dos direitos autorais. Eles queriam, principalmente o Falcão, dividir tudo igual. Eu não podia compactuar com isso já que, de fato, era eu quem escrevia. Na hora em que me tornei alvo pela repercussão das letras, quando era para me afirmar no ambiente de trabalho, aquilo se tornou um problema. Escrever era um problema! Com a minha baixa autoestima, percebo que, de alguma maneira, todas as vezes que tive um talento valorizado, isso magoou alguém. Então acabei me boicotando de alguma forma.

O Rappa amplificou o meu texto e isso me castigou para caralho. Não foi prazeroso. Nunca quis me valorizar por achar que tinha mais gente me escutando. Tocar, para mim, é mostrar as minhas composições. Nunca tive prazer em tocar o que não fosse meu. E havia a timidez. Nunca chamei, nem vou chamar, amigo meu para me ver tocar ou escutar minhas músicas. Sou tão mal resolvido com isso que, se chamasse algum amigo para me ver, seria como se falasse: “Vai lá ver como eu sou foda, como o meu trabalho está foda.”

Não me acho bom o suficiente para pensar que vale a pena alguém me ver, mesmo tendo relatos emocionantes do que acontece no meu dia a dia, quando endossam que tenho uma certa habilidade de comunicação. Um dia, um garoto postou na internet um vídeo de voz e violão em que ele tocava, no quarto, uma música que fiz no F.UR.T.O. É a canção mais pessoal do disco, chamada “Caio para dentro de mim”. O moleque cantava com tanta propriedade que parecia que a música era dele. Fiquei tão emocionado que vi o vídeo chorando o tempo todo. Foi ainda mais marcante pelo fato de o disco não ter acontecido. Bem diferente dos grandes sucessos d’O Rappa. Começou em um pedaço de papel, uma história que só dizia respeito a mim. Como isso passa a ser a realidade de uma pessoa? Uma vez, uma garota grávida me parou em Porto Alegre e falou: “Eu era viciada em cocaína. Ouvindo a sua música, parei, conheci meu marido e hoje estou assim.” Transcendeu. Deixou de ser sobre a minha vida ou o meu ponto de vista.

No começo, acho que é aquilo do fã com o mito, do fã procurando algum pretexto para falar com o ídolo. Então tenho certo desdém. Agradeço do fundo da minha alma, mas não levo muito a sério. E eu, como mito, fiquei maior, fui impulsionado pela tragédia. Hoje tenho a tragédia impressa na minha imagem. Me vejo um pouco como na construção do mito grego, que tem a história de um homem, do que ele fez para ser notado, e depois vem a desgraça, para que exista a superação. A tragédia, de alguma forma, também se confunde com a minha obra. Antes e depois dela. Tenho todos os quesitos de um mito. Mas ainda não acredito que possa ser relevante para alguém além de mim mesmo.

Certa vez, fiz uma palestra num CEU, um tipo de Ciep de São Paulo. Era uma comunidade realmente pobre, onde havia umas crianças desnutridas – assim parecia. Faltava alimentação para aquelas crianças em plena capital do estado mais rico do país! Três caras, todos um pouco mais velhos, vieram até mim. Um deles falou: “Te acompanho desde O Rappa e fui ao show do F.UR.T.O.” Agradeci, e ele continuou: “Queria falar que a sua música mudou a minha vida!” Fiquei meio sem jeito e ele prosseguiu: “Mudou mesmo. Eu aprendi a pensar ouvindo as suas músicas.” Ele foi me colocando contra a parede, como se eu realmente tivesse sido responsável por alguma mudança. “Meu irmão, foi você quem se interessou, você que teve a sensibilidade para escutar a música dessa forma.” Ele me interrompeu: “Quer saber por quê? Porque não é uma coisa direta. Nas suas letras, a gente tem que entrar, e por isso tem a poesia. Isso me fez pensar.” Em seguida, me apresentou aos seus amigos: “Esses são amigos meus de infância. A gente ouvia e pensava junto. E, não por coincidência, somos os únicos na região toda que estamos fazendo faculdade. Faculdade pública!” Ele continuou falando com muito orgulho até eu ter que ir embora. Entrei no carro e tive uma crise de choro: minha música o fizera pensar. Quantos artistas podem experimentar essa sensação? Sem querer ser caricatura de mim mesmo, vivo isso quase diariamente. Mesmo assim, ainda convivo com a minha baixa autoestima.

Até hoje, por mais que ocorram essas confirmações da minha capacidade de me comunicar, continuo, de alguma maneira, me punindo. Não consigo tratar essa dificuldade em receber. Me acostumei a ser aquele que dá.

Como posso seguir assim se a vida me coloca nesta situação de imobilidade?

Se quiser me deslocar para a poltrona agora, vou ter que receber ajuda. Como conviver com isso? Tenho dificuldade em receber amor, cuidados e também reconhecimento. Não me acho merecedor de nada. Tenho até teorias. Por exemplo: a gente tem uma poesia de alto nível na música brasileira e muita gente diz que eu fui um dos melhores dos anos 1990. Fui porque era bom ou porque o nível era ruim? Não consigo me comparar – nem a minha geração – a compositores como Caetano, Gil, Gonzaguinha, Chico Buarque, Paulinho da Viola. Se fizerem um livro com as letras de música dos anos 1960 e 1970, quem tiver acesso a ele poderá dizer que não se trata de canções, mas de poesia de alto nível. O Gonzaguinha é de fazer chorar. Caetano dessa época é foda! Eu me alimento deles, são referências para mim. Minha geração pode ter dado um salto de qualidade do ponto de vista da sonoridade e da atitude, mas não poeticamente. Estou convencido disso. Existem estudos da musicalidade dos anos 1990, mas pouca gente fala sobre o que foi a poética desse período. Tivemos muito mais impacto pela sonoridade e por trazer a imagem de um Brasil urbano novo. Sabíamos o que dizer e falávamos mais do que só pelas palavras.

Tudo o que fez parte da minha infância, da forma como vivi, vi e refleti sobre os fatos – sendo eles verdades ou não, fantasias de criança ou não –, foi o que me fez chegar até aqui, com a forma de pensar que tenho hoje. Ainda era pequeno quando soube que minha mãe havia perdido dois bebês prematuros (ambos meninas). Não sei por quê, mas sempre achei que isso houvesse acontecido antes do meu nascimento. Tinha, então, essa dor de que as meninas não vingaram por falta de grana. Na realidade, soube mais tarde, o útero da minha mãe era pequeno. O engano foi determinante para o que me tornei. Hoje não faz diferença saber que elas vieram depois de mim. Acreditei por anos que elas morreram pela falta de grana dos meus pais, enquanto eu fui tão querido e desejado. Vim para ser o Marcelo. E aqui estou.