Nasce o Lombriga

Na pré-adolescência, vivi minha primeira mudança radical. Meu pai começou a trabalhar em Furnas, em Angra dos Reis, por conta da construção da usina nuclear. De garoto suburbano, passei a garoto de praia – o prazer de pegar onda também foi libertador.

No início, não havia vaga na vila operária, em Mambucaba. Então fomos morar em Angra dos Reis, mas, como íamos acabar na vila, fui matriculado na escola de lá, que ficava a uns 40 quilômetros da cidade. Passou-se um ano e nem eu nem meu irmão conseguimos fazer um amigo sequer na rua. Ficávamos basicamente presos em casa. Tínhamos três discos: The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd; um do Jorge Ben Jor e a trilha internacional da novela Locomotivas. Eu ouvia música o tempo todo. O disco da novela me marcou tanto que uma faixa que usava uns sintetizadores está até hoje na minha cabeça.

Íamos para a escola no ônibus dos professores. As únicas crianças éramos eu e meu irmão. Eu tinha 11 anos e, entre meus professores, o mais novo estava na faixa dos 25. Fiz amizade com gente mais velha e passei a me interessar por aquilo que eles conversavam. A escola era pública, em frente à praia. Um colégio público não era novidade para mim, mas em frente à praia... Pirei! Ali comecei a ter um senso de humor desgraçado e a tocar o rebu na sala de aula. Deixei de ser o Marcelo. Ganhei o apelido de “Lombriga”. Libertei-me do Marcelo dos pais e comecei a ter uma personalidade. Foi o momento da troca da timidez pelo senso de humor, característica marcante que vem do meu pai: antes de você me derrubar, eu já me derrubo sozinho. As piadas eram todas autodepreciativas, sempre se referindo ao anti-herói, ao outsider, ao perdedor.

Isso se mostrou útil anos depois, aos 16 anos, quando me instalei em uma república no Rio. Os outros moradores tinham 20 e tantos anos. Todo mundo me sacaneava, eu era o palha da galera. Mas, com esse humor que aprendi com meu pai, acabava comigo muito antes deles. Como alguém vai zoar um defeito meu se já fui o primeiro a fazê-lo? Funcionava até com as mulheres. Ficava parecendo que eu era um cara seguro, com personalidade. Mal sabiam que era tudo uma estratégia de defesa. O Lombriga começou a encontrar um espaço social melhor do que o destinado ao Marcelo. Eu era o meu anti-herói.

Nessa época, tinha poucas referências. Meus amigos é que eram os fodões. E ser fodão, para mim, era ser aquele que faz merda e mais merda e mais merda. Meu herói supremo era o Careca, o único que raspava a cabeça. Ele vivia na vila porque a mãe tinha o direito de explorar um bar no pequeno centro comercial do lugar. E, no bar, ele via os podres de todo mundo. Vivia no mundo dele, bem-humorado, sem precisar de ninguém. Foi quem me mostrou a contracultura, quem me falou: “Você é feio, e os feios têm outra conduta. Nós, os feios, estamos à margem. E somos fodas por estarmos à margem.”

Nos anos 1980, o Flamengo estava indo bem para caralho – foi campeão mundial. Quando tinha jogo do Flamengo, ele não ia ao colégio. Até seguia no ônibus da escola, mas de sunga e com uma toalha estampada com a bandeira do Flamengo. Estudávamos, fazíamos prova e esperávamos a hora em que ele iria passar pela janela. Os professores viam aquilo e detonavam, enquanto a gente o encarava como o transgressor. Era atitude! De careca, passou a ser cabeludão: o Careca cabeludo! E começou a ir com a camisola da mãe dele ao único baile que havia na área. Se não era de camisola, era vestido de monge beneditino. Também pintava o cabelo de várias cores.

Nessa época, houve os jogos estudantis em Angra. Como vínhamos de um colégio de fora, éramos odiados. O Careca ia para a torcida alheia sozinho, vestido de padre. Quando alguém do time de Angra ia sacar, ele jogava um mau-olhado e fazia lá umas mandingas. Atualmente, o Careca mora em Camamu, uma cidade do interior da Bahia. Há uns cinco anos, contou que botava terno e ia para a igreja evangélica para se divertir. Um dia ele me explicou: “Lombriga, eu me divirto para caralho! Os caras não sabem nem quem eu sou, mas, quando falo aleluia, todo mundo repete. O pastor vai ficando puto!” Ele tem também um programa de rádio. Careca é até hoje o que era lá atrás. O colégio era o palco onde ele manipulava as massas. Era o meu herói máximo. Mais um cara que me libertou.

Na vila, tudo era muito básico. Só existia um mercado. Era bacana morar num lugar um tanto quanto hostil, um grande canteiro de obras. Todas as casas eram iguais. Os gringos moravam em uma parte, na outra ficava a nossa casa. Quando chovia forte, como acontece naquela região, ficávamos isolados, só conseguíamos sair de barco. Eu não tinha nenhuma relação com a usina, apenas com o entorno.

Nos primeiros tempos, todos os gringos eram americanos. Só depois vieram os alemães. Os americanos eram muitos e levavam uma vida de colônia. Estudavam em um colégio só deles e não se misturavam. Tínhamos contato na rua, onde acabei aprendendo inglês só para xingá-los. Outro motivo forte era o flerte com as meninas.

Eu morava em frente ao mar, o que era tão libertador quanto o fícus do quintal da minha tia. Não tinha porra nenhuma para fazer o dia inteiro. Ficava sentado na areia olhando para longe e viajando. Ali comecei a sonhar com uma grande viagem de barco, desejo não realizado até hoje. Via os barcos passando e pensava: “Que lugar é aquele? Quero ir para lá.” Podia permanecer assim por horas, mesmo sendo aquela região um penico onde chove sem parar! Permanecia, debaixo de chuva, olhando o barquinho passar no horizonte, onde estava sol, lá na puta que o pariu. E pensava: “Quero o sol, a liberdade do barco no oceano.” Foi aí que chegou o surfe, uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida.

Existe o antes e o depois de começar a surfar. Para um garoto do subúrbio, de Campo Grande, deslizar na água é mágico. Além da sensação de liberdade, o surfe também se tornou parte de um processo de criação de outro ambiente estético – a prancha, a roupa, o biquíni, a praia, o sol, o rock, a música. Comecei a fazer uma associação nova: soul music e surfe. Quando queria botar uma música de praia, escolhia uma de baile de subúrbio. Eu não tinha nenhuma referência da Califórnia na minha vida. Mesmo Bob Marley veio depois.

Magoo me apresentou duas coisas definitivas: o walkman e a mobilete. Com o walkman, era possível ouvir música ao ar livre, já a mobilete me permitia andar de moto e ouvir música ao mesmo tempo! Foi a hora do reggae, que tinha tudo a ver com a praia e o surfe. Mais tarde passei a curtir um reggae mais urbano, um pouco diferente dessa vertente tropical e praieira.

A vida desabrochou em mim em Angra dos Reis. Eu não tinha as referências de Ipanema e da Zona Sul. Só tinha visto surfe em propagandas como as do cigarro Hollywood. Quando me deparei com um cara deslizando em cima de uma prancha, meu primeiro impulso foi querer experimentar aquilo. Com o dinheiro do meu pai – que ele havia juntado com o maior esforço –, comprei uma prancha velha, toda fodida. Para completar, tinha aptidão para o esporte, apesar do medo da prancha e de passar vergonha.

Foi ali que conheci um sujeito menor que eu, magricela e também fraquinho: o Bacura. Eu era tão magro e pequeno que meu braço não tinha tamanho suficiente para carregar a prancha – ela me parecia gigante. Eu ia no bico e o Bacura, na rabeta. Ficávamos os dois com medo o tempo todo, apenas olhando os outros no mar. Até que um dia ele falou: “Me empresta essa porra que eu vou cair.” “O que é isso, cara?”, respondi. E os mais velhos na praia botavam pilha: “Deixa o Bacura ir. Você não tem coragem, então deixa o Bacura.” Acabei fazendo coro: “Vai lá, quero ver você se dar bem.” O moleque foi e desceu uma onda em pé! Desde então, não saía mais da praia. Mesmo com toda a chuva do mundo, praia deserta, Bacura ficava muito feliz sozinho na água.

Comecei a pegar onda, mas não virei um daqueles surfistas. As músicas que eu escutava e as minhas roupas eram outras – o que me fascinava não era aquela cultura, era a sensação de liberdade no mar, que me prende até hoje. Não vou descansar enquanto não deslizar novamente numa onda.

Minha relação com o mar sempre foi marcante. Quando tinha 10 anos, estava com meus primos na Praia do Anil, também em Angra, onde há uma ilha bem próxima à costa. Eu não sabia nadar, mas decidi ir caminhando até a ilha. Quando parou de dar pé, segui em frente nem sei como. Até que, com a ajuda de um banco de areia, consegui chegar. Não tinha a menor graça ficar ali sozinho. Então fui buscar a molecada, que também não sabia nadar (afinal, era todo mundo de Campo Grande). Chegamos à ilha! Na hora de voltar, já caindo a noite, a maré encheu e não sabíamos como sair. Nesse dia aprendi a nadar – e, o pior, tendo que rebocar todo mundo.

Sempre fui teimoso com as minhas vontades. Um pouco mais velho, meu pai não me deixava usar o carro. A solução foi pedir para lavá-lo. Nessa função, tinha que ir para a frente e para trás, o que me permitia usar a primeira marcha e a ré. Foi um passo para dar a volta sozinho no quarteirão.

Inglês, eu aprendi na rua. Nadar, no sufoco. Dirigir, no improviso. Foi a necessidade que sempre me levou em frente.