Naquele momento, o Lombriga fazia do Marcelo um passado distante. O anti-herói aprendeu a falar com todo mundo e a conquistar as pessoas. Desde aquela época, aprendi a usar minha inteligência emocional para me adaptar a qualquer situação. Virei um cara muito popular, o que acabou criando uma entropia entre meu irmão e eu. As mesmas brincadeiras que impunha a mim e aos outros passaram a ser um problema para ele. Com isso, ele se aproximou cada vez mais do meu pai e ficou muito mais na do meu pai do que eu. Só nos reaproximamos depois dos 20 anos. Nunca tive que cuidar dele, porque vivíamos em um ambiente seguro, de casas sem muro. Ocupávamos uma área de segurança nacional. Era um lugar muito peculiar, já que todos estavam lá por conta de um compromisso de trabalho, sem precisar fincar raízes. Até criávamos laços, mas sabíamos que a decisão de um chefe de demitir ou transferir algum funcionário poderia pôr tudo abaixo. O paraíso sempre poderia ser momentâneo.
No começo, a vila não tinha muita estrutura. Era corriqueiro ouvir barulho de sirene anunciando mais uma explosão na pedreira. Todos tinham que se jogar no chão. Certa vez, os milhares de peões da obra se rebelaram na vila operária, depois de uma semana inteira sem água em casa para tomar banho. Quebraram uma porção de coisas e o tenente Ventura, nosso vizinho, figura simpática pela qual tenho muito carinho, apareceu com uma arma na mão dizendo que era para garantir a proteção da vila.
Aquele ruído da rebelião marcou profundamente a minha alma. Até hoje escuto o barulho da revolta, que parecia o som do Maracanã lotado. E eles acabaram conseguindo a água. Nós sempre tivemos uma estrutura bem melhor que a da vila operária. Éramos separados por uma cerca, e isso tinha um peso enorme. Era um lugar muito diferente de qualquer outro no mundo.
Em Angra, meu pai tinha um cargo importante no trabalho. De alguma forma, as pessoas respeitavam minha família por isso. Mas, depois que ele trocou a minha mãe por outra, ela passou a ser a coitada que foi largada pelo mau-caráter. Nesse teatro, meu papel social acabou sendo o do drogado, o cabeludo de camisa preta. As mães das outras crianças começaram a falar aos filhos que não brincassem mais comigo. Se dava alguma merda, associavam ao Lombriga. Viviam dizendo que os moleques iam lá para casa fumar escondido das mães. O mais engraçado – e injusto – é que eu e meu irmão nunca fumamos. Nunca fumei maconha ou me liguei em drogas ilícitas. Só álcool. Parece mentira, mas a verdade é: nunca fui chegado em drogas.
Com a separação, ficamos morando com a minha mãe. Todo mundo queria ajudar: “Tia Luiza, o que a gente pode fazer pela senhora?” Eu estava começando a estudar no Rio, só ia a Angra nos fins de semana. Ainda que doloroso, esse foi mais um evento libertador.
A relação com meu pai nunca foi muito boa, mesmo antes da separação. Nem sequer sentia falta dele. Ele foi mais ríspido comigo do que com meu irmão (e eu era muito mais louco do que meu irmão), mais parceiro dele do que meu. Nunca o julguei pelo que fez com minha mãe, mas ele é estranho, sempre competiu comigo, e essa é uma dor que ainda sinto.
Houve uma época em que começamos a correr juntos. Eu passei a dar uma volta na vila, depois duas, três: “Caralho, eu posso!” Comecei a correr com ele, que sempre duvidava de mim. Ele ria do meu jeito desconjuntado, mas eu persistia. Sou um desconjuntado que venceu: aprendi até a tocar bateria! Algumas vezes, ele falava que ia largar a minha mãe, mas em seguida completava dizendo que só não a deixava por nossa causa. Uma vez eu falei: “Pelo amor de Deus, vai tomar no cu! Não põe esse peso na gente.”
Depois da corrida, fui fazer travessia a nado. Nadava quilômetros e corria, era uma maneira de ficar comigo mesmo. A dor que sentia no exercício, eu vencia com a cabeça. Anos mais tarde, soube que esse é o cerne da meditação: primeiro o cansaço, depois a dor. Fazia tudo isso não por uma questão estética, mas para ter a certeza de que podia correr, nadar e superar a dor. Mal sabia quanto ainda teria que conviver com a dor. Conviver e sucumbir tantas vezes.
A separação dos meus pais foi quase um alívio, ainda que sempre fique algum desconforto. A primeira vez que encontrei meu pai depois da separação foi num passeio de carro, estava tocando uma música do Sting. Ele dizia que achava The Police uma merda! Eu achava estranho ter mudado tanto seu gosto em dois meses. Era uma coisa da mulher dele, bem mais nova. De certa forma, estar separado foi muito libertador para ele também.
Meu pai não brigou apenas e saiu. Levou minha mãe ao colégio, deu beijo, voltou, arrumou as coisas e sumiu. Entrou de férias e deixou com a secretária cartas para serem abertas em dias específicos. A cada carta, ele dizia o que deveria ser feito naquele dia. Pagar uma conta, por exemplo. Nas cartas, também dizia como minha mãe deveria reagir. Era de um planejamento atordoante. O problema é que as variáveis em uma casa são bem mais complexas do que uma carta pode prever. O bom do processo foi ter unido muito mais a mim, meu irmão, meus primos e minha mãe, além dos meus amigos que estavam lá.
Se sou de um certo jeito com as mulheres, isso vem do meu pai, que faz o tipo garotão. O lance dele era alta rotatividade, algo meio Nelson Rodrigues. Mas meu pai nunca foi meu herói. Era uma referência, e isso até para coisas que nunca gostaria de fazer, mas faço.
Na vila, as casas mais bacanas eram as de frente para a praia. Nelas, os carros eram também maiores. Meu pai e meu irmão sempre se amarraram em carros, como quase todo homem. Até acho legal, mas nunca compartilhei esse gosto com eles. Lá pelas tantas, nos mudamos para uma dessas casas. Quando soube, perguntei por que iríamos nos mudar. Ficou claro que não eram os meus valores, não era o caminho que eu queria seguir. Então algo se rompeu mesmo com o meu pai.
Uma descoberta recente é que gostar não é somente prazeroso. Gostar, amar de verdade, é sacrificante porque não tem só o lado bom, o que une. Com isso, comecei a me sentir melhor em, mesmo não gostando de muitas coisas no meu pai, amá-lo intensamente por algo muito mais profundo do que concordar ou discordar. Perceber isso e sentir dessa forma me acalmou. Amo o meu pai.