Arma aqui, não!

Sou o maior para-raios de maluco. Gosto desses tipos estranhos e me alimento disso. No começo, eram os outsiders da escola. Mais tarde, veio a curiosidade pelo banditismo. A minha relação com o Marcinho VP vem um pouco daí. Eu queria entender o que era aquilo.

Quando conheci o Marcinho, ele era o bandido mais procurado pela polícia do Rio. O primeiro evento de hip-hop em favela fui eu que produzi, no Morro Dona Marta, onde ele morava e mandava. Márcio pediu para me ver. Fui subindo o morro e, de repente, um cara com a camisa dos Racionais e uma metralhadora na mão me fala: “Aí, irmão...” E eu, contrariado: “Pô, tô subindo o morro há um tempão, o meu trabalho é lá embaixo. O teu chefe pediu para falar comigo, mas estão montando o som lá e eu tenho que fazer um montão de coisa.” Ele falou: “Você já viu ele?” “Não, estou subindo aqui há um tempão e deixando de fazer o que eu tenho que fazer.” O cara me interrompeu: “Se você está procurando por ele, acabou de encontrar.” Era o Marcinho VP, que, para mim, seria o Márcio. Então ele pegou uma porrada de livros de poesia e começou a falar sobre o tema comigo. Naquele momento, ele virou o personagem que sempre procurei. Como um bandido tem livro de poesia? Naquele microcosmo, o Marcinho tinha uma função de poder, mas não fiquei com medo, pois a mim ele não tinha nada a oferecer nem a ameaçar.

Outra vez em que estive lá com ele, fui à casa do Zé Galinha, um ex-bandido que tinha entrado para a Igreja. Zé Galinha ainda não tinha chegado do trabalho. Mesmo assim, Márcio foi entrando e me apresentou à esposa do anfitrião. Ela me ofereceu uma janta e me mostrou seus filhos. Logo Zé chegou. Vi aquele negão forte, bonito, vestido como crente, com uma nobreza incrível no olhar. Ele nem olhou para mim e falou, nervoso: “Márcio, o que eu te falei?” O clima ficou tenso, Márcio sem entender. O outro continuou: “O que eu te falei, Márcio? Arma na minha casa, não! Tira esse fuzil daqui e põe lá fora.” Márcio ainda tentou argumentar, mas o Zé estava irredutível e realmente puto com aquela arma ali: “Põe fora agora que estou mandando!” E o bandido mais procurado do Rio de Janeiro, na mesma hora, pegou a arma e colocou do lado de fora da casa. Achei aquela cena linda, emocionante.

De início, Márcio ficou envergonhado por não ter poder sobre aquela pessoa. Mas, quando tirou o fuzil da casa, voltou sorrindo, digno. Fiquei admirado de vê-lo se curvar a outro homem que pedia para ele abandonar – ainda que temporariamente – o maior símbolo de poder que ele tinha: a metralhadora na mão. Achei poético aquele homem impor esse limite. Aprendi e levei isso para a minha vida, para a minha casa: arma não entra! E não importa se o meu melhor amigo hoje é o delegado Orlando Zaccone.

Eu frequentava muito a Rocinha, que era dominada pelo Lulu, um cara muito legal. Nenhum ser humano, por mais psicopata, é de todo uma coisa só, mau ou bom. E existe algo que vai além: por mais que a liderança daquela comunidade possa ser bizarra, capaz de cometer crimes bárbaros e manter o poder pelo medo, mesmo ela tem limites. Porque a comunidade tem o poder de pegar o telefone e ligar. Ela não vai se expor e lutar contra o crime ali, mas tem um peso. Pode conspirar contra o bandido. O levante pode ser maior que a possibilidade democrática das urnas. Uma vez que você vota, elege um prefeito, o poder popular para tirá-lo é pequeno. Toda essa história faz com que o bandido tenha que prestar favores. Mesmo que seja pelo lado mais vil, ele não consegue ser de todo mau – senão a comunidade pode derrubá-lo. Ninguém sabe se vai ser melhor ou pior, mas a população atua de alguma forma.

O narcotráfico é ponta de lança do capitalismo. É o capitalismo mais selvagem que existe. Visa apenas o lucro, sem educação, sem formação – é só exploração. Ele cria manhas, maneiras, não tem know-how para existir. O tráfico, em boa parte das favelas do Rio, do Brasil, é totalmente falho como negócio. A operação não tem grandes segredos, é tosca. O cara vai buscar de um matuto, que vai pagar o policial para entrar com aquilo ali. Está na cara e é assim que funciona. Não tem grande sacação, inteligência ou organização sofisticada. Esse crime organizado não existe.

Não dá para eleger os maiores traficantes como símbolos de poder. É papo furado! Os donos do poder no Brasil são outros. Quando eu namorava uma garota em Paraty, cujo padrasto francês deu a volta ao mundo de barco ao longo de 15 anos, ouvi uma história que me marcou. Ele contou que em poucos lugares do mundo uma pessoa é dona de um iate sozinha, como acontece no Brasil. Na Europa, eles pertencem a uma empresa e os maiores acionistas podem usufruir daquele barco. Ser rico no Brasil, isso sim, é ser realmente poderoso. O que esses bandidos têm no morro é só o topo da pirâmide da classe social da favela.

Nunca a queda de um traficante ameaçou o consumo de drogas na Zona Sul, porque o sistema não depende dele. Se gera muita grana para alguém, esse alguém não precisa pegar em arma. Isso é trabalho de peão, de gente deseducada. É trabalho da escória.