Meu amigo Orlando Zaccone

Orlando é policial. Não tenho nada contra policiais, acredito que eles são apenas um sintoma desse sistema econômico que tem como regra botar pobre no lugar. E esse lugar é, geograficamente, onde a classe dominante pensa que é: em cima do morro, na cadeia ou embaixo da terra.

Compus a música “Tribunal de rua” depois de tomar uma dura. Estávamos eu e dois amigos vindo do Estúdio Totem, onde a galera ensaiava. Nós, o Planet Hemp, o Chico Science, o Farofa Carioca... Levamos uma dura quando estávamos indo comer na Tijuca. O policial deu um tapa na cara do Nuts, DJ meu amigo, que hoje toca na banda do D2. Naquele momento, me toquei do seguinte: eu tenho o mesmo problema em relação à polícia que o meu pai, que o meu avô... Como pobres, fomos aprendendo a viver na rua com esse temor de sermos abordados pela polícia. Isto foi o que mais me bateu naquela hora: ver que tudo continuava igual. Não foi a dor em si, mas o que me fez escrever “De geração em geração, todos no bairro já conhecem essa lição” foi a constatação de que, possivelmente, se eu tivesse um filho, ele também viveria esse temor. Se ponderasse similaridades com meu avô, uma delas seria essa horrível afinidade de ter medo da polícia só por sermos pobres. Sempre tive um senso crítico muito forte sobre isso, mas a vida me tornou amigo de um policial, o delegado Orlando Zaccone.

Conheci o Zaccone quando ele tinha acabado de se casar com a Dadá, filha do Nilo Batista. Eu estava com a Joana. Não tinha nada na geladeira e havia um mercado 24 horas perto de casa. Quando cheguei, Orlando estava lá também. Já tinha estado uma vez com ele, que, por sua vez, havia me procurado assim que se tornou delegado titular da 19a DP. Temos um amigo em comum que é hare krishna, como o Orlando.

Ele veio conversar comigo sobre a ideia de criar um terreno comum às diversas facções do crime, algo como um torneio de futebol de comunidades. Na época, era muito mais difícil que agora. Seria o “Torneio de Futebol Marcelo Yuka”. Ele queria meu nome no campeonato. Sempre tive envolvimento com favelas, mas na cadeira de rodas era mais complicado: como subir o morro e andar nas vielas? Até houve época, já depois dos tiros, em que fiquei ligado à Rocinha, onde tenho muitos amigos. Praticamente deixei de ir depois que tive que subir numa laje no fim do morro. Aquilo me doeu para caralho.

Apesar de tudo, topei a ideia e começamos a trabalhar. O campeonato não deu em nada, mas nossa união rendeu muitos frutos. Montamos uma ONG chamada B.O.C.A. – Brigada Organizada de Cultura Ativista. Começamos a desenvolver alguns trabalhos com presidiários, algo que não é de praxe para um delegado. Os delegados normalmente nem descem na carceragem, muito menos vão a um presídio. Em mim, a iniciativa proporcionou uma sensação boa. Embora tivesse o direito de alimentar um grande rancor por essas pessoas, não o fiz. Não tenho esse rancor em mim, o que me dá muito orgulho.

Foi o início de um diálogo forte, porque eles notavam todo o esforço que eu tinha que fazer para estar lá. Conseguimos montar uma biblioteca. Orlando fez, ele mesmo, a obra do telhado. Acabamos saindo para outras unidades prisionais, realizamos diversos eventos. É um trabalho maravilhoso, que ainda hoje prossegue.

De qualquer modo, chegamos à conclusão de que não é possível investir nesses lugares. Eles não são habitáveis, o que não deixa de ser uma incongruência. Orlando se afastou do cargo, que era o que permitia trabalharmos daquela forma. A última ação foi quando os garotos do funk proibidão foram presos. Levamos os hare krisnha ao presídio e juntamos com uma roda de funk lá dentro. Misturamos hare krishna e proibidão. Pude falar na cara daqueles funkeiros que o que eles cantavam, o que eles diziam, não significava absolutamente nada para mim.

Esses proibidões são uma estupidez, mesmo que eu entenda que existe o direito de falar. Os funkeiros são vistos pela sociedade como seres mais próximos de um traficante do que de um artista. Acabam mais censurados que os outros artistas – como os comediantes de Ipanema, por exemplo –, ainda que possam ser igualmente irreverentes. Os funkeiros têm perfil de traficante; os comediantes, não. O traficante tem o direito à morte. O direito a reclusão é raro.

Tive um primo que sumiu. A mãe, quando foi procurá-lo na delegacia, ouviu perguntas muito emblemáticas: “Qual a idade dele?” “Dezoito anos.” “Morador de onde?” “Guadalupe.” “Ah, isso é droga.” É como se ele tivesse uma razão para morrer, o que não existe na Zona Sul, onde há uma razão para viver.

O Orlando estuda essas questões e tem uma visão muito humana de tudo. Ele é espiritualizado, o que não se espera de um delegado. Assim, de alguma forma, também é um outsider. O que me seduziu nele foi isso, assim como a poesia no caso do Marcinho VP. Bandido que gosta de poesia? Delegado hare krishna? Lados completamente diferentes da mesma moeda. Para a sociedade, eles são inimigos. Para mim, não.

Diversas vezes vi o Orlando fazendo coisas que colocariam a carreira dele em risco. Isso só aumentou a minha admiração. A amizade cresceu também por outros motivos – ele tem muito senso de humor, um humor periférico, descentralizado. Como o do Paulo Lins. É assim: na Zona Sul, o Eduardo vira Duda ou Dudu. O Cláudio vira Claudinho, Dinho. Onde fui criado, os apelidos eram: Olho de Boi, Já Morreu, Cabeção. Não é uma coisa legal, de lar, que extravasa para a rua. Não! O apelido vai justamente naquilo que o cara tem de feio, de pior, de deplorável. Você tem que se defender, e a rua me ensinou a ter jogo de cintura. Sempre fui magro e feio. Então era o Lombriga!

Certa vez, fui dar uma palestra em São Paulo e um professor me apresentou como “o Mano Brown que estudou”. Fiquei com vergonha e não sabia como me comportar. Pareceu-me arrogante demais em relação ao Mano Brown e a tudo o que ele representa. De alguma forma, a opinião pública comprou uma imagem minha. Muitas vezes, na mídia, quando alguém me chama para dar entrevistas, é para falar sobre assuntos contundentes – e tenho que me comportar de acordo. Esse papel acabou me cabendo.

Conviver com o senso de humor de gente como o delegado Orlando me injeta normalidade. São pessoas que se preocupam comigo, com a minha condição física. Querem saber como vou entrar nos lugares, me manter de grana... Esses amigos me deixam em pé. É um humor que não me poupa de nada, mas que existe dentro de um contexto de carinho e de respeito. Fazem piada com a minha situação – e eu adoro.

Orlando me visita toda semana. A arma fica do lado de fora. Sou o Zé Galinha. E isso não por arrogância minha. É que, mesmo sendo ferramenta de trabalho dele, a arma tem um significado, simboliza algo, e eu tenho o direito de não conviver com isso. Em frente à minha cama, tem uma placa onde se lê: “Não fume.” Eu queria botar outra aqui: “Não confunda o seu amor com ódio.”

Nessa última vez em que fui assaltado, quando uma perna ficou fora do carro e a outra dentro, naquele momento, deitado no chão, algumas coisas ficaram claras. Não tirei conclusões sobre a violência urbana, mas sobre as sequelas ásperas desse sistema econômico e da minha condição no carma urbano. Entendi também que existem poucos deficientes com a visibilidade que tenho. Não dá para virar as costas a isso. Resultado: se tiver que ficar seis horas num aeroporto para que seja tomada a atitude correta, vou ficar. Em última análise, é um compromisso comigo que eu também busco em todo o meu trabalho. Tento ser útil às pessoas.

Quando tomei a frente, os clipes d’O Rappa deixaram de mostrar apenas a banda. A gente não precisava aparecer. Esse processo audiovisual gerou discussões, principalmente com o Falcão, que pode até ser meio desequilibrado, mas não é o maior vilão. Quando ele viu a edição do clipe da música “Minha alma”, saiu batendo porta. Estava putaço, indignado porque havia pouca imagem dele.

Agindo assim, aprendi a lidar melhor com a fama e com tudo o que a acompanha. Tenho muito sentimento de culpa com dinheiro. Existe uma música muito legal, do cantor jamaicano Horace Andy, cujo refrão é: “Money, money is the root of all evil.” O dinheiro é a raiz de todo mal. Eu acabo trabalhando não só para me manter, mas para que os outros tenham o que posso dar de melhor. É uma forma de socializar o dinheiro e de ver aquele papel-moeda mais bem aplicado. Os clipes me deram isso. As canções me deram isso.