Com o Paulo, a amizade se deu de uma forma bem diferente da que me uniu ao Zaccone. Quando meu pai se casou com a mãe do meu irmão mais novo, ela era professora em Angra, militante política e amiga do Paulo Lins. Mas não o conheci por causa disso, foi sua obra que me arrebatou.
Vi uma reportagem na TV sobre um livro e, assim que ele foi lançado, fiquei fascinado. Impressionado mesmo com toda a epopeia. Comprei o livro, que se chamava Cidade de Deus. Lendo, me dei conta de que as minhas brincadeiras eram mais parecidas com os jogos dos garotos da favela do que com os do asfalto. Toda a primeira parte do livro narra uma infância que eu poderia ter tido – e que tive, de certa forma. Isso acabou fortalecendo nossos laços.
Um dia, Ana Buttler, grande amiga e, à época, gerente artística da MTV, telefonou pedindo a sugestão de alguma pauta legal para eles gravarem no Rio. Não pestanejei e falei do livro: “Vocês têm que procurar esse Paulo Lins, que escreveu um livro sensacional sobre a Cidade de Deus.” Ela continuou: “Então vamos fazer. Você entrevista ele?” “Lógico!”
A entrevista foi na CDD, na Cidade de Deus. Ele não morava mais na favela, mas o bacana seria gravar lá, andando pelas vielas, pelas locações que ele descrevia. Quando íamos começar a entrevista, ele falou: “Conheço seu pai, já fui à casa dele.” Com essa ponte, estava criada a intimidade. Ali também o Paulo me contou algo que sempre ouço: professores usam as minhas letras em sala de aula. Isso realmente me dá muito orgulho. O que pode ser mais importante? Vai além de sensibilizar, de comunicar. O texto ganha uma função atemporal. Acabei me vendo como um Carlos Drummond de Andrade!
Em outra ocasião, estava trabalhando com o AfroReggae em Vigário Geral e precisava fazer uma pré-entrevista para o Jô Soares. Naquela época, o celular só pegava numa boca de fumo, e eu precisava esperar que me ligassem. Sempre detestei esse negócio de boca. Mas Flávio Negão, o bandido da comunidade, aproveitou que eu estava por perto e veio falar das minhas letras, me elogiar. Nesse mesmo dia, saí de Vigário e fui para uma reunião no Bar Lagoa, na Zona Sul. Quando estava entrando, o Pedro Bial e a esposa dele vieram falar comigo e ficaram o maior tempão comentando minha poesia. E eu pensava: “Caralho, em uma ou duas horas, os dois extremos da cidade vieram me dizer que entenderam e se emocionaram com a minha poesia: o bandido e o Pedro Bial.” Muitas vezes, precisamos do ponto de vista de alguém de fora para entender e conferir um significado maior ao que fazemos. Então vi que eu era mesmo uma das pontes para juntar esta cidade partida.
Andando pelas vielas da Cidade de Deus com o Paulo Lins, fomos à “Casa Mal-Assombrada” e todos os picos que ele descrevia no livro. Rodamos a favela inteira e pude conhecer alguns dos personagens. Tivemos uma empatia imediata, conversamos o tempo todo e seguimos assim mesmo depois da entrevista. Ali viramos irmãos. Sou padrinho da filha dele e da filha do Zaccone.
Paulo foi o primeiro – junto com o Waly – a insistir na ideia do poeta. Ele falava: “Isso aqui não é uma composição de música: se você tira a melodia e coloca no papel, faz sentido. Faz um sentido maravilhoso. Acho até que a música tira um pouco do foco do sentido do teu texto.” Ele me fala isso há mais de dez anos.
Paulo é mais próximo, mais lado a lado. Ele passou a ser a minha referência na poesia e também escreve uns poemas que não mostra para ninguém. Mesmo quando escreve em prosa, como no Cidade de Deus, leio umas partes que me soam como poesia pura. Esse lirismo periférico me aproximou muito dele. Paulo desenvolve as mesmas construções poéticas que eu e compartilha as mesmas influências. Só fui ter dinheiro para livro muito tarde, não tinha referências sólidas de poetas. Paulo passou a ser a primeira. Além disso, ele também fazia as tais junções que tanto me cativam. O livro dele sobre a Cidade de Deus virou filme indicado ao Oscar de Hollywood. Quer ponte maior que essa?
Tudo o que fiz sempre foi totalmente intuitivo. A partir do Paulo, encontrei um novo vício além do vinil: os livros.
Houve outro momento marcante, quando uma socióloga fez uma entrevista conosco, pouco antes dos tiros. Ali, curiosamente, nós dois confessamos sentir medo. Temíamos não voltar para casa. A explicação estava no fato de que começávamos a ter bens, tínhamos o que perder. O medo era também de ser essa ponte, há riscos nessa ação.
Paulo sempre fala, mesmo brincando, algo que me incentiva: “Você tem vergonha de ser famoso; eu não.” Ele discute diretamente com a minha culpa, me desafia. Se eu batalhei, qual é o problema? Até pouco tempo, não me sentia bem na Zona Sul. Mesmo depois da fama, não gostava de estar além-túnel. Sempre me pareceu outro país. Tinha medo, tal e qual um estrangeiro, de não saber me comportar, de não ser entendido naquele universo que conquistava junto com o Paulo. Tampouco queria ser absorvido por aquela cultura.
Para quem conhece o Rio, geograficamente existe um momento em que, indo da Zona Norte para a Zona Sul, parece que se está numa ponte, ao atravessar o elevado Paulo de Frontin. Quando se sai do túnel, do lado da Lagoa Rodrigo de Freitas, é tudo iluminado. É absolutamente lindo sair do Túnel Rebouças e dar de cara com a Lagoa. No entanto, quando o sentido é o oposto, a imagem é escura, cercada de prédios colados ao viaduto. O túnel é realmente uma passagem que eu e o Paulo vivemos atravessando.