Eu não queria traumatizar ninguém com o meu suicídio. Queria também que fosse a coisa mais indolor possível. Elaborei várias formas. Lembrava muito a história de um médico que, quando a avó estava muito mal, chamou um colega que dava a tal injeção de potássio, teoricamente uma morte sem dor. Pensei que esse era o caminho certo. Mas essa injeção era muito cara, algo como 30 mil reais. Meu carro era o que eu tinha para dar. “Tudo bem”, pensei. Tomei a decisão e fui até esse médico. “Você está maluco?”, ele me disse.
A verdade é que o cara avalia se acha a pessoa merecedora ou não. Ele me deu a entender que, como eu era famoso, não queria se envolver. Dessa vez, foi mais que um pensamento, porque impulsos eu tive vários. Pular do carro foi algo que quase consegui. Numa outra ocasião, um amigo me viu chorando, querendo morrer, e me trouxe um 38 velho: “Está aqui. Agora, se for para fazer, faz direito. Você já tomou nove e tá aí. Se você der e só pegar de raspão, vai ficar retardado. Vai ficar aleijado e retardado.” Na hora, achei engraçado, mas me deu medo de errar mesmo. Não queria correr o risco. Um tio meu deu um tiro na cabeça e a bala bateu no osso – não morreu e ficou surdo.
Houve um momento em que decidi: vou começar a me drogar. Eu não tinha nada a perder. Fui até a rua e comprei 48 latas de cerveja. Botei para gelar e tomei tudo numa madrugada. Acordei meio mal no outro dia. Na época em que vivia na Lapa, bebia muito. Depois de um tempo sem beber, você fica despreparado. Mesmo assim, passei a ficar meio doidão todos os dias. Era a maneira como eu queria viver. Mas isso foi comprometendo meus rins, meu fígado e meu estômago. Sentia um puta mal-estar. Aumentei a quantidade para passar por toda aquela adversidade. Só que comia pouco e fui ficando inchadão. Saía para beber e, muitas vezes, bebia em casa mesmo.
Um belo dia, marquei encontro com dois amigos no Serafim, bar na rua Alice, em Laranjeiras. Pedi um chope. Logo me senti mal, mal mesmo. “Preciso ir embora.” Quando saí na calçada, olhei e disse: “Caralho, o enfermeiro me botou em cima do cocô de cachorro.” Veio um garçom: “Porra, essa cachorra faz sempre isso aí. Vou matar essa cachorra.” Conforme fui seguindo, via uma linha de bosta. Era eu: tinha me cagado todo sem sentir.
Naquele momento, eu tinha perdido toda a dignidade.
Não parava de gritar e me botaram dentro do carro. O Binho e o Felipe Rodarte, que estavam comigo, tiveram que me segurar pela gola da camisa, pois eu ia mesmo me jogar do carro.
Em Brasília, onde fui me tratar no Sarah Kubitschek, esse encontro com o grito durou muito tempo. Eu batia com a cabeça na parede, algo que fazia muito mal às pessoas que me amavam.
A teoria de ter coragem também é foda. As pessoas chegavam até mim falando de histórias que pouco me importavam. Comecei a ver que neguinho chegava, eu com dor grau dez tomando morfina, e o cara: “Estou com dor de cabeça.” Foi então que elaborei a teoria do picolé de criança. Uma criança vem com um picolé. Ela deixa cair o picolé e começa a chorar. Aí você diz: “Não chora. Vamos ali que te dou outro picolé. É só um picolé.” Mas a criança não quer outro. Ela quer o picolé dela que, por ter caído no chão, não pode ter de volta. É uma dor de perda quase como a de um ente querido. A criança não entende que o picolé não é único, então ela sofre. Grana você pode não ter hoje, mas amanhã sim. Decepção amorosa você pode ter hoje e amanhã não. Não é única, como o seu corpo, a sua vida ou o desespero de fato, a depressão em alto nível. Se você tem um problema que o dinheiro é capaz de resolver, o seu problema ainda é pouco, por mais dinheiro que seja necessário. Tenho muito mais medo do grito do que de qualquer desconforto físico.
Uma das ferramentas mais importantes nessa batalha contra o grito foi ter conhecido a meditação. Foi maravilhoso, e hoje ela funciona como um remédio. Comecei a ter rabo de lagartixa: vou me regenerando. A gente tem duas alternativas. Depois da cadeira de rodas, isso ficou ainda mais claro para mim. Antes, eu combatia, as minhas letras eram todas combatentes. Hoje tenho outra ferramenta: é o amor, é esse encontro. Quando entro em mim, me religo a algo que possa chamar de Deus. Sem nenhum processo religioso ou dogma, mas procuro ficar próximo a uma grande quantidade de amor, o que me alivia e me faz acreditar. Você tem duas opções na vida: aprender pelo amor ou pela dor. A sabedoria do amor não é só um sentimento.
Ernesto Guevara não se tornou Che Guevara de repente. Ele passou de um jovem de classe média alta, médico, a guerrilheiro. Não aconteceu por rancor, mas por uma puta quantidade de amor. Se ele, com isso, chegou a tomar atitudes extremas ou errou, não sei. O que me comove nessa história é a ingestão de amor que ele realizou. Esse amor tão forte, quando existe, é contundente.
Outro dia escutei a música do Criolo, aquela que diz não haver amor em São Paulo. Existe amor em você, onde estiver. Sou prova viva disso porque, se não tivesse encontrado esse amor, não sei se estaria vivo. Um estudioso me disse certa vez: “Sabe por que pessoas que procuram milagres nunca vão encontrar? Porque elas já são o milagre.” O milagre humano vacila. Ele é capaz do melhor e do pior que há na natureza. A cabala também fala uma coisa bacana: o importante não é ver para crer, mas crer para ver. Atualmente, a crença não é estimulada, apenas serve como uma compensação – faça isso porque vai ter aquilo de volta. Não é com o intuito de comunhão.
Quando dei de cara com essa função do amor, rasguei o contrato com Deus. Buda dizia: “Só existe o caminho certo. Se você pegar outro caminho, é problema seu. A opção do errado não é uma opção. É desvio.” A vida é batalhar para achar esse caminho certo. Ou então assuma as consequências.
Crendo nesses pensamentos, me deparando com esses sentimentos, me vejo novamente no jogo da vida, no jogo do acaso. Tenho muito amor em mim, mas também tenho um lado cartesiano, que me conforta em muitos momentos. Estes dois elementos – a busca do amor e do cartesiano – me emocionam. Eles não são antagônicos como parecem.
Nunca fui um cara ligado a dogmas ou misticismos. Sempre tive fé em Deus, mas isso nunca foi cultuado por mim. Era uma relação imposta por uma educação. Só depois comecei a entender que é possível existir o amor incondicional àqueles que não são os seus. Foi algo que constatei em pessoas que realizam, que se doam de fato. Isso mudou a minha vida.
Tenho um amigo que queria apresentar para todo mundo, o Mário. Ele vai pelo mundo afora bancando pesquisas e tratamentos. É uma das pessoas especiais que conheci depois dos tiros e que me ajudaram a seguir em frente e evoluir. Ele me auxiliou nesse renascimento.
Conquistei muitas coisas, mas muita gente não consegue ver essa evolução por conta do meu estado físico, pelas minhas dificuldades financeiras. Hoje sou imensamente mais feliz do que quando tocava no rádio. Parece que tudo o que passei foi para chegar neste momento. Tenho orgulho de todos os discos que vendi e dos sucessos que fiz, mas o que conquistei nesta nova vida é bem mais rico para mim. Eu poderia ser feliz se tivesse continuado naquele outro caminho, mas, como diz Buda, “não existe outro caminho”. Foi este o caminho que me trouxe até aqui. E ponto.
Este é o lugar onde, de alguma maneira, eu quis estar. A não permanência das coisas bate à porta. E na realidade esta é a única verdade: tudo é transitório. Mesmo com tudo isso que me aconteceu, eu agradeço quanto essa impermanência das coisas tem sido boa comigo. Meu saldo é muito positivo!
A origem da palavra entusiasmo quer dizer estar perto de Deus, estar cheio de Deus. E, quando estamos cheios de Deus, somos melhores. Quando estou mixando uma música, é isso que vou tentar – estar mais perto de Deus. Não se trata apenas de algo estético. Quero que a música arrebate e provoque outras sensações. É como admirar um quadro: você o olha várias vezes, mas sempre pode ver algo diferente a cada nova observação. Você vai ver diferente quando estiver entusiasmado.
Por isso digo que sou feliz. Porra, eu tenho muitos motivos para não ser, mas descobri essa felicidade. As coisas não são como simplesmente são. Fiquei anos sem olhar para o céu. Fiz até uma música para o meu irmão menor, que O Rappa gravou; chama-se “Uma ajuda”. A letra é assim: “Meus olhos não aguentavam mais admirar o comprovado. / Encarar tantas verdades cruas é ver o céu pela metade. / No teu abraço contente, algo ficou diferente. / Pude sentir a poeira das coisas caindo um pouco distante da gente.” Quando ele era pequeno, meu pai morava perto da praia, e o céu ficava realmente escuro. Ele pedia para ver a lua, olhava para ela e ria para caralho. Eu falava: “É a lua, Pedro.” E ele ficava repetindo: “A lua, a lua.” Eu achava graça: “Esse moleque é doido! Ele ri para a lua, ri da lua, ri com a lua.” De alguma maneira, tenho que aprender a rir para a lua também. Fico querendo reproduzir aquela sensação do meu irmão pequeno.
Isso tudo me tornou uma pessoa bem melhor. É uma pena que tenha aprendido pelo caminho da dor. Agora a minha escolha é perceber o amor. Não vou precisar mais tomar um porre para saber que faz mal, não quero isso. A felicidade é evitar cair no grito. Não quero mais ter vontade de abrir a porta e me jogar do carro na avenida Maracanã. Não temo a Deus. Temo esse indivíduo que também está dentro de mim.
Quando eu precisar desafogar, vai ser com outro e não mais com aquele grito. Vivi anos assolado por ele em cima da cama. O tempo passava mais lentamente enquanto sofria deitado. Como você pode viajar para outras sensações se não consegue sair da sua cabeça? Eu não percebia o tempo e de repente me dava conta: “Caralho, passaram-se seis meses!”