A primeira lembrança relacionada a mulheres – no sentido sexual – remete a uma época em que meus pais trabalhavam o dia todo e uma empregada ficava comigo e com meu irmão. Eu era criança e tinha o maior tesão por ela, mesmo sem saber o que era tesão. Aquela coisa platônica me atraía.
Amor mesmo se deu lá em Campo Grande. Eu tinha uns 7 anos e ficava o dia todo sentado no muro. Todo fim de tarde passava uma menininha com um cachorro pequinês. Ela devia ter a mesma idade que eu. Ficava esperando passar, corujando. Em frente à nossa casa, tinha outra casa com cachorros. Um dia, eles se soltaram e voaram em cima do pequinês. Heroicamente, pulei do muro. Resultado: tropecei num cachorro, bati com a cabeça no meio-fio e tive três fraturas de crânio. Meu começo no amor foi quebrando a cabeça.
A primeira casa em que morei ficava em frente à dos meus primos. Meu avô deixou uma para a minha mãe e outra para a minha tia. Os vizinhos dos meus tios tomavam conta da gente. Eram os filhos da dona Ana e do seu Jota: Regina, Ruth, Levy, Jeremias e Dalva. Os que já tinham 12 anos cuidavam de mim, do meu irmão e dos meus primos. Depois, quem crescia caía no mercado de trabalho. Todos eram negões fortões e nossos heróis. Levy, para acalmar a molecada, fazia o show de calouros. Muito da minha memória musical foi construída nas brincadeiras dele. As meninas dessa família não me despertavam nenhuma atração maior, afetiva ou sexual. Era tanto respeito e admiração que não dava para ter outro sentimento. Foram meninas que, de alguma forma, me apresentaram à maneira de as mulheres reagirem. Tanto que somos amigos até hoje.
No colégio, havia uma ou duas garotas que me despertavam alguma afetividade, mas eram colegas, nada de mais. Quando fui para Angra, tudo começou a mudar. Aos poucos deixei de ser um abestado. Uma das primeiras meninas com quem tive contato naquela época foi a Ana Cláudia, que se tornou amiga da vida inteira. Foi uma das pessoas cruciais quando tomei os tiros: apareceu feito um dragão e ajudou para caramba.
Foi na vila que comecei a construir as paixões. A primeira foi alguém que nunca mais vi, Claudinha. Ela era ligada em contracultura, uma outsider. O meu ideal já era o ideal torto. Ela aprontava e era apaixonante, mexia no cabelo de um jeito inesquecível. Durante muito tempo repliquei a Claudinha em outras garotas: procurava o mesmo tipo de cabelo, de silêncio, de gestos. Ela ficou ali na vila uns três anos. Dez anos depois, encontrei-a no Carnaval, numa vila de pescadores. Estava acompanhada de um primo. Parecia grávida, e eles querendo trocar um skate por drogas. Uma porrada de gente acampando, e aquilo passou batido pelos amigos que estavam comigo. Não por mim. Fiquei observando, apaixonado pelas lembranças. Foi mais uma paixão platônica. Claudinha se foi e passei a me interessar por aquelas que se mudavam para a vila, as meninas novas que chegavam. Me apaixonei por várias, praticamente por todas.
Perdi a virgindade com uns 16 anos, com uma empregada lá de casa. Meus primos vieram logo atrás. Tinha o maior medo, porque todos os meninos falavam como se não fossem mais virgens, mesmo sendo, principalmente meu primo Dedé. As primeiras peraltices sexuais que vi outro fazer foram obras desse meu primo. Meu avô jogava pela janela as guimbas, que caíam no quintal. Nesse mesmo quintal, Dedé “comia” a bananeira por um buraco feito a canivete, com uma foto da Vera Fischer colada na árvore. Depois que gozava, deitava no chão, cruzava as pernas, pegava uma das guimbas do meu avô, acendia e ficava por ali.
Para mim, pintou então a tal empregada. Eu tinha o maior tesão nela, mas não sabia o que fazer. Um dia cheguei mais cedo de um baile e ela estava lavando a louça. Contei uma história triste, não lembro o quê. E ela: “Peraí que vou buscar uma coisa no meu quarto.” Fui atrás e pum! Engraçado foi que, quando entrei nela, quando meti, foi uma sensação ruim para caralho. Não sei por quê, mas foi estranho. No dia seguinte, no café da manhã, conversando com o Dedé, ele falou: “Não te vi ontem.” E eu, cheio de marra: “Porque ontem eu estava fodendo.” “Não! Todo mundo aqui é cabaço. Como assim você estava fodendo?” Botou a maior pressão e eu contei. E ele: “Caralho, todo mundo tentando comer ela...” Tirei onda.
Nunca transei com puta. Depois da empregada, foi em série. Várias meninas que estavam ali em Angra, na vila. Depois virou corriqueiro. Ao menos tanto quanto podia ser corriqueiro para um garoto igual a mim, magro e feio para caralho. Como era bem-humorado, ganhava na graça. Eu tinha que encontrar minha maneira de seduzir. Bolava também algumas festas e estava sempre ouvindo um som diferente. Várias meninas me emocionaram naquela época, mas passei batido por todas elas. Todas tinham um “inha” no nome: Albinha, Ritinha, Renatinha. Albinha era apaixonada por um amigo meu, o Márcio. Ela me deu um papel escrito assim: “Não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho.”
A primeira geração que saiu da vila para estudar foi a minha. As meninas que foram crescendo tinham aquilo: “Ah, esse é o garoto que está estudando no Rio.” Isso as despertava muito. Namorei algumas. Uma foi a Mônica, que depois veio trabalhar em gravadoras e no Viva Rio. Era absurdamente linda, mas dei um vacilo enorme, tive um desvio de comportamento. Comecei a ficar, nessa época, muito próximo da Renata, namorada de um amigo meu do tipo “o cara”. Ela veio estudar no Rio e, um dia, aconteceu um beijo no ônibus. No outro dia, não atendi o telefone e me fechei. “Caralho, que merda é essa?” Renata foi lá em casa e atendi como se nada tivesse acontecido. Ela então me chamou para dar uma volta de bicicleta. Ficamos um pouco em silêncio até que falei: “Isso aí acontece às vezes com pessoas muito próximas, não quer dizer que seja alguma coisa significativa.” “Não sei para você, mas para mim foi.” Quando ouvi aquilo, a perna tremeu. Começou uma coisa forte ali, talvez a minha primeira paixão de verdade.
Ficamos um tempo assim, com ela lá e cá, lá e cá, sem coragem para terminar com o meu amigo. Até que ela soube que uma namorada, uma menina com quem eu ficava, engravidara. E a menina não tinha certeza se era meu. Era bonito com a Renata. Ela foi a primeira pessoa com quem tive uma sintonia de verdade, era compreendido nos meus medos e fraquezas. Mas ela ficava pensando no que aquele incidente com outra menina poderia acarretar. Seria difícil dividir nossas vidas se eu tivesse de ir para um lado, casar, novinho, e ela tivesse de ir para outro. Eu tinha uns 19 anos.
Mesmo sabendo que a outra estava grávida e que poderia ser meu, ela terminou com o meu amigo para ficar comigo. A menina acabou decidindo abortar. Alguns anos depois do aborto, a gente voltou a sair para transar e aí durou mais algum tempo. Com a Renatinha, era outro lance, um namoro diferente porque, àquela altura, eu bebia um pouco demais, já era um cara meio camisa preta. O namoro acabou durando pouco, mas foi bem intenso. Viramos fofoca na vila. Todo mundo condenou porque eu tinha sido infiel ao amigo e ela também. Um dia, fui até a casa da Renatinha e ela já abriu a porta chorando. Perguntei o que estava acontecendo e ela não falou nada. Peguei então algumas coisas minhas que estavam lá, coloquei na mochila, dei um beijo e fui embora. Era o nosso fim. Logo depois ela voltou para o meu amigo e foi morar na Europa.
Fiquei arrasado. Foi a primeira vez que bebi cerveja sem companhia. Parei num bar e pedi uma garrafa. Percebi que outros faziam a mesma coisa. Entendi como a cerveja pode ser companheira num silêncio tão doído. Fiquei pensando: “Isso não pode ser maior que eu. Tenho que ter coisas na vida que sejam mais importantes do que isso.” Quando saí do bar, já estava determinado a fazer os rascunhos que tinha na gaveta virarem canção. Era a procura de algo que fosse mais importante do que aquele sentimento. De lá para cá, foi quase sempre assim: substituir o medo de amar pelo trabalho. Um lugar para ir que não precise de outra pessoa. Isso foi tão forte que, em vez de virar remédio, se tornou veneno.
Boicotei quase todas as relações que tive depois. Trabalhar se tornou melhor do que estar amando. O rompimento com a Renatinha deixou danos. O medo virou praxe nas minhas relações. Foi num momento em que tinha vindo para o Rio e vivia um impacto tremendo. Estava completamente despreparado para a vida na metrópole.
Mônica e eu namoramos por um total de dez anos. Foi a mulher com quem fiquei mais tempo. A gente era muito diferente, mas trepava o tempo todo! Isso trazia muitos conflitos, muita posse, porque nenhum relacionamento pode se basear só nisso. Foi intenso, apaziguado pelo sexo e confuso também pelo sexo. Eram brigas de amor, juras, tudo isso embalado pelo sexo. Terminamos quando as procuras começaram a ser outras, ao entendermos que, por mais que a gente gostasse muito um do outro, era preciso encontrar outras formas de ser feliz. Só quando a gente tomou essa decisão fui ver a vida mesmo. Tive uma namorada atrás da outra, mulheres para caralho ainda antes de O Rappa acontecer e ser sucesso. Quando terminei com a Mônica, virei a página – me libertei da vila, das referências e das mulheres de Angra.
Veio O Rappa. Nós ainda não fazíamos muito sucesso, mas já viajávamos para tocar. Tive vários relacionamentos não só no Rio. Namorei a Letícia, de Curitiba. Era uma época de muito aperto de grana. Não ganhávamos praticamente nada nos shows, mas estávamos botando a banda na estrada, plantando. Algumas garotas iam ao camarim. Essa era sempre uma das melhores partes dos shows. Assim conheci a Letícia.
Conversando com um amigo, o camarim já ficando vazio, falei: “Por aquela porta vai entrar a mulher da minha vida.” E entrou. Fui lá e, sempre tímido, soltei: “E aí, faz o quê?” Dei um oi, mas ela cagou na minha cabeça. Por sorte, um dos caras por ali a conhecia. Começamos a conversar e me apaixonei. Só que eu tinha uns 26 anos e ela, 15! Nem sei como conseguiu entrar. Um dos caras ia dar carona para ela. Pedi carona também. Fomos deixá-la em casa e eu tentei visualizar e guardar na memória aquele lugar, aquela rua, o caminho. Antes de ela sair do carro, dei o telefone do hotel em que estávamos hospedados. Pedi, mas ela não quis me dizer o número dela. Quando fui embora, perguntei ao cara, Renê, onde estávamos: “Aqui é Água Verde.” A casa dela era de madeira antiga, igual a uma casinha de boneca. Guardei tudo no olho. No dia seguinte, perguntei se alguém tinha me ligado. Nada. Mudei minha passagem e não voltei com a banda. Liguei para o Renê, peguei mais ou menos o endereço e fui lá.
Cheguei, bati na porta e a mãe dela abriu: “Aqui mora a Letícia?” E ela: “Você é o Marcelo? Pode entrar.” Entrei e vi que aquela casinha, que parecia de boneca por fora, por dentro era muito mais casinha de boneca ainda. Era tudo delicadinho. Moravam ela, a irmã e a mãe. Tinha também um irmão músico, mas era um universo totalmente feminino. Fizemos juras e promessas, mas eu tinha que voltar para o Rio. Ficávamos de orelhão e a paixão aumentando. De orelhão e sem grana para pagar uma passagem para voltar lá. Até que ela conseguiu com uma tia, que trabalhava na Secretaria de Turismo, um hotel de graça para passar o fim de semana. Banquei a passagem de ônibus. Nessa época, a gente estava numa brabeira enorme. Tinha até ordem de despejo. Minha mãe me deu força: “Vai, meu filho, que é importante.”
Fui e passei um fim de semana delicioso com ela. O rango era cachorro-quente. Houve o perrengue de não conseguir ligar o aquecedor: passei três dias em Curitiba, no alto inverno, sentindo o maior frio. Na sexta, quando cheguei, fui buscá-la no colégio. A gente ficou o fim de semana todo no hotel e, na hora de voltar, ela foi me levar na rodoviária. Chorou enquanto o ônibus começou a dar ré.
Uma senhora de cabelo branco, sentada ao meu lado, falou: “Dói, né?” “Dói.” Ela perguntou: “Você mora no Rio?” “Moro”, respondi. Ela continuou: “Isso aconteceu com a gente.” Os velhinhos passaram praticamente a viagem toda contando a história deles e foi legal para caralho.
Depois disso, o namoro prosseguiu via orelhão. Ficamos numa puta expectativa quando pintou um show por lá. Mas acabou não rolando e foi aquela frustração. Na última ligação, ela perguntou: “Você vai estar aí?” No dia seguinte, acordei com a minha mãe chamando: “Telefone para você. É a Letícia.” Eu atendi com voz de sono e ela: “Vem me buscar, estou na rodoviária.” Ela havia fugido de Curitiba. Fui buscá-la e, chegando em casa, por mais que tivesse falado para a minha mãe que ela era uma garota muito nova, quando abri a porta o que saiu da minha mãe de forma espontânea foi: “Nossa, mas ela é uma criança.” E perguntou à Letícia: “Seu pai sabe? Sua mãe sabe?” E Letícia: “Não.”
Ligamos para a mãe dela, que estava desesperada. Nessa época, eu não tinha cama: dormia num colchonete, no chão. Ela ficou comigo uma semana. Depois as coisas foram melhorando, eu podia viajar ou bancar os deslocamentos dela. Mas a distância era foda. Há alguns anos, eu já na cadeira, a gente namorou de novo por mais um tempo. Ela veio fazer a produção de um filme e estava morando em Copacabana. Começamos a nos ver. Mas aí aconteceu outra história. Nessa época, eu morei com duas mulheres. Letícia era uma delas, a outra era uma francesa. E as duas eram lindas!
Eu tinha posto um aparelho para receber a injeção de um remédio canadense para os músculos, caro para caralho, que não era homologado no Brasil. Coloquei, por intermédio de cirurgia, uma válvula que era ligada ao coração. Tinha uma agulha curva, específica, que era preciso apalpar para achar o lugar certo de espetar. Ninguém queria fazer aquilo, nem os enfermeiros. Letícia foi muito corajosa e se encarregou da missão. Foram 60 dias de medicamento. Poucas vezes namorei ou mantive relacionamento com mulheres fúteis, independentemente da idade. Todas eram mais centradas do que eu, funcionavam como um chão.
Nesse período, Servanne, a francesa, ia muito para a minha casa. Ela fazia capoeira e era minha amiga. Um dia, conversando, adormeci. Quando vi, ela estava me beijando e, no dia seguinte, morando aqui. Ficamos uns meses assim. Cheguei a falar que não sabia se poderia transar, mas ela foi ficando mesmo assim. Até que voltou para a França e fiquei novamente com a Letícia.
Em nenhum momento falei para Letícia sobre Servanne, somente na véspera de seu retorno ao Brasil. Sou um covarde nessas horas. Eu amarradão com a Letícia, mas, quando falava com a Servanne, também sentia que tínhamos muitas afinidades. De certa forma, ela me elegeu como seu mentor: montou um projeto social voltado para mulheres em condição de risco no mundo todo.
O dia da chegada de Servanne se aproximava e eu todo enrolado, não conseguia falar para nenhuma das duas sobre a existência da outra. Letícia, quando soube, ficou para morrer. Eu disse que ia resolver tudo no dia seguinte. Só que, no dia seguinte, era festa de aniversário de um primo meu na minha casa e tive que sair para arranjar as coisas. Servanne chegou feliz, e eu finalmente consegui falar: “Nesse período na França, você não saiu com outra pessoa? Transou com outra pessoa?” E ela bem segura: “Não. Nós somos adultos e, se tivesse acontecido, teria te falado.” Fui ficando pequenininho. Ela continuou: “Vamos, vamos para casa que estou cansada.” Ela trouxe tudo, veio para se casar. Segui tentando: “Você está vindo para montar aquele negócio de que falou?” E ela, para meu desespero: “Não. Estou vindo por causa de você.” Não aguentei e abri o jogo: “Não aconteceu com você, mas comigo aconteceu.” Ela ficou perplexa: “Como assim?” Fui em frente: “Reencontrei uma ex-namorada e rolou.” Ela, inteligente, se conformou: “Isso podia acontecer comigo, mas não aconteceu.” E eu: “Ela tá lá em casa.” Caiu o mundo: “Como assim?” E eu, pequenininho: “Ela está morando lá em casa.”
Servanne chorou demais. “Me diz uma coisa, você acha que ela é a mulher da sua vida? Você a ama?” Falei: “Não sei, não sei. Tudo na minha vida é confuso.” Ela falou: “Se não sabe, então eu vou para lá. É sinal de que tenho uma chance.” Cheguei em casa com a festa rolando. A festa acabou, mas ficamos juntos, os três, por dois, três meses.
Estabelecemos algumas regras. Não foi por mim, mas eu morava em cima, na casa da minha mãe. Letícia, que lá estava, permaneceu. Servanne ficou no quarto de baixo. Ela realmente foi apostando nas chances que tinha. No primeiro momento, aquilo podia soar como uma prova de masculinidade: “Caralho, sou foda! Tenho duas gatas maravilhosas na minha casa.” Mas não era nada disso. Eu me cobrava e me questionava: “Como você pode lidar tão mal com as coisas, Yuka? Como você é inábil com os sentimentos, os amores, as mulheres!” A cadeira de rodas não tinha sido um elemento apaziguador dessa minha falta de habilidade, pelo contrário! Naquele momento, me deixava mais confuso ainda. Fui um covarde.
Já as duas foram de uma coragem e de um amor inacreditáveis. Essa situação me remetia também à época dos tiros, quando tinha a Maíra e a Chris. As duas chegando ao hospital e neguinho me perguntando: “Qual das duas?” Elas respondiam que isso não era importante naquele momento, o que importava era eu.
Com Letícia e Servanne foi diferente. Eu estava namorando a Letícia e a outra chegou, ficou no quarto de baixo, mas com uma intenção clara. Ela até verbalizava isso para a Letícia: “Eu vim por causa dele. E é isso aí, valeu?” Mesmo assim, não havia um clima hostil de uma com a outra. Mesmo mordida, Letícia tomou as rédeas na história das injeções no coração: “Eu faço.” Ela sabia que eu dependia disso, o que deu um norte para nós dois como casal. Para Servanne, tudo era uma tentativa. Ela era diferente, vinha de outra cultura, de outro país. Minha maneira de não ser claro, de não ser verdadeiro, me enrolou. Eu não transava com as duas, afinal estava com a Letícia! Mas uma noite, quando Servanne veio se despedir, ela me deu um beijo na boca, e eu deitado ao lado da Letícia. Ela estava explodindo com aquele sentimento. Por incrível que pareça, não era falta de respeito.
Era difícil para mim também. Eu não queria entrar numa de que mantinha um relacionamento com as duas. Não me orgulhava nada da situação. Além de covarde, fui burro. A tentativa de não magoar nenhuma foi magoando as duas cada vez mais. Elas não mereciam. São pessoas incríveis que se relacionam com a vida de um jeito único.
No fim, Servanne se cansou da situação e decidiu voltar para a França. Fiquei com a Letícia mais um tempo, até que ela pegou umas ligações que eu estava recebendo da Maíra e resolveu voltar para Curitiba. Fiquei sem as duas.
Houve outras mulheres importantes.
Samantha Caldato foi a primeira mulher adulta que tive. Ela me marcou muito. Começou a me olhar numa festa, e eu achando impossível aquela mulher lindíssima estar dando em cima de mim. No dia seguinte, pegou o telefone e me ligou na careta: “Sou eu, a Samantha. Vamos sair?” Saímos. Entrei total no universo Samanthinha. Eu ia viajar para tocar, e ela: “Quer que te leve no aeroporto?” Aquilo era inacreditável na minha cabeça machista. Nunca tinha recebido esse cuidado de uma mulher. Sempre quis ser eu o que cuidava. Quando vieram os tiros, foi difícil aprender a receber. Demorei muito tempo para perceber que não havia mais jeito: eu tinha que receber, das pessoas ou da mulher com quem estivesse. Samantha foi a primeira a me mostrar isso e a me propor casamento! Para completar, nunca gostou d’O Rappa. Mais uma vez, boicotei um grande amor. Eu sumi.
Chris Couto também foi uma mulher muito importante na minha vida. Eu estava namorando a Maíra e fui fazer um programa da Astrid na MTV. Quando a gente estava na van, a Astrid falou: “Yuka, tem uma amiga minha que tem sérios interesses em você.” E eu: “Não, não, para com isso.” Astrid continuou falando, e eu tentando cortar. Até que ela pegou o telefone, ligou para a tal amiga e me passou. Falei: “Alô, quem é?” Ficamos naquela brincadeira de eu não saber quem era. Até que ela falou: “Chris Couto.” Levei um choque! Eu a achava a maior gata da MTV. Um dia ela me ligou: “Vamos combinar alguma coisa?” Fiquei tentando fugir, mas acabamos marcando e, desde esse primeiro encontro, não consegui largar mais. Fui para São Paulo fazer um show e fiquei a semana toda.
Voltei para o Rio, peguei o carro e fui direto para a fazenda da Maíra em Paraty. É o lugar mais bonito do mundo. Eu tinha que contar, não podia ser covarde novamente. “Conheci uma pessoa.” Chris apareceu na única lacuna em que ela poderia entrar. Eu era apaixonado pela Maíra, mas a Chris era uma mulher! Maíra tinha 17 anos e a Chris, uns vinte a mais, como eu. Era até um pouco mais velha. A única coisa em que a Maíra não me completava era o fato de ela ser uma menina. Chris tinha uma opinião a mais em cima das minhas inseguranças na vida. Esse lado mais maduro dela me conquistou e me levou.
Depois que falei isso para a Maíra, entrei no carro e voltei para o Rio. Até hoje guardo a imagem dessa despedida: ela dentro da casa da fazenda e eu no carro. Fui saindo pela estrada de chão até a Rio-Santos. Quando cheguei à estrada, tive uma crise de choro absurda. Abri o vidro e joguei meu celular pela janela. Fiquei quase um ano sem celular. Maíra me dava essa sensação de amor, e sou apaixonado por ela até hoje. Eu me preocupo, fico querendo saber se está feliz, se está com uma pessoa legal. Com a Chris, depois que a gente terminou, se eu pudesse, arrumava um namorado para ela. Gosto tanto das mulheres da minha vida! Da Maíra, então, gosto muito mesmo! Depois dessa, tivemos mais algumas idas e vindas, encontros e desencontros. Até que um dia, na última vez, depois de muito tempo, fui procurá-la e ela não quis mais. Disse que estava feliz com outro cara. Fiquei desesperado. Fui para São Paulo atrás dela. Mas ali entendi que ela estava com um cara legal e fui tocar a minha vida. Eles tiveram uma filha. Mas ela nunca saiu de mim.
Voltei para o Rio decidido a ficar com a Chris. Ela estava em evidência na época. Eu também. Tivemos cuidado de, por exemplo, não virar um casal celebridade. Para fugir disso, criamos o nosso mundinho em torno da minha casa e da dela. Eu adorava ficar em casa com ela e a filha, Maria, ouvindo música, lendo, comendo. A sensação era de total felicidade, uma felicidade que poucas vezes experimentei. Não queria estar em outro lugar nem ter outra vida.
Mas tanto eu quanto ela tínhamos uma certa tendência ao autoboicote. E, naquele momento, todos os meus sonhos estavam se realizando. Em vez de ficar feliz, passei a me perguntar se eu era digno daquilo. O desconforto se tornava ainda mais agudo pelo fato de eu estar alcançando projeção em todo o Brasil, não só no Rio. A questão social estava também mais aguçada em mim. Eu vivia em comunidades no país inteiro. Em cada cidade por onde O Rappa passava, eu já tinha um grupo para visitar. Era difícil, por exemplo, dormir em um hotel cinco estrelas em Recife e ir para uma visita em Peixinhos. Eu entrava em parafuso: “Por que eu sou tão abençoado?” E também já havia os problemas com a banda. Acho que eu e a Chris não fomos mais adiante porque éramos duas pessoas muito sensíveis que, muitas vezes, dividiam suas depressões. Não só dividíamos – acumulávamos, multiplicávamos. Na época, ela apresentava o Vídeo Show da TV Globo. Um dia, eu estava com dois amigos comendo na serra paranaense, com aquela paisagem totalmente linda ao redor, falando de mulher, quando começa a música da abertura do Vídeo Show. Em todo lugar, a musiquinha. Não era a musiquinha do Michael Jackson ou do Vídeo Show: era a musiquinha da minha mulher. Era como se ela fosse onipresente.
Fiquei com a Chris mais de um ano sem nunca ter ficado com a Maíra. Mas, numa dessas, o relacionamento acabando, encontrei a Maíra. O coração acelerou, bateu a paixão e quis voltar para ela. Decidi ir de carro até São Paulo para ter uma conversa definitiva com a Chris. Eu ia mesmo fazer isso, mas não deu tempo. Nove tiros me pegaram antes. Era o ano de 2000.
Quando acordei no hospital, Maíra estava do meu lado. Chris estava trabalhando e morando em São Paulo. Chegou no mesmo dia, mas, cada vez que eu abria os olhos, lá estava a Maíra.
Outro grande amor da minha vida foi a Joana, talvez a mulher mais bonita que já vi. Ela é a que mais se parece com o que sempre sonhei: linda, bem-humorada, bem informada e amiga da minha melhor amiga, Virgínia. Uma pessoa feliz por ser feliz, do tipo que dança sem música, ri de besteira e nutre uma paixão pela vida que fez com que me apaixonasse. Era a tradução de uma vida que eu não via, mas queria ver. Foi depois dos tiros. Seis anos após os tiros, eu tive a mulher mais linda e um grande amor na minha vida.
Fui comer uma pizza com a Virgínia, que levou a Joana. Ela não me deu muita ideia, e eu a achei meio marrenta, mas estonteantemente bonita. Na época, ela era modelo da Elite e casada, então não botei fé. Depois de uns meses, Virgínia me ligou: “Joana se separou e está meio mal. Vamos sair com ela qualquer dia?” Quando saímos, já senti uma parada. No dia seguinte, Virgínia me ligou: “O que você fez com a minha amiga?” “Por quê?” E ela: “Está superimpressionada com você!” Liguei na hora para ela e marquei um encontro. Foi das melhores sensações da minha vida.
A partir daí, grudamos. Muito rapidamente a pedi em casamento e trouxe as coisas dela para casa. Não tinha condição de ter uma casa separada da minha mãe, o que acabou sendo um puta obstáculo na situação. Era complicado ter uma vida mais privada. Enfrentamos juntos uma enorme falta de grana, a Joana lá comigo. Foi bonito para caralho! Foi também o relacionamento que mais boicotei. Comecei a arruinar a relação e me relacionar com outra mulher, outra francesa. Joana, como era de se esperar, também não me aguentou. Quem aguentaria?
Eu morreria sem pestanejar por pelo menos cinco dessas mulheres. Sou capaz de tirar um rim e doar. Sou eternamente grato a elas. Como é que me deram dias tão perfeitos? Como adubaram os meus sonhos? Como me fizeram ser quem sou? Como elas mostraram que era possível eu existir do jeito que queria? Porque a minha maneira de pensar e de existir é muito específica: consigo me entender melhor me doando.
Tive também um relacionamento inusitado com uma pessoa inimaginável: a promoter Alicinha Cavalcanti. Foi antes dos tiros. Conheci a Alicinha no Ballroom, uma casa de shows no bairro do Humaitá, no Rio, que já não existe mais. Ela era toda musculosa e atraía a atenção dos fotógrafos. Eu estava no balcão do bar, e ela chegou: “Tudo bem?” Aí declamou da maneira mais masculina possível umas três músicas minhas e pediu uma vodca. Depois de um tempo, me convidou para ir ao Copacabana Palace, encontrar a Bebel Gilberto. Me propôs de tudo para ir até lá, mas eu não estava exatamente a fim. No dia seguinte, estava dormindo e minha mãe me acordou, eu ainda meio de ressaca: “Telefone para você.” Eu atendo e escuto: “Sou eu, Alicinha, lembra? Falei com você ontem.” Lógico que lembrava: “Oi, Alicinha, tudo bem?” Ela a mil por hora: “Vambora sair. Você mora onde? Vamos dar uma volta.” Tinha acabado de comprar o meu primeiro carro.
Fui encontrá-la. Meu carro era uma Ipanema preta que havia sido de uma funerária: um carro de levar defunto. Pior é que eu não sabia, só depois me dei conta. Para completar, já era velhinho. Abri a janela e ela não queria fechar mais. No caminho, pensava: “Como vou pegar a Alicinha Cavalcanti com um carro de funerária que não fecha o vidro?” Estacionei e dei um jeito na janela. O lance era não abrir mais.
Tive a maior vergonha de pisar no Copacabana Palace. Na recepção, perguntei pelo apartamento da Alicinha. O cara me disse que ela já estava me esperando. Dei um tempinho e lá veio ela num macacão colado, justinho, com botas até o joelho: “Porra, eu estava te esperando. Isso não se faz com nenhuma mulher! Sou eu que faço esperar. Vamos embora.” Eu falei: “Tem uma livraria ali com um café.” Ela me interrompeu: “Livraria com café? Eu quero beber álcool!” E eu pensando: “Que mulher é essa?”
Fomos para a Pizzaria Guanabara, e eu na pilha total pensando em como ia pagar a conta. Ela começou os trabalhos: “Um chope e um Underberg.” Entrei numa de acompanhar: “Dois.” “Já bebeu isso?” “Já.” Chope com Underberg é fatal, sobe à cabeça que é uma beleza. Fomos conversando e eu tentando entender, decifrar aquela mulher. De repente, ela fala para a mesa que está atrás de mim: “O que é? Não está vendo que estou acompanhada?” Quando olho para trás, tem dois caras enormes. E ela revoltada. Eu fui tomando consciência da personagem e pensando onde tinha me metido. Na hora de pagar, eu já doidão e ela, inteirona. Como bom provedor, falei: “Eu pago.” E ela, como mulher independente: “De maneira nenhuma.”
Não aguentei e comecei a pagar geral: “Está pensando que você compra tudo?” Já tinha sacado que ela tinha essa onda de poder, dinheiro, então comecei a espinafrar. Fui lá e paguei a conta. Digamos que a conta tenha sido uns 70 reais. Ela decidiu dar uma gorjeta de 50 reais para o garçom. Fiquei ainda mais puto: querendo tirar onda com a minha cara dando de gorjeta quase o valor da conta! Fui embora e ela veio atrás. “Você quer me esculachar?” Ela tentava me acalmar: “Espera aí, vamos dar uma volta. Posso dirigir o seu carro?” Acabei deixando. Para completar a minha irritação, pisei em bosta de cachorro.
Entramos no carro, ela botou o banco lá atrás e falou: “Eu já fiz alguns testes para a GM.” Ligou o carro e acelerou. Vruuuuuuum... Parecia Fórmula 1. Nunca vi alguém correr tanto. Chegamos ao Copacabana Palace e entrei mesmo com o pé todo cagado. Ela me levou para perto da piscina e não tive dúvidas: passei meu pé na água. Botei meu pé cheio de bosta de cachorro na piscina mais aristocrática do Rio de Janeiro. Subimos para o quarto, rapidamente tirei os tênis e deitei na cama com os pés para cima. Quando ela voltou, gostou: “Que bom que você está mais relaxado agora!” E eu apavorado com um fenômeno daqueles, uma personalidade daquelas, no Copacabana Palace. Aquilo não tinha nada a ver comigo.
Foi bom! Transamos e, quando acabou, eu fiquei amarradão com a foda: “Queria te ver mais vezes.” E ela: “Foi legal. Só que tem um problema: sou casada.” Eu pensei: “Fodeu.” E ela continuou: “Mas esse não é o problema.” Se esse não era o problema, qual poderia ser? “O problema é que tenho um amante, e o meu amante é o seu empresário.” Eu falei: “Não rola.” Fui embora. No dia seguinte, liguei para o Jeronymo, meu empresário: “Porra, Jê, saí com a Alicinha e ela me falou de você. Você nunca me falou nada!” E ele: “Tá tranquilo. Pode ir lá, pode comer.”
Passamos um Carnaval juntos até que um dia o Jê me liga e fala: “Estou apaixonado por ela, e isso está acabando comigo.” Nem pensei duas vezes e recolhi a pipa. Mas ela veio atrás e fazia cenas. Acho que ela via a minha ingenuidade e gostava do meu senso de humor. A coisa de eu ser totalmente avesso à vulgaridade do poder, às drogas. Aquilo para ela, naquele momento, era muito diferente.
Ela tinha uma Cherokee vermelha. Quando ia me buscar nos lugares, eu pensava: “Que merda, não vou entrar nesse carro.” Uma vez estávamos saindo de um restaurante e, quando fomos entrar no carro, havia dois caras subindo em uma moto. Ela falou: “Esses caras vão roubar a gente.” Não levei fé. Andamos um pouquinho e eles continuaram. Ela meteu o pé, os caras vindo atrás, num clima de perseguição pelas ruas de São Paulo. No carro tinha um lance que ela apertava e falava por um alto-falante do lado de fora, além de uma sirene. Ela gritava e tocava a sirene. Os caras acabaram saindo fora. Outra vez eu estava em um restaurante e ela me ligou: “Vou passar aí.” E eu: “Não vem.” Quando estou saindo, lá vem ela de moto. Eu andando a pé em São Paulo, e ela de moto ao meu lado. Uma moto enorme me acompanhando: “Senta aqui, senta. Vem aqui, vem.” Eu no papel de mulher e pensando: “Não vou de jeito nenhum.” Em meio a tudo isso, a gente também adotou uma garota HIV positivo na Viva Cazuza. Depois que nos separamos, perdi contato com a menina.
Quando tomei os tiros, mesmo tendo me afastado da Alicinha, esperava que ela fosse me ver. Ela é boa em resolver problemas e podia ter me ajudado. Fiquei sentido. Passados uns três anos, encontrei com ela numa festa da MTV. Eu estava magoado e ela veio falar comigo. Mandei logo: “Se você chegar perto de mim, vou fazer um escândalo.” Ela ficou puta, chorou, me xingou. Depois de um tempo, vim a saber que minha mãe tinha boicotado tudo da Alicinha. Ela tinha me procurado, sim, mas eu não soube.
Hoje ainda sei que sou capaz de amar, mesmo tendo vergonha de transar. Agora preciso mais da mulher, ela é quem pilota a situação. Se ela não entender que tem que ter a iniciativa e dominar a situação, fica difícil satisfazê-la. Numa das primeiras vezes, estava saindo com uma americana. Ela foi para a minha casa, e falou: “Não gosto de transar por cima.” Na hora eu parei: “Comigo essa é a única maneira. Se você não quer, tudo bem.” Mas, depois da primeira noite, tudo aconteceu naturalmente.
Rolam muitas histórias comigo. Se bobear, acho que agora, mesmo na cadeira, rola até mais. Entendo que existe a curiosidade de saber como paraplégicos fazem sexo. Realmente deve-se perder certos pudores. Tenho o enfermeiro que ajuda a me colocar na cama: me deixa lá e some. Se não chamar antes, seis horas depois ele vem para eu mijar. Simples assim. É lógico que isso cria situações inusitadas. Eu namorando, querendo ir para um motel com a minha namorada, tive que alugar dois quartos: um para a gente e outro para os enfermeiros me esperarem. Houve uma ocasião muito engraçada. Eu indo para o motel com a Mana e, no carro, o enfermeiro e o Garnizé, um cara bem baixinho. Virei para a recepcionista e falei: “Ela é depravada mesmo. Transa com o aleijado, mas também gosta do anão.”