O sexo só voltou um ano depois dos tiros. Falei com o médico: “Tá funcionando! Tenho ficado de pau duro.” E ele: “Quem disse que não ia funcionar?” Eu tinha uma coisa de não deixar mulher nem me tocar. Quando fui transar a primeira vez com a Servanne, disse: “Eu nunca transei depois dos tiros.” Falei isso para algumas – foi um truque que sempre funcionou. Ela chegou para mim: “Qual é o problema?” E eu: “Não sei como agir.”
Tudo isso foi muito difícil. Antes dos tiros, tinha uma prática um pouco nervosa: eu era o comandante geral da situação. Então não é só a impossibilidade física, mas também outra maneira de ver a coisa. Não sou mais quem toma as rédeas. Essa mudança de comportamento, atitude, prática, foi muito marcante. O fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson diz que, se você chega a uma cena de crime, todos vão estar olhando a vítima. É seu primeiro ponto de vista. Quando você muda a perspectiva e se desloca na cena, você tem outra informação. É possível, então, observar, pelo ponto de vista da vítima, ela própria a mirar as pessoas. Isto serviu para mim: a reversão de expectativa. Mudou e demorei a entender. Agora tenho outra visão e preciso muito da parceira.
Tomei os tiros aos 34 anos. Ali constatei que nunca tinha feito amor. Nunca, mesmo com as pessoas que eu amava. Amava as minhas namoradas, mas, na hora do sexo, era sexo. Comecei a perceber mais essa generosidade das mulheres comigo. Até porque, se eu estivesse no lugar delas, seria difícil para mim. Isso e a música me salvaram.
Não tenho muito cuidado comigo, a música zela por mim. E o amor dessas mulheres cuida do que é mais importante: meus sonhos. Elas construíram – e constroem – minha noção de esperança. Antes dos tiros, eu desconfiava de todas as relações.
Com os tiros, a relação e a percepção de tudo se alterou: política, favela, crime, bandidagem, deficiente físico. De alguma maneira, quero entender o precipício. Minha arte beira o precipício o tempo todo – muito mais na feitura do que no produto final. Sei como foi para chegar à música “Minha alma”, onde trafeguei para alcançar aquelas frases, como aquilo foi construído, de que forma engravidei aquela ideia. E foi em meio ao precipício total. Se essa música hoje pode ser tocada num aniversário de 15 anos, é outra história. Mas sei de onde ela vem, do meu contato com o pior lado da humanidade.
Chegou um momento em que perdi totalmente a fé. Mas as mulheres me devolveram isso. Certa vez, levei um fotógrafo da revista Rolling Stone a uma cela de cadeia. Pedi permissão aos presos para que ele fizesse umas imagens. Os caras toparam, e ele tirou uma foto num dia de visita. Tem sempre uma mesa grande, em que os visitantes vão colocando as carteiras de identidade. E fica um cara ali tomando conta. Ele tirou uma foto de cima pegando aquele monte de identidades. A mesa tampada com carteiras de identidade, umas duzentas, e todas eram de mulheres.
A recíproca não é verdadeira. No Talavera Bruce, um presídio feminino, a grande incidência de lesbianismo se dá pela falta de contato com homens. Não há presença masculina. Os companheiros não vão visitá-las. As mulheres são diferentes dos homens.
Estou perdidamente apaixonado no momento. Só não sei ainda por quem. Fico como se estivesse pronto para amar demais. Quando estou assim, acendo no escuro, me encho de energia. Mas não fico dando tiro à toa. Depois da Joana, não estou procurando mais aventura, não quero mais quantidade. Se não tomar cuidado, é um monstro que pode despertar aqui dentro. É a minha única droga, e posso me viciar de novo.
Antes dos tiros, vi Lua de fel, um filme do Roman Polanski, uma história que tem muito a ver com a minha. O protagonista, que é o maior filho da puta, conhece uma mulher linda, que vai morar com ele. Ela é completamente apaixonada, mas ele tem uma relação de sexo, de dominação, faz o horror com a mulher. E ela, apaixonada, deixa o cara fazer o que quer. Depois terminam e ele sofre um acidente – é atropelado ao saltar de um carro. Ela volta ainda mais linda e vai visitá-lo. Ele não havia sofrido nada muito grave, mas a mulher provoca um novo acidente na cama do hospital e ele acaba ficando paralítico. Ela então vai cuidar dele. É quando aproveita para completar a vingança de tudo o que sofreu. Não foi suficiente ter deixado o cara paralítico. Ela transa com outro na frente dele, dá em cima de todo mundo, espezinha, enfim, devolve na mesma moeda a humilhação que sofreu um dia. Quando vi o filme, fiquei traumatizado, porque era a vingança do amor contra o sexo. E eu, naquela época, separava completamente as duas coisas. Quando acontece isso, eu falo: “Não quero ser o cara do Lua de fel.”
Sempre quis ser pai de um garoto. Depois da cadeira de rodas, me veio a coisa de ser pai de uma menina. Acho que aprenderia mais e daria mais amor. Sempre sonhei com um filho porque é o cara que vai curtir futebol, gostar de ouvir os discos, falar de mulher, fazer piadas de baixo nível. Mudei de ideia. Mulher tem mais amor para compartilhar. Eu quero ficar perto disso e ver brotar, enxergar o mundo pelos olhos de uma menina. Tenho até o nome, o da minha avó Olívia, primeira mulher que teve impacto na minha vida.
A Alicinha, mesmo, chegou e disse: “Faz um filho em mim. Não precisa cuidar, pagar, se envolver, nada. Só quero que esse filho seja seu.” Falou isso várias vezes e não foi a única. Isso me deu o maior orgulho, pois, quando a mulher propõe algo assim, é mais que propor dividir a vida com você. É dividir outra vida. Não é “namora comigo” ou “casa comigo”. É “eterniza comigo”, “perpetua comigo”.
Atualmente é mais complicado pensar em filhos. Antes mesmo da primeira relação pós-tiros, os médicos me falaram: “Você tem que entender que o sexo não é feito no pau – é feito na mente. É a criação do imaginário que gera o prazer. Sua noção de prazer é na cabeça.” Tive que entender isso de verdade para saber como me comportar. Por exemplo, eu não sabia, mas tinha a sensação do orgasmo sem o gozo físico. Um urologista me explicou: “Você não ejacula, pois vai para dentro e se mistura com a urina.” Então você pensa: “Aconteceu, mas não aconteceu? Aconteceu, mas não está dando para ver.” Não sabia se esse esperma ainda teria qualidade para reproduzir. Mas a possibilidade de eu ter filhos é real.
Há pouco tempo pensei em ser pai solteiro. É difícil. Há a pergunta básica: uma pessoa que não pode cuidar de si pode cuidar de alguém? O pensamento pode estar errado, mas existe. Quando sonho em ter um filho, me vem logo à cabeça a contribuição para o Povo dos Feios, para o orgulho dos feios. Os feios podem ser melhores, justamente porque eles não têm a facilidade estética. Vivam os feios! Por mais feios no mundo! Muitos feios são brilhantes em diversas áreas: Woody Allen, Stephen Hawking, Serge Gainsbourg. Eu tinha a fantasia de ver nascer alguma coisa parecida comigo: corcunda, bochechudo, alto, desconjuntado – um Lombriguinha. Mas eu não desejo isso para mãe nenhuma.
Tudo o que consegui foi driblando as adversidades. Não sei tocar, mas toco. Não sei escrever, mas escrevo. Sou feio, mas pego mulher. Vou me virando. O jeitinho é um verdadeiro know-how. É o jeitinho positivo. É a capa do Rappa Mundi, com um boneco feito de peças de escapamento de carro que a gente vê nas borracharias e mecânicas. O cara nem sabe que está fazendo arte, mas está.