A primeira banda da qual participei de verdade foi o KMD-5. A gente tocava o que defino como um reggae da Baixada Fluminense. Antes tinha feito uns ensaios sem importância com uns amigos. Um deles, o Marcelo Mariano, é filho do César Camargo Mariano com a Marisa Gata Mansa. A própria Marisa me deu meu primeiro livro sobre teoria musical ao me ver todo interessado no assunto. Foi crucial. Uma pessoa de um universo totalmente diferente do meu me deu a primeira força neste caminho da música. Conheci o Marcelo em Mambucaba – eles iam para lá nas férias. Bem novinho, o Marcelo já tocava com o Zé Ramalho, era músico profissional. Mas não dava para mim. Por mais que eles me incentivassem, nem tinha uma bateria. Era um caminho difícil. Mesmo assim, sabia desde pequeno que era o que queria fazer.
Na vila morava uma menina que adoeceu, e a galera se juntou para promover uma festa e arrecadar grana. Foi a primeira vez que toquei bateria. A primeira canção foi “Uma noite e meia”, música interpretada pela Marina. Fiz tudo errado e, mesmo assim, foi bacana. Logo depois dessa festa, outro amigo me chamou para tocarmos juntos músicas de bordel. Louco para caramba! Tinha mais um amigo, de Natal, que tocava sax e se amarrava em carimbó. Fizemos um único ensaio em que eu não parava de rir. Era violão, sax e eu tocando caixa e bumbo. Só um bom tempo depois pintou o KMD-5.
Estava na faculdade e, para ajudar a bancar o curso, consegui trabalho num estúdio de áudio que havia por lá. Um dos professores, André, foi muito importante. Houve uma época em que fiquei sem vaga em república. Morava em Campo Grande e estudava na Facha, no bairro carioca de Botafogo. O deslocamento de um ponto a outro consumia umas três horas – era pauleira! André promoveu um seminário com a turma e cada grupo apresentaria um trabalho sobre algum estilo musical. Fiquei com a bossa nova. Eu era muito tímido e não me relacionava com a galera da sala: entrava mudo e saía calado. Já vinha do trauma do colégio, onde todo mundo se conhecia da praia e tinha ido à Disneylândia. Não me sentia parte daquele lugar.
Na faculdade, fiz amizade com uns dois ou três que eram de outro mundo, assim como eu. Como não me comunicava com praticamente ninguém, falei para os meus companheiros de grupo que eles não precisavam fazer nada, que eu faria tudo. Não queria me reunir fora dali. Além disso, sabia que daria conta do trabalho. Eu levava na bagagem a boa educação musical que meu pai me dera, além de ter sempre me interessado pelo assunto. Para completar, queria fazer bonito, já que me amarrava no professor. Fui até entrevistar o Maurício Valadares, referência de conhecimento musical e que trabalhava na Rádio Fluminense. Para ele não foi nada, mas para mim: “Caralho, o Maurício Valadares!” Queria falar sobre o movimento new bossa, que rolava na Inglaterra.
Montei o trabalho e tive até a ajuda do meu tio, o seu Jorge original, que me ajudou a datilografar. Foi desse meu tio, aliás, que tirei a ideia de apelidar o Seu Jorge cantor de seu Jorge. Um dia, o Jorge chegou para mim e falou: “Estou pensando em me lançar na música e preciso de um nome. Me dá um nome aí. Você é bom com essas coisas.” Falei na lata: “Jorge Negão.” Ele não gostou: “Jorge Negão, não.” Lembrei desse meu tio que era um cara muito querido no bairro, uma figura folclórica. “Bicho, tenho um tio e o nome dele é seu Jorge.” “É isso: Seu Jorge!” Com certeza, esse nome deu sorte para o negão. É um puta case de marketing! O Jorge me conta sempre achando graça que, no estrangeiro, as pessoas pensam que o nome dele é “Seu”, e “Jorge”, o sobrenome. Tem gente lá que o chama de “Mr. Seu”.
Estava com o trabalho pronto para apresentar. Como morava longe, fiquei em casa numa terça-feira para aprontar tudo e apresentar dois dias depois. Quando chegou a quinta-feira, suposto dia da apresentação, descobri que ela deveria ter rolado na terça. Uma merda! Eu não fui e o cara não teve aula para dar. André estava putaço comigo e me espinafrou na sala. Eu era cabeludo, andava de preto, era muito magro e passava uma imagem de drogado. Ele até falou como se eu não tivesse ido por vagabundagem. Fui avacalhado em público de uma maneira foda. Realmente chegava todo dia com sono na aula, já que, para estar às sete na faculdade, tinha que sair de Campo Grande às quatro da manhã. Morava na casa da minha tia, com seis primos. À noite, todo mundo se encontrava e fazia o social. Eu acabava dormindo tarde. Era barra-pesada.
Quando o professor concluiu o esporro, falei: “Mestre, os meus colegas não podem pagar por eu ter errado a data. Fui eu quem não trouxe o trabalho. A culpa é minha! Queria propor que o senhor me dê zero, mas me deixe apresentar a aula. Se for boa, você dá a nota para os meus parceiros. Eu não quero ganhar nada. Só quero apresentar a aula que a gente preparou.” Mesmo sendo a primeira vez que eu falava em público, a aula foi bem boa. Quando acabou, fui pegando as minhas coisas e saindo. Ele me deu mais um esporro. Fui arrasado para casa.
Na segunda-feira, quando cheguei à faculdade, encontrei a menina que era líder da classe, a Mônica. Ela falou: “Parabéns!” Fiquei surpreso com a reação. Cruzei com meu amigo Guto, que também me deu parabéns. E eu sem entender nada. Passei por mais um amigo e ele: “Maneiro, gostei.” E eu sem saber o que era. Por que tantas felicitações? Então Guto me contou: o professor André havia me indicado para a vaga de estágio no estúdio da faculdade. Todo mundo queria trabalhar ali. Eram quatro vagas, e o André podia escolher um. Ele me escolheu e mudou a minha vida.
Meu trabalho era cuidar das gravações no estúdio. Além de passar os dias num estúdio de áudio, ainda ganhei bolsa na faculdade. Alegria total para os meus pais. De uma vez só, eu estava trabalhando e eles não precisavam mais pagar a faculdade. Eu ralava para cacete! Comecei a dominar tudo no estúdio. Não demorou muito e, com uns amigos, resolvemos apresentar para a direção da faculdade o projeto de uma rádio interna para os intervalos das aulas. Eu, o Guto e o Heleno. Não me lembro do nome do programa, mas era de música negra. A gente informava e tocava música. Era rádio de caixinhas de som espalhadas pela faculdade. Nelson Meirelles, que depois produziu o Cidade Negra e O Rappa, também estava por lá e fazia outro programa, o Batmacumba – ele e o André Miranda, filho do artista plástico Luiz Áquila. André foi o primeiro DJ que ouvi tocar dub. Batmacumba era um programa de reggae bem underground. Eles também faziam uma festa, e foi numa dessas que conheci o Nelson. Na época era difícil conseguir os discos, e eles tinham acesso a muita coisa que não chegava ao Brasil. Formei muito meu ouvido com aquelas audições.
Nos tempos da faculdade, ia com frequência a shows de bandas punk no Circo Voador. Não curtia o som, mas a atitude. Ficava lá em cima na arquibancada, sozinho. Adorava observar os vocalistas com seus discursos inflamados: “Porque o probrema...” Me intrigava perceber como as pessoas começavam a se organizar, a questionar as coisas com tão pouca informação. Adorava aquele clima underground. Muitas vezes eu não tinha dinheiro para pagar o ingresso e acabava pulando a grade. Fiquei uns dez anos pulando a grade. Era uma merda, porque eles enchiam de graxa e eu ficava todo cagado. A solução foi passar a levar duas camisas.
Gostava da atitude punk, mas, do ponto de vista musical, gostava mesmo era da black. Fui me especializando, e as pessoas da Lapa começaram a perceber que eu era o cara da música black. Houve um festival no Circo chamado “Stop Apartheid”. Chamou minha atenção a quantidade de bandas de reggae que eu nem sabia que existiam. Vinham da Baixada Fluminense. Lembro-me de uma delas, a Sombras que Surgem, que tocava funk com latões de lixo como instrumentos. Era tudo bem inusitado. Bandas de reggae e funk, mas com uma atitude punk. Fiquei enlouquecido com aquela nova cena que se abria: “Caralho, de onde vêm esses caras?”
Naquela época, na Zona Sul do Rio, a gente escutava bandas de rock dos anos 1980. Cheguei a curtir algumas, mas cantar que a menininha do Leblon não olha mais para mim era o fim da picada. Não me dizia nada: nenhuma menina do Leblon nunca tinha olhado para mim e nunca olharia. Caguei se o cara usava óculos ou não. Eu sempre gostei do som do Paralamas, mas aquelas letras não me representavam.
Fui procurar quem podia me proporcionar algum tipo de identificação. Busquei na Baixada. Quando cheguei lá, me encontrei com a postura punk e com a música negra. Ainda muito tímido, ficava sozinho nos shows. Nenhum dos meus amigos tinha interesse naquela cena. Eu mostrava os discos, as músicas, e eles: “Isso é muito ruim, música africana, reggae...” Nego estava numa de virtuose.
Na Baixada, conheci um cara muito legal: o Adoteeu. Foi criado num orfanato e, desde pequeno, quando as pessoas iam lá, pedia sem parar: “Adote eu, adote eu.” Acabou virando Adoteeu. Adoteeu tinha uma carreira solo de reggae. Ele chamava bandas para acompanhá-lo. O KMD-5 tocava com o Adoteeu. Isso de um músico de uma banda tocar com outra era muito comum, já que não havia tantos músicos e muitos não tinham grana para os instrumentos e equipamentos. Assim, eles se revezavam – um tocava para o outro. Percebi que havia uma unidade, um movimento, uma cena. Mas eu ainda tinha muitas perguntas. Eles se conheciam de onde? Que cenário era aquele? De onde vinham? Tudo isso me interessava.
Quando cheguei à Baixada, a banda mais reconhecida era a Lumiar. Mais tarde ela mudou de nome e passou a se chamar Cidade Negra. Nelson Meirelles já estava por lá e foi fundamental para dar uma cara, um conceito, organizar o som do que virou o Cidade Negra. Eles não estavam testando mais nada e eram impressionantes. A banda era muito boa e virou uma referência na Baixada. Ainda mais porque começaram a aparecer, especialmente depois de serem contratados pela Sony para gravar o primeiro disco. Foi uma injeção de ânimo, pois apontou um caminho, mostrou que era possível.
Eu já curtia o KMD-5, que fazia um som mais pesado, mais rude. Era diferente do reggae que rolava por ali. Fiquei fissurado no que eles faziam. Fui para a faculdade na semana que se seguiu à do show do Circo usando uma camisa que tinha comprado no evento. A menina que tinha produzido, Daniela, trabalhou na Sony o maior tempão e também estava fazendo faculdade na Facha. Ela passou por mim e perguntou: “Você foi lá?” E, depois de alguma conversa: “O KMD-5 está precisando de baterista.”
Eu tinha um amigo, o Marcelo, cujos pais tinham ido morar nos Estados Unidos para fazer curso para a usina de Angra. Ele acabou ficando lá um tempão e ganhou o apelido de Gringo. Era todo ligado em roupas e sagaz para caramba. Ele tinha uns negócios de fazer bateria. “Você não queria arrumar uma bateria? Tô querendo trocar umas peças por umas roupas, topa?” Não pensei duas vezes. Fomos lá para casa, abri o meu armário – ele foi pegando e eu puxando. Ele pegava uma camisa e eu puxava um prato. Ele pegava uma calça e eu puxava um pedal de bumbo. Foram as primeiras peças de bateria que tive. Passou um tempinho e perguntei para a Daniela se o KMD-5 já tinha arrumado o batera. Ela botou a maior pilha para eu ir lá tocar com eles. O problema é que eu não tocava nada nem tinha uma bateria completa. Ficava escutando os discos e tocando no sofá. Ouvia um som e pensava: “Isso eu consigo fazer.” Era como se lesse um manual de instruções de como dirigir e aquilo me dispensasse das aulas de direção. Não tinha a prática. Mesmo assim fui lá, dei o meu jeito e os caras gostaram. Passei no teste de direção sem nunca ter guiado o carro.
Tinha dificuldade para segurar a baqueta junto ao aro da caixa – minha mão sangrava. O primeiro show foi de comemoração da emancipação de Belford Roxo. A gente crente que ia rolar alguma grana, ajuda de custo, e nada: ganhamos pastel com caldo de cana. Fazíamos muitos shows para o movimento negro, nunca havia dinheiro. Era pauleira, pois ensaiávamos lá na Baixada cinco dias por semana. Eu ensaiava e ia para a faculdade estudar e trabalhar. Comia cachorro-quente, carne moída e uma vitamina que já ficava pronta no copo na Central do Brasil. Fui para um lugar com pessoas que eram de uma classe econômica mais baixa que a minha.
Com o KMD-5, depois de um tempo, minha pegada ficou mais profissional. Ainda assim, a vergonha persistia – a ponto de não convidar ninguém para os shows. De qualquer forma, integrar a banda me fez pertencer a alguma coisa. Por mais que fosse um mundo difícil, era um novo universo que eu estava descobrindo. Perto da casa da galera da banda, havia a tal montanha de lixo que sempre me impressionou. Estava com um deles e falei: “Foda ter uma montanha de lixo aqui enquanto na Zona Sul um carrinho lava a rua.” O cara não acreditou, ele ria de doer a barriga: “Está pensando que sou otário? Está de sacanagem comigo? Que carrinho para limpar as ruas o quê!”
Já membro da banda, comecei a ver que podia também fazer letras para as músicas. Escrevi a primeira, que se chamava “BF”, de Baixada Fluminense: “As margens da cidade grande, muitas coisas que você olha, mas não vê, coisas que não vivem onde mora o poder.” Fui realmente fazendo parte da banda não só como baterista. Estava aprendendo a tocar com eles, já tinha uma noção de arranjo e muita informação musical. De alguma forma, com o tempo, isso foi causando certo incômodo: como eu, que estava aprendendo a tocar com eles, podia me meter nos arranjos, nas composições e até nas letras?
Muita gente me enxerga como letrista. A verdade é que também faço muitas músicas e só depois coloco as letras. Entendo muito pouco de harmonia e teoria musical, mas posso chegar num piano e tocar. O pouco que sei é suficiente para compor.
O KMD-5 foi ganhando espaço e respeito. Depois do Cidade Negra, éramos a banda de reggae da Baixada. Tocávamos muito. Dida, o vocalista, organizava umas festas no quintal de casa, e sempre nos apresentávamos. Também tocávamos muito no NEC – Núcleo Experimental de Cultura –, ligado à UNE, a União Nacional dos Estudantes. O trabalho evoluía, o público ia gostando, e o Cidade já fazendo sucesso pelo Brasil. Se eles tinham conseguido, a gente também podia.
Acreditávamos que o reggae seria a bola da vez. Surgiram várias bandas naquele momento. Nelson era muito importante para o Cidade Negra e também para o movimento. Era um cara que tinha grana, os discos e a coisa de organizar, produzir. Ele fez o Cidade Negra acontecer.
Apesar de tudo, o movimento esperado não aconteceu. Afora o Cidade, nenhuma banda foi contratada. Muitos que acalentavam o sonho de viver de música desistiram, alguns voltaram para o operariado. Toda aquela cena que vi na Baixada se perdeu. Anos depois, eu já nem estava mais na banda, o KMD-5 mudou de nome – passou a se chamar Negril e gravou pela BMG. O sucesso, porém, não aconteceu.
Fiquei uns cinco anos no KMD-5. Foi quando ganhei o apelido de Yuka. Eu esbarrava em tudo, derrubava um monte de coisas, desajeitado, desligava cabos. Maior uruca! E tinha um moleque ali na rua, o Anderson, que não conseguia falar “uruca”. Ele falava “iuca”. Nego achou engraçadão e começou a me chamar de Yuka.
Foram muitas as histórias na Baixada. Uma vez quase morri. Tinha um cara lá, o Bidê, que era tipo um miliciano local. Eu estava vendo um futebol que rolava na rua. Tinha outro cara, o Praxedes, que tocava percussão com a gente. Ele queria se chamar Praxedes, mas o bairro o chamava de Juca. Bidê estava dentro de um carro, de onde saiu com uma escopeta e falou: “Chega aí, Juca.” Eu entendi que era Yuka e fui lá, andando: “E aí, o que foi?” E ele: “E aí é o caralho, rapaz. E aí o quê?” Não entendi nada. Ainda não conhecia o Bidê e retruquei: “Eu que te pergunto.” Ele foi engrossando: “Nunca te vi, vai tomar no cu.” Saquei que o clima podia esquentar e fui saindo. Ficou por isso mesmo.
Outro incidente desse Bidê foi com o Lauro, que eu acabei colocando para ser baixista d’O Rappa. Estávamos a caminho da minha casa na Tijuca, num sábado. Bidê sempre esculachava o Lauro, chamando de macaco e coisas do tipo. Veio o fusquinha do Bidê, ele deu um cavalo de pau. Lauro mandou: “Hoje eu não vou deixar. Esse cara, toda vez que me vê, joga o carro em cima e me chama de macaco. Hoje eu não vou deixar.” Abaixou e pegou uma pedra no chão. Bidê avistou o Lauro e jogou o carro em cima da gente. Nós nos atiramos de encontro a um muro. O cara passa e fala: “Aí, macaco!” Foi ele acabar de falar e o Lauro tacou a pedra. O sujeito saiu do carro: “Você vai morrer agora! Eu vou te matar.” Tinha uma mulher no fusca gritando: “Não faz isso!” Bidê estava uma pilha: “Vou te matar agora.” Só que ele não estava armado. Mesmo assim, mandou: “Vou buscar a arma.” Entrou no fusca e saiu. Desespero total, tumulto. Bidê voltou com o revólver. Sabíamos que não adiantava fugir, tínhamos que fazer a cabeça dele para relevar. Fui tentando desenrolar: “Porra, peraí, o cara tá nervoso, cheio de problemas.” Fui dando muita ideia no Bidê. Conseguimos! Essa foi a primeira vez que, de alguma forma, salvei a vida do Lauro.
Eu estava me dedicando muito ao KMD-5. Ia para a Baixada cinco vezes por semana. Puta ralação. Um dia chego lá e tem uma reunião falando que iam me tirar. Isso porque teriam que ensaiar todos os dias, e eu já tinha dito que mais de cinco vezes na semana não daria. Não tinha condição física nem dinheiro. Resultado: me mandaram embora e eu entrei em depressão. Eu tinha um gravador pequenininho do Paraguai. Ficava trancado no meu quarto e passei a gravar minhas ideias. Fazia a linha de baixo com a boca e gravava. Colocava essa gravação num outro gravador. Dava play e gravava as partes da bateria. Comecei a fazer as minhas músicas.
Com essas bases construídas de forma tão improvável, me dediquei a escrever umas coisas. Muitas das músicas do primeiro disco d’O Rappa vêm dessas fitas. Uma linha de baixo de que gosto muito é a de “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Essa eu fiz na boca. Depois, quando montamos O Rappa, passei para o Nelson. Sempre fui um cara que pensou no formato e no caminho musical – nunca foi uma coisa só de letra. Eu montei a sonoridade d’O Rappa. Pode soar prepotente, mas é a verdade, sei o que fiz. Não estou querendo diminuir o talento dos outros membros da banda. Simplesmente, naquela situação, eles não conseguiam ver o que eu via.
Nessa mesma época, rolavam algumas festas bacanas no Rio. Tinha aquele negócio de conseguir os discos e tal. Eu vivia nos sebos e gravava uma porção de fitas cassete. Era fissurado em música. André Miranda, DJ, me disse um dia: “Você tem que conhecer um cara, porque ele curte o mesmo som que você.” Era o Skunk, que depois formou, com Marcelo D2, Rafael, Formigão e Bacalhau, o Planet Hemp. A galera se reunia nesses points da Zona Sul. O mais frequentado era um boteco que havia ao lado do cinema Estação Botafogo. A galera ficava ali bebendo e trocando muitas ideias. Foi lá que conheci o Skunk, e logo ficamos bem amigos. Depois o Skunk me apresentou ao D2 e ao BNegão. Com essa galera, me senti novamente integrando uma cena. Já não estava tão ligado à Baixada e passei a pertencer ainda mais ao universo da Lapa.
Não ia mais sozinho assistir aos shows, agora ia com a galera. Antes de entrar, a gente ficava bebendo cachaça do lado de fora. Certa vez, o Jorge Beatnik, uma espécie de guru, chegou para mim: “Você que é o Yuka?” “Sim”, respondi. Ele se mostrou surpreso: “Eu jurava que você era negro.” Jorge foi meu companheiro de muitas idas ao Circo. Ali também comecei a resgatar as coisas mais antigas do samba e da música brasileira. Um dia o D2 pediu para ir lá em casa ouvir os meus discos. Queria misturar a música brasileira, o samba, com rap.
Não tinha noção de quanto nossa música é poderosa. Quando eu era pequeno, meu pai comprou uma vitrola que vinha com um disco do Erlon Chaves de brinde. Naquela época, quem fazia muito sucesso era o Simonal. Foi ele quem trouxe essas influências de musicalidade negra americana – o orgulho de ser negro – para uma mídia maior. Ele tinha programas na TV e era referência total. Não só de música, mas de comportamento. De todo modo, o disco do Erlon Chaves me marcou. Passei anos ouvindo, ainda que tenha comprado primeiro um do Barry White, bom até hoje. Também escutava muita música com os meus primos. Os sons black que buscava tinham origem nas referências do meu pai, dos meus primos, do rádio. Não escutava muito rock, não tenho Led Zeppelin na minha vida.
Depois do KMD-5, segui neste meu caminho sempre muito ligado ao reggae e próximo ao Nelson Meirelles. A gente virou chapa, fui construindo afinidade com ele. E continuava forjando as minhas bases. “Sujo” também é dessa época. Eu fazia as músicas, mas não mostrava para ninguém. Um cara que chegou junto foi o Carlinhos, baixista lá da Baixada. Chegamos a montar uma banda, Conexão Xangô, que durou pouco. Ele não tinha grana para se deslocar toda hora para a Zona Sul. Ensaiávamos num estúdio e um cara ficava me pedindo para tocar com a gente. Era o Xandão, que depois fez parte d’O Rappa. Ele tocava uma onda mais jazz e não tinha um lance que eu imaginava para o nosso som. Mal sabia eu que o Xandão se tornaria, anos depois, um dos caras que mais me prejudicou na vida.
A banda acabou, mas estava para rolar uma turnê do Papa Winnie no Brasil. Ele precisaria de uma banda para acompanhá-lo por aqui. Nelson Meirelles estava nessa e me chamou. Foram muitos shows. Lobatinho, que também formou O Rappa, fazia parte dessa banda do Papa Winnie. Durante a turnê, o Carlos Townsend, empresário desses shows, ia marcando outros. Foi a primeira vez que toquei para grandes plateias e vivi a experiência de estar na estrada. Foi a partir dessa banda, dessa turnê, que O Rappa foi formado.