Sou o campeão de ser “saído” de bandas. Ou seja: o problema é também comigo. Eu me pergunto: o que deixo nas bandas? Crio coisas, mudo direções, invisto em conceitos. Existe um legado que é difícil de apagar. Uma coisa que incomoda a alguns é o fato de eu nunca ter sido um bom músico. Como um cara que não é bom músico pode interferir tanto? Propor tanto? Guiar? Porque o norte é sempre apontado pela segurança, e não pela fragilidade. Hoje entendo que, se alguém me chama, tem que saber o que sou, que busco um conceito. Eu sou poeta.
Com O Rappa, eu estava borbulhando, com muita força, segurança. Sou um cara desorganizado, mas extremamente focado. Enquanto neguinho está fodendo, namorando, indo ao cinema, bebendo, eu posso estar fazendo tudo isso sem deixar de trabalhar, totalmente conectado. Já me disseram várias vezes que tenho o tal do DDA, distúrbio de déficit de atenção. É uma grande quantidade de energia. Quando você vê o Falcão pulando para cá, para lá e cantando, essa coisa do frontman, que chama a atenção, é uma puta energia. A minha, porém, é em outro sentido – e ininterrupta: não termina quando desço do palco. Isso me faz mal.
No momento estou fazendo um disco, e preciso de uma baita humildade para ouvir do produtor que as minhas músicas estão uma merda. Apolo, o produtor, curte uma onda anos 1980, e eu tenho o maior problema com música dessa época. Na hora falei: “Bicho, essa não é a minha praia.” Depois pensei: “Mas é exatamente por isso que estou vindo aqui.” Quero fazer uma curva na história: não vai deixar de ser eu, mas preciso respirar outras coisas. E a música tem a possibilidade de ser uma coisa conjunta em que o outro pode surpreendê-lo. Tive que voltar atrás, ser influenciado pelo Apolo, respirar, entender.
Eu vejo que o senso comum quer que eu continue a compor músicas como “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, “Tribunal de rua” ou mesmo “Minha alma”. As pessoas esperam que eu siga com esse discurso. Muito mais que um tema, sou e quero ser um ponto de vista sobre um tema. É isso que precisam entender. Já me mandaram monografias de faculdade que analisavam minhas músicas. Uma menina me disse que tem um ponto de vista psicológico sobre a coisa. Olha: “Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala, fez da TV um espelho refletindo o que a gente esquecia.” No decorrer da canção, você consegue escutar o “som das crianças brincando na rua como se fosse um quintal, a cerveja gelada da esquina como se espantasse o mal”. Você consegue visualizar o mundo que estou propondo. Mas é por uma condição emotiva, poética. É diferente da narrativa do hip-hop. Eu não narro violência como um filme de ação. Não! E cheguei a compor canções ingênuas, mas que fizeram parte do meu processo. Aquelas com que as pessoas se identificam ou que posso reconhecer como o melhor do meu trabalho representam a percepção psicológica de uma situação. Em “Tribunal de rua”, mais do que falar da violência policial, falo sobre um momento em que as pessoas duvidam do biotipo de alguém. Baseadas em quê? É tudo meio visual. Muito mais que uma dura policial, eu questiono construções de valores que estão ali naquela cena. Quem está sentindo o quê? O cara dentro do carro está sentindo o quê? O policial está sentindo o quê? O cara da dura está sentindo o quê? O que me emociona, a minha procura, sempre foi a do sentido. Não é algo com propósito de dar consciência. Quando consigo me comunicar, é sinal de que a sensibilidade que me fez parar para defender aquele assunto foi a mesma que emocionou outra pessoa – o que ela vai fazer com essa emoção, eu não sei.
Há pouco tempo um tatuador veio me dizer uma das frases que mais ouço das pessoas: “Como o seu trabalho mudou a minha vida!” Ouço desde 1998. Não é “essa canção é legal”, “fui a um show que arrebentou”. Não é isso. O movimento solitário da pessoa com a canção foi o que sempre me comoveu. Eu tenho uma relação pessoal com o Jorge Ben Jor através da obra dele. Não conheço o Caetano, mas tenho uma relação pessoal com a obra dele. O compositor norte-americano que mais me influenciou foi o Gil Scott-Heron. Quando vi esse cara pela primeira vez, falei: “Se ele fosse dono de igreja, eu seguiria.” Por isso entendo e sei que talvez esse seja o meu maior legado – e o meu maior prêmio.
Tenho orgulho de alguns sucessos, das melodias que me vêm à cabeça. Esse lado musical ficou ainda mais forte com a imobilidade. A poesia que faço hoje, e que agora coloco em música, não é fácil. Nem sei se vou me comunicar. É a vitória de um homem sozinho, do garrancho, do português mal escrito, do pedaço de papel que ninguém viu. Esses cadernos largados, esses caquinhos de frase que vamos deixando por aí, essas coleções de sentimentos produzidas no banco de trás de um ônibus. Como isso adquiriu tamanha proporção?
O Rappa é pop. Eu não sou pop. E não porque não queira, gostaria muito, mas simplesmente não sei ser. Eu durmo uma semana ouvindo Roberto Ribeiro: “Todo menino é um rei, eu também já fui rei...” Puta que pariu! Mas eu não consigo fazer nada parecido. Falcão faz melodias maravilhosas. E, para mim, é um grande ator. Como tal, ele interpretou coisas que eu disse e sei que, até hoje, não entende o que está cantando. Aliás, na grande maioria das músicas, ele nem sabe o que tem ali. Se soubesse, não cantava pelo menos duas canções que fiz falando dele. E ele ganha o mundo cantando uma coisa dessas, que fiz lamentando por ele. O Rappa é um sucesso, e o que eles são hoje representa um êxito muito maior do que na época em que fiz parte da banda, quando pude estar ali. São um êxito comercial, muito mais do que uma banda de conceito. O que ainda tem de conceito foi o que restou da minha época. Isso mostra que são visões de mundo completamente diferentes. Durante um tempo, convergimos, e acho que fizemos coisas legais.
A construção d’O Rappa é a construção de um encontro virtuoso, mas de uma decepção também. E de como o dinheiro é capaz de transformar as pessoas. Alguns deles me pediam “por favor” para entrar na banda que eu estava montando. Foi o caso do Xandão. Com O Rappa, viajei o Brasil todo, boa parte do mundo. Mas havia uma sensação horrível instaurada, logo depois dos dois primeiros anos, de ter que equilibrar os egos, conviver com coisas que jamais imaginei. Primeiro, você acha que é imaturidade, que todos podem crescer. Mas aí tudo vai ficando pior. Era justamente o contrário do que estava nas letras.
Marcelo Falcão é um grande ator: talentoso não só na arte de cantar como também na de iludir. A sombra disso é a covardia. A gente vivia uma geração em ebulição, confiando naquilo. E, quando começa a dar dinheiro, tem que cuidar mais ainda. Foi aí que fodeu, que a pequenez humana ganhou espaço. Todos ali são bons músicos. Já no meu caso, costumo dizer que nunca fui bom músico, mas sempre fui alguém de conceito.
Meu momento de maior alegria n’O Rappa foi quando o clipe de “Minha alma” ganhou vários prêmios na MTV. Foi uma aposta muito grande. Chamei meus amigos Paulo Lins e Kátia Lund, e a gente ficou três meses se encontrando quase todo dia, discutindo o roteiro. E eu insistindo naquela direção de mostrar cada vez menos a banda e mais as ideias. Por mim, no clipe de “Minha alma” a gente não sairia da cena do barzinho, sentados tomando cerveja. Não precisava ter havido conflito ali. As poucas imagens da banda foram por insistência do Falcão e porque o clipe tinha que ter alguma referência à banda, razão de a gravadora estar pagando.
Na edição, quando mostramos, chegou um momento que eu disse não. Bati o pé: “Chega de imagem da banda!” Uma aposta minha, pessoal. Ninguém sabia quem eram Kátia Lund e Paulo Lins. Se tudo desse errado, a culpa seria minha. Só falamos sobre isso de novo no dia em que ganhamos o prêmio. Na hora de receber, Falcão veio com aquele discurso cheio de agradecimentos. Eu sabia que a gente tinha que construir uma informação além da música. Aquele é um dos poucos videoclipes que, se você tirar o som, cumpre seu papel. Além disso, conferia um protagonismo àquela molecada que estava atuando.
O êxito foi total. Quando apostei, sabia que o terceiro disco tinha que ser emblemático, algo que empurrasse o nosso conceito. Hoje, se alguém escuta o Lado B Lado A, ele é um disco pop. No momento em que saiu, Sérgio Afonso, presidente da Warner, falou: “Fodeu! Adorei o disco, mas para botar na rua só tem uma música que fala de um beijo.” Eu insisti, briguei muito por aquele disco. Foi um dos momentos felizes. Insisti em ter a produção do Bill Laswell. Uma das maiores felicidades da minha vida foi o encontro com o Chico Neves, que produziu junto. Tudo caminhava para a gente gravar novamente com o Liminha, com quem tínhamos feito o Rappa Mundi (apesar de, conforme já relatado, eu ter medo do Liminha a ponto de deixar a baqueta cair).
“Minha alma” arrebentou – clipe e música. Ainda assim, o clima da banda era estranhíssimo, as pessoas raramente estavam na mesma sintonia. Foi ideia minha cortar o som da banda e começar a canção só com a voz do Falcão. Aconteceu na mixagem lá no Real World, estúdio do Peter Gabriel, na Inglaterra. Na gravação, o Xandão foi bem ausente, assim como o Falcão. Quando chegou a hora de mixar, o Falcão mal ficou no estúdio – foi para Amsterdã com a namorada e o irmão. Quando chegou, reclamou que queria um cara rasta para mixar. São coisas assim, sintonias diferentes. “Minha alma” é bem significativa de como as coisas se davam n’O Rappa. Foi a primeira música que mostrei depois da reunião em que eles falaram que não queriam mais músicas minhas. A banda demorou a acontecer e, quando a gente começou a ser notado, foi muito mais pelas letras. O conceito d’O Rappa veio antes do reconhecimento pela música em si.
Quando houve essa reunião, eu achava que meu trabalho estava começando a trazer reconhecimento para o grupo. Foi um evento traumático, decepcionante e parecia uma traição. Íamos começar o terceiro disco, o Lado B Lado A, e eu me envolveria simplesmente como músico: iria tocar e pronto. Isso foi algo decidido por eles sem a minha presença. Depois disso, levei meu caderno de rascunhos para casa, mas o caderno não parava porque eu funciono também na adversidade.
O caderno foi se enchendo de letras e, quando escrevi “Minha alma”, senti de cara. Foi como quando escrevi “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” e algumas outras. Percebi logo que havia alguma coisa forte ali. Saiu de supetão. No dia seguinte, fui para o ensaio e, uma semana depois da reunião, eles vieram conversar me pedindo para levar o caderno e voltar a compor, já que não estava saindo nada. Eu disse que iria mostrar algo em que eu realmente acreditava. Tinha que ser foda! Além do fato de eu saber que era o nosso terceiro disco, e que não dava mais para bater na trave – era preciso atingir outro patamar. Atualmente, nem mesmo ao primeiro disco é dado tempo. Naquela época, o terceiro disco era o “ou vai ou racha”.
Apareci no dia seguinte com a letra de “Minha alma” no bolso. Quando fui pegá-la, tinha perdido. “Puta que o pariu, caralho, que merda!” Disse que ia ao banheiro e fui até o carro procurar a letra, que não estava lá. Fui então, de fato, para o banheiro e escrevi essa “Minha alma” que está aí, com as lembranças que eu tinha da versão original. Para mim, essa versão é muito pior do que a primeira que havia escrito. Nunca encontrei a letra original. É um paradoxo, já que talvez seja a minha música mais conhecida. Eu gosto dela, mas sempre fico achando que a outra era melhor. Se gostam dessa merda, imaginem da outra!
Existem músicas que fiz tentando me proteger e me poupar das figuras deles, do que me incomodava neles – não da diferença de cada um, não do que não gostávamos uns nos outros. Até porque tive bons momentos com eles, em que ríamos muito. Mas tenho senso de observação e, como todo mundo, um lado ruim. Naquele momento, eu imaginava que, vinte anos depois, olharia para o passado e teria orgulho do que vivera com eles. Achava que lembraria que estiveram comigo nos momentos mais importantes da vida. Bons e ruins. Isso me dava gás para suportar o que acontecia.
Até hoje os sucessos d’O Rappa são as minhas músicas, ainda que tudo seja menor agora. Não acredito na vingança como algo que vá me fazer bem. Isso não quer dizer que amanhã eu vá tomar uma cerveja com eles. Não sou otário. Só não posso deixar esse sentimento tomar uma dimensão insuportável. Minhas virtudes foram construídas pelas minhas fraquezas. Escrevo para me salvar, para suportar a vida.
“Me deixa” também foi feita nessa época tão difícil com O Rappa, quando eles resolveram não querer mais minhas músicas. E tudo isso se deu no Lado B Lado A, considerado por muitos o melhor disco da banda. A gente estava fazendo a pré-produção num estúdio e o Falcão nunca ia. Todos aqueles encontros se mostravam improdutivos: eles não levavam músicas, o vocalista não aparecia e a gente ficava tentando criar umas bases que jamais saíam. A banda aguentou assim durante meses, sem a presença do Falcão (e eu lá, indo trabalhar todos os dias).
Um dia, Samantha me ligou. O convite era para dar uma volta na praia, tomar um suco. Foi chegando a hora do ensaio, e ela pediu que eu continuasse com ela. Fiquei dividido. Na época, estava ouvindo muito uma música do UB40 do disco Rat in the Kitchen. Ela falava do cara que queria ficar com a mulher amada, mas que precisava trabalhar. Eu não tinha uma relação de homem e mulher com a Samantha, mas fiquei com a música na cabeça. Fomos tomar um último suco. Nessa hora, associei o fato de eu não ir para o ensaio com tudo o que você pode fazer quando é desobediente. Peguei esse gancho: às vezes, é preciso desobedecer – nem que seja a si mesmo.
Muitos autores falam que a ideia original de uma música era totalmente diferente da forma como o público a recebeu. “Me deixa” é um pouco isso. As pessoas têm um entendimento diferente da minha intenção. Naquele dia não fui ao ensaio e ao mesmo tempo entendi que não tinha coragem de dizer não para muitas coisas – que poderiam dar certo caso eu desobedecesse. As pessoas não percebem esse caráter da música. Gosto de criar certa ambivalência, até para permitir que as pessoas criem seus significados. Cada um tem a própria leitura. “Me deixa” é como um grito de liberdade. Vejo as pessoas cantando com um sentido bem amplo. Para mim, é cantar a possibilidade de fazer greve contra nós mesmos.
Mesmo com toda essa explosão criativa, eu tinha que matar um leão por dia. Era o tempo todo o cara tentando me minar. Na pré-produção, o Falcão nunca comparecia, mas cinco meses após os tiros me condenaram porque não fui sei lá aonde. Eu tinha acabado de tomar nove tiros, estava todo fodido, não sabia o que fazer da minha vida, numa puta depressão. Falcão, no melhor momento físico dele, para gravar o Lado B Lado A, não ia.
A opção mercadológica d’O Rappa foi uma questão de opinião do Falcão. Ele realmente queria ter mais público para ganhar mais dinheiro. Queria ser reconhecido na rua. Isso puxou todo mundo. Foi uma posição clara e, nesse sentido, ele foi honesto. O desejo de dinheiro não é pecado. Por outro lado, eu tinha a opinião do som e do que queria que fosse dito. Tinha isso cada vez mais claro na cabeça. Sabia o que era preciso fazer com o Lado B Lado A, então fui até a banda: “A importância deste disco é que a gente tem condições de defender um conceito!” Para mim, esse era o caminho natural de um artista numa época em que o acesso à informação não era tão fácil quanto é hoje. Fui até a banda e tive que peitar.
Eu achava que não dava para fazer com o Liminha, e o Lobato foi quem falou do Chico Neves. Quando conheci o Chico e o estúdio que ele estava montando, disse: “Caralho, é aqui.” O estúdio do cara é uma caverna, um quarto apertado, mas que faz um som do caralho. Não é o espaço, não é a grana, é um ponto de vista, é o fuçar, o cutucar. O Chico é um mestre.
Uma maneira clara de ver como esse disco é importante é que ele vem sendo replicado até hoje. O Rappa é hoje a maior banda cover de si mesma. Foi muito esforço para fazer o disco, e tem o meu legado. Um que também se esforçou para torná-lo possível foi o Lobato, musicalmente o mais digno, o mais preparado, mas que igualmente se deixou seduzir pela pequenez.
O que aconteceu comigo foi o seguinte: como eu não era protegido pela lei, eles me mandaram embora, mesmo sendo eu o responsável por boa parte do conceito, do sucesso d’O Rappa. Então só posso achar que houve maldade. A maldade é: “Como vou ganhar mais?” Os caras foram gananciosos e me tiraram. Em nenhuma outra empresa eu poderia ser mandado embora naquela situação, mas fui demitido da banda que criei.
Fui tirado da banda 50% por ganância e 50% por poder. Irônico, pois meu sucesso aconteceu justamente por me posicionar contra a ganância e o poder. Como as pessoas que cantam o que cantam, cantam o que escrevi, podem ter agido como agiram em uma situação tão difícil? É desumano, mesmo que não exista nenhuma amizade. Em um momento da reunião em que me colocaram para fora, falei assim: “Vamos tentar resolver isso, pelo menos, como amigos.” Xandão rebateu: “Quem disse que sou teu amigo?” Caralho, eu sou padrinho da filha dele! Uma semana antes eu tinha feito “Ninguém regula a América”. Ele me chamou para conversar e, com muita dificuldade, fui jantar na casa dele. Adoro a esposa do Xandão. Ele chegou para mim e falou: “O pessoal do Sepultura chiou com esse negócio de 50% da música ser sua pela letra.” Eu falei: “É por lei e fui eu que fiz, mas tá na boa e vamos dividir tudo igual.” Logo depois disso, na primeira oportunidade que o cara tem, me manda embora da banda. Eu assino papéis dividindo a música e me tiram. Ainda bem que, nas outras músicas, eu ganho pelas letras. Eu, na cadeira de rodas, chorando, gritando de dor, deprimido. O que aconteceu foi maldade!
Eles tomaram a decisão de me tirar da banda por eles mesmos, porque quiseram. Não foi pressão de gravadora para produzir disco novo nem nada. E, mesmo que tivesse existido pressão, a gente já tinha suportado outras. As pessoas que ficavam em volta da banda chegavam e falavam: “Vai ser legal quando você puder fazer uns shows, participar dos arranjos, estar com a banda cumprindo um papel.” Houve um show no Circo, e eles me receberam mal no camarim. Compareci à passagem de som, e ninguém me deu ideia. Na hora do show, Falcão, que nem me dirigiu a palavra no camarim, falou um monte no microfone: “Vou chamar um cara que é meu amigo e tal.” Fez aquela encenação, e a plateia foi ao delírio. Fui ovacionado e nem toquei, pois não tinha condições.
Na mesma época, o Nação Zumbi foi fazer um show no Canecão. Eles me convidaram para participar. Quando cheguei lá, estava no letreiro: “Nação Zumbi, participação especial Marcelo Yuka”. Foi uma coisa tão inesperada, tão carinhosa. Batemos uns tambores no palco e, no fim, eu e o Lúcio ficamos fazendo umas microfonias com os pedais da guitarra. Saí de lá achando que dava, autoestima lá em cima, otimista, motivado. Lembro também toda a movimentação que o Paralamas fez pelo Herbert. Será que eles não têm diferenças conceituais, ideológicas? Claro que têm. Mas, quando aconteceu o acidente do Herbert, uns três meses depois do meu, eles se fecharam. Até neurologicamente isso foi importante para a recuperação do Herbert ser humano, não necessariamente do músico. Isso me foi tirado!
Imagine a vida de alguém que leva nove tiros e fica aleijado. Eu não quero fazer um melodrama. Mas a história é um melodrama. É crucial. É radical. É determinante. E ali o determinante seria a dignidade, a hombridade, a ética, a amizade, o amor. Tudo isso eles não tiveram. E o pior é que, até hoje, eles não acham que erraram comigo.
Depois que fui saído, ainda ganhei por um ano como se estivesse na banda. Tiraram meu trabalho, mas achavam que, se eu estava ganhando ainda, devia estar tudo bem. Dinheiro nunca foi o mais importante para mim. Depois disso, fiquei com 2% da propriedade do nome O Rappa. À época, não tinha energia para lutar com um advogado. Havia tomado os tiros, ficado aleijado, na dor, e tinha sido expulso da banda. Fiquei sozinho: empresários ligados à banda, gente do mercado, muitos me falavam para deixar para lá e seguir em frente. Hoje não ganho mais nada d’O Rappa, apenas meus direitos autorais, coisa que a vida inteira eles tentaram me tirar. Da banda, não ganho nada. Graças a Deus! Também não tenho contato com nenhum deles, nem mesmo esbarro muito por aí. Sou bom em não ver fantasmas. Meu círculo social não se confunde com o deles, nem meu círculo financeiro. Eles são ricos, eu não.
Naquele período pós-tiros, escutei muita gente. Não consigo acreditar na história de que havia uma cobrança da gravadora por um novo disco. Amei muito o Tom Capone, que era o diretor artístico da Warner. Ele me incentivou, tentou muito que os caras estivessem comigo, mas eles nunca apareceram. Foi uma pessoa para quem me abri e que chorou comigo. Quando fui para o hospital em Brasília, ele foi junto, me dando força. Era um cara reconhecidamente generoso, do bem, querido. Mesmo que tivesse havido uma pressão da gravadora, foram várias durante toda a nossa carreira. Eu continuo tendo a mesma imagem do Tom.
Fui saído d’O Rappa e, cinco anos depois, montei o F.UR.T.O. Nesse meio-tempo, não fiz nada concreto. Tom Capone tinha me dado um Pro Tools, um programa para fazer minhas próprias mixagens, e eu fiquei enfurnado arranhando umas coisas, tentando ver como poderia me expressar musicalmente.
Por mais que o disco do F.UR.T.O. tenha sido ácido – e eu tinha direito a isso –, poderia ter sido até bem mais raivoso. Mas eu não queria. Tudo bem ser um disco pesado, mas esse peso vai ter uma função. Não pode ser um grito só meu: ele tem que servir. O que atrapalhou a coisa do F.UR.T.O. foi que se criou uma expectativa de que poderia rivalizar com O Rappa. É um disco de que gosto muito, mas a banda teria que cumprir um tempo de maturação que não aconteceria num primeiro disco. A outra complicação é que não era mais só eu. Éramos eu – um deficiente de 1,90 metro e 100 quilos – e, pelo menos, um enfermeiro. Não era fácil entrar no ônibus, subir no palco.
De qualquer forma, sobrevivi por causa daquele disco, que me mostrou que eu podia me expressar musicalmente de novo. Todas as pessoas envolvidas eram talentosas, legais para caramba. Jam da Silva tem uma carreira maravilhosa. Maurício Pacheco tem o Stereo Maracanã, toca com uma galera e é apresentador de programa na TV. Garnizé é excelente percussionista, um dos maiores que há, e hoje está no Abayomi.
A banda não foi além porque, principalmente, a gente não tinha infraestrutura para aguentar. Todo mundo dependia daquele trabalho para sobreviver. Uma vez que foi demorando, cada um teve que tentar outras coisas. O término do F.UR.T.O. não doeu tanto. Não foi uma questão de caráter, de falta de humanidade. Foi mais circunstancial. Eu gostaria de fazer um disco de novo com eles. Aquele é o disco em que estão as minhas melhores poesias. Ao menos até agora.
Lembrar O Rappa me deixa amargo, o que não gosto. Ao mesmo tempo, mesmo a distância, ainda amo muito a filha do Xandão, por exemplo. Um dia vou me libertar desses sentimentos, tenham eles feito o que fizeram ou venham ainda a fazer algo. Não queria que nossa história chegasse a isso. Queria ainda estar acompanhando a vida dos filhos deles, com quem convivi. É a vida! E a vida vale mais que a arte. Sinto falta das piadas, de quando a gente conseguia levantar um show que começara ruim. Muitas vezes, tive a crença de que éramos um corpo só, um corpo com a banda e com a equipe técnica. Tentei levar uma certa ingenuidade familiar a todos que estavam ali. Talvez tenha conseguido por um período, talvez não. Pelo que ouvi dizer, parece que hoje eles não dividem o mesmo camarim antes dos shows nem compartilham a mesma van.
Gostaria de falar de mais algum legado bom que tenha ficado para todos nós. Ao observar o trabalho deles, o caminho que trilharam, não me vejo fazendo parte. Acho que eu acabaria saindo da banda, mas essa decisão deveria ter se dado de outra forma – com mais consenso e mais carinho. O que me dói não é o fato de não estar mais lá, mas a forma como tudo aconteceu.