Do dia fatídico, depois que os tiros começaram, eu não lembro mais nada. Eu me via explodindo de dentro para fora. A última coisa de que me recordo foi que engatei a ré e deitei. Depois, o braço explodindo. Quando acabou, o carro estava batido em uma árvore. Ele subiu um pouco na calçada quando fui dando ré. Cheguei a tentar puxar o volante, mas senti que meu corpo não tinha mais equilíbrio. Naquela hora, veio um entendimento claro: fiquei aleijado. Desde aquele momento, eu já sabia. Até me senti perto da morte, mas tinha certeza de que não ia morrer. Eu, lúcido, disse à primeira pessoa que se aproximou do carro que tudo tinha acabado para mim. Sabia que não ia morrer, mas a minha vida seria outra, me veio um racionalismo dramático e cruel.
Fui alvejado por dois tipos de munições ilegais que me fizeram, literalmente, estourar por dentro: a dundum, que explode, e a hollow point, que entra como se fosse uma broca. Foi essa a sensação exata, nada metafórica. Foram tiros no braço, no ombro, na coluna, embaixo do braço, perto do pescoço e dois na parte inferior da coluna. Esses foram os que me lesaram mesmo e me deixaram aleijado.
De repente, fiquei completamente lúcido. Muito mais do que podia ver em mim, via nos olhos das pessoas. “O cara está muito fodido”, diziam em cochichos. Um médico chegou lá na hora. Provavelmente estava em casa, por perto, e veio acudir. Havia também uma menina enfermeira. Era muita gente e eu notava que essas pessoas viam a morte em mim. O incrível foi que isso não me pegou em momento nenhum. Tinha certeza de que não corria perigo de vida.
Nessa hora me veio Deus, mas em forma de música. E seu interlocutor se chama Jorge Ben Jor. No momento do desespero, descobri que não sabia nenhuma reza. Por mais que tivesse sido criado como católico, estudado toda a coisa da cultura negra, eu não encontrava dentro de mim nem uma frase sequer. Nunca aprendi. De repente, me veio “Jorge da Capadócia”: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge...” Essa música me salvou várias vezes, porque a necessidade de verbalizar um pedido místico de socorro veio na forma da canção.
Quando tentei me equilibrar de novo, segurando o volante, meu corpo já não estava mais ali. Meu braço parecia solto, caído, mole. Como o osso havia se rompido, os músculos e tendões não suportavam o peso. Meu braço estava dilacerado, tive que catá-lo e colocá-lo apoiado no colo. Estava fazendo a maior força e ouvia os tiros reverberando: “Pouuuuuu! Pouuuuuu!” A situação acontecia muito mais rápido do que eu conseguia processar. Veio o som do último estalo: “Pouuuuuu!” Me esforçava para permanecer acordado e lúcido.
Eu conservava intacta a certeza de que ficaria vivo, mas também tinha a clara noção de que estava aleijado. Aí, infelizmente, me veio a cara do Falcão e tudo aquilo de ruim que ele representava para mim. O destino conspirou contra mim e a favor dele. Ele conseguiu me tirar da banda, foi um conspirador astral. O curioso é que poucas pessoas no mundo me admiraram mais que ele. Ainda hoje, sou uma grande influência em sua vida. Ninguém fez mais a cabeça dele do que eu.
No instante seguinte a esse pensamento, me entreguei. Eu havia ficado paraplégico e não ia morrer. Eu não pertencia à morte. Não parecia que eu ficaria bem – pelo contrário. Então de onde vinha tamanha certeza? Foi essa segurança da vida, naquele momento, que me salvou. Era muito mais que uma certeza física, apesar da falta de lógica. Não provinha da minha intelectualidade nem do meu poder de raciocínio. O fato é que a certeza estava em mim.
Talvez tenha sido o momento mais espiritual da minha vida, como morrer para ressuscitar. Eu estava trocando de couro, deixando a casa do caramujo. Não sabia se ia virar uma borboleta, mas estava virando outra coisa. Todas essas mudanças que a natureza impõe devem doer da mesma maneira: a dor de virar outro. Se a borboleta pudesse dizer... Ela não sabe que vai virar borboleta quando está virando. É uma morte, porque é o fim. Na mitologia negra, o Exu tem isso. Uma coisa muito bonita. Pena que o Ocidente e o cristianismo aprenderam a tratar o Exu como se fosse o demônio. Mas não se trata disso. Exu é um orixá que representa o fim, porque ele é a coisa mais bela de todas: o começo.
Eu vivia o desafio de começar de novo, via a pedra no caminho para aprender que a topada machuca. Precisei passar por aquilo. Só hoje entendo aquele momento como o encontro com o Exu positivo: eu tinha a certeza da vida. Entre o casulo, a lagarta e a borboleta, nada me dizia que eu ia ter asas, mas algo me dizia que eu ia continuar. Se todos aqueles que estão perto da morte pudessem ter essa certeza... A gente seria como o mais bonito dos pajés, o mais abençoado dos lamas, porque poderíamos dizer para nós mesmos: “Vai doer, vai doer para caralho. Mas não é o fim.”
Por outro lado, a certeza da vida era agonizante. Eu sabia que a pedreira seria muito maior. A sorte é que a gente só vai se deparando com as batalhas aos poucos, no dia a dia. No decorrer da vida é que nos deparamos com os “isso eu não posso mais, fazer xixi agora é assim, trepar é assado, preciso das pessoas”. Se não tivesse sido dessa forma, aos poucos, eu não teria experimentado o sentimento pleno de insistir na vida.
Com a idade avançando, sinto que posso me relacionar melhor com minha própria finitude. Em alguns enterros, é comum que eu abra o berreiro. Choro para caralho. Foi assim no do Waly Salomão, como já contei, e também no do Tom Capone – dois grandes amigos. Não chorei de saudade, mas de gratidão. Não consigo lidar bem com a dor da perda.
Depois do acidente, a principal sensação era a da ruptura com Deus. Mais de dez anos depois, refletindo, me dou conta de que estava impregnado dele ali. Tudo para mim representa Deus: amor, bondade, compaixão. Muitas vezes esse sentimento não depende de dizer que se está com ou sem ele. Os nove tiros e todas as perdas decorrentes da deficiência motora criaram um vácuo e estabeleceram uma ruptura temporária com Deus no momento em que mais precisava dele.
O encontro com Deus se dá, na maioria das vezes, pela dor. Meu percurso foi inverso. Eu tinha muita fé: a Igreja dos Capuchinhos, no bairro da Tijuca, perto da minha casa, era o meu templo. Toda vez que o padre começava a missa, eu ia embora. O padre atrapalhava: eu queria o silêncio. As imagens também, todas associadas a sofrimento. Para completar, o som desses lugares é muito ruim.
Sempre gostei dessa ideia dos capuchinhos, de São Francisco, muitas vezes malvista pela própria Igreja por ser considerada comunista demais, de muito desapego. Mas a Igreja nunca atrapalhou a minha fé, que não é dogmática nem “dogmatizável”. Eu posso estudar, respeitar, amar o cristianismo como cultura, como filosofia, não como dogma. Isso dificultou minha vida a cada segundo depois que acordei. O processo do pós-acidente é quase um post mortem.
Eu estava ferido dentro do carro e havia um compreensível caos do lado de fora. Uma menina foi me socorrer e eu tentei segurar a mão dela. Depois de alguns minutos, chegaram polícia e ambulância, e eu o tempo todo lúcido, sem chorar, sem indignação, sereno. A serenidade não vinha da calma. Eu estava em choque, era químico. Já nem sentia mais dor, ou talvez sentisse demais. Hoje não há um só momento em que não sinta dor no corpo todo. A exceção é quando faço sexo – segundo os médicos, isso acontece porque a mente está focada em outra coisa.
Eu tinha uma noção de tempo antes dos tiros e passei a ter outra depois. Um segundo, para mim, pode parecer uma hora ou o maior tempo perdido de uma vida toda. Eu já tive segundos, minutos, depois disso, que se tornaram uma eternidade impossível de descartar da minha alma. Até o socorro chegar, vivi um desses momentos. Quando entrei na ambulância, ela já tinha o perfil asséptico do hospital. Era fria, vermelha por fora e toda branca por dentro. Eu estava perdendo muito sangue. Comecei a sentir frio. Estávamos eu, o enfermeiro – um negão grandão de pé – e uma tenente. Eu tentei pegar a mão dela, mas ela tirou: “Eu não sou paga para sentir pena de você. Sou paga para te socorrer.” Naquele instante, tive certeza de que minha vida tinha mudado. O fato de ter tomado os tiros e ficado aleijado não era o que eu ia viver de mais cruel. O mais cruel era esse encontro com a dureza humana, já minutos depois do acidente. Nunca morri de amores pela figura do Cazuza, mas gosto muito daquela frase “Eu vou sobrevivendo (...) da caridade de quem me detesta”. Isso me dói.
Sei que tenho que procurar entender o limite do outro. Mas é inevitável pensar: estou no pior da minha condição e ele não faz nem isso por mim? Talvez ele possa fazer outra coisa. Talvez não possa, ou não queira. Tive que aprender a lidar com isso. E ver que é necessário, porque as pessoas criam esse comportamento como uma defesa.
Quando vou à cadeia realizar trabalho social, não estou sustentando um papel, um mito. Não tenho obrigação de estar ali. Eu me sinto apenas orgulhoso pela possibilidade de amor. E penso como posso dar – ou ao menos tentar dar – o meu melhor para um preso que nunca vi. O amor maior, o consanguíneo, também não se expressa como esperamos. Ele é o mais fácil de se cansar e se mostrar intolerante, justamente por ser tão íntimo, intenso, genuíno e verdadeiro. Foi a partir desse tipo de reflexão que passei a lidar melhor com o comportamento das pessoas.