A caminho do Hospital do Andaraí, no interior da ambulância, nada era pior do que a sensação provocada pelos muitos buracos e desníveis por onde o carro passava. Tudo em meio ao ruído da sirene e à preocupação com o meu braço – lembro-me de pensar que ele parecia enorme, além de separado do meu corpo. Na hora, a adrenalina estava tão lá em cima que a dor ainda era suportável, mesmo passando por todos os buracos do Rio de Janeiro. Dor de verdade eu iria sentir depois.
A correria foi tremenda quando chegamos ao hospital e a porta da ambulância se abriu. Havia uma escada na entrada e um médico me recebeu. Entrei e me mandaram direto para a radiologia. Eles precisavam saber o que se passava dentro de mim. O médico deu as orientações, mas o operador da radiologia, na maior calma, simplesmente sentou e me deixou “na pedra”. Por minha própria conta, resolvi poupar ar. Já que tinha levado um tiro no pulmão, sentia que tinha que usar pouco ar. Fiquei calado, quietinho.
De repente o médico voltou, perguntando para o cara: “Fez o procedimento?” E o sujeito: “Doutor, olha a quantidade de tiros que ele levou, olha como ele está vestido. Isso é bandido, doutor!” “E daí, rapaz? Pedi para você fazer.” E o cara argumentando: “Olha, doutor, lá fora tem tanta gente precisando. Deixa esse aí e traz outro.” Por fim o médico lhe deu um puta esporro e o cara fez o que tinha de ser feito.
Aquilo salvou a minha vida. Quando saí da radiologia, eu já era o Yuka, músico famoso que foi baleado. Tudo mudou! Havia um grande falatório, fotógrafos e tudo mais. Eu ouvia os cochichos dos funcionários. Quando você está vitimado dessa maneira, os sentidos ficam aguçados. Estava numa situação em que precisava mesmo de ajuda. O médico podia entrar na sala e não falar nada, mas, pelo gestual, eu sabia se devia temer ou confiar. Lia a expressão facial muito rápido para definir o que esperar dele ou do enfermeiro.
Quando fui para a Casa de Saúde São José, botaram um cara grande para ser meu enfermeiro. Só um cara grande para me virar e dar banho no leito. Um dia ele entrou com o jornal, com as fotos, me mostrou tudo. Todo mundo tinha o cuidado de não me remeter ao acidente. Ele, não. Pegou o jornal e me falou assim: “Incrível, Marcelo. Minha mulher se amarra n’O Rappa. Eu não gosto. Ela ia sozinha aos shows e eu ficava com o maior ciúme. E agora você tá aqui na minha mão, né?” O comentário parecia carregado de uma dose de crueldade. O cara dizia aquilo e eu com aqueles ferros para fora do braço. Eu parecia carne de churrasco, todo espetado. E sentia dor para caralho.
Estava totalmente nas mãos dos médicos e enfermeiros. O corpo parou de funcionar em razão do que chamam “choque medular”. Eu usava fralda! Não controlava nada.
Ainda no Andaraí, depois do episódio da radiologia, passei a ficar ligado. Meu pai veio falar comigo. Era a primeira pessoa conhecida. Quando chegou, levantei a mão e disse: “Está tudo bem.” Ele chegou perto e pareceu mais tranquilo ao me ver. Depois entraram um rapaz que fazia a segurança para a gente n’O Rappa e outros policiais, que vieram dizer no meu ouvido: “Eles vão cair todos; vamos matar um por um.” Tomei um susto, me senti como a peça do dominó que é empurrada e leva com ela todas as outras – um ato de violência vai levando a outro, depois a outro, a outro...
No hospital, eles me contavam: “Pegamos um.” Eu ficava chocado. Não queria nada daquilo e isso só ia piorando a minha situação. “Caralho, o negócio continua, tá ecoando.” Tinha que parar. Até porque entendi bem cedo que, se alimentasse rancor, iria carregar um peso ainda maior que o meu estado físico. Eu não queria ficar amargo. Nem me ocorria pensar em vingança. Cheguei a pedir a esse segurança para me dar um tiro e acabar com tudo. Mesmo que pegassem todos, não me fariam andar de novo.
Ele não atendeu meu pedido, e eu decidi seguir em frente. Tinha que pensar no meu restabelecimento, em como ter minha vida de volta. Essa era a preocupação. Não queria nem quero saber dos caras. Nunca me liguei no que aconteceu com os bandidos ou quis saber quem eram. Sei apenas do que foi alvejado na rua e depois foi encontrado morto na mala de um carro. Tentou fugir e morreu.
Houve uma vez que fui a Vigário Geral levar uns móveis para um funcionário que trabalhava na minha casa. Tempos depois, ele contou ter recebido ordens para não me levar mais lá. Os caras que me atacaram eram de Vigário. Fui convidado, anos mais tarde, para comparecer à sede de uma ONG que fazia um trabalho na comunidade. Eles queriam me prestar uma homenagem. Respondi: “Não posso ir.” André, que era “dono” da favela, falou: “Ele tem que vir. Dou garantia total.”
É preciso entender que há negócios diferentes dentro do crime. Tem a galera do tráfico, que é diferente da galera que rouba carros, que é diferente da galera de sequestro. Não é a mesma firma. Fui com o Jam da Silva, meu amigo do F.UR.T.O. Ele dirigia e, como não conhecia os códigos locais, que são apagar os faróis e acender a luz interna, entrou direto. Veio bandido de tudo quanto é lado. Eu gritei: “Abaixa a luz do farol!” Os caras vieram, me reconheceram e eu falei que o André havia me convidado. Quando entrei no palco para a homenagem, estouraram vários fogos de artifício. Eu era homenageado na favela onde viviam os caras que me deixaram paraplégico. Mas nunca estive com nenhum deles – ao menos não que eu saiba.
Tive outros problemas com bandidos. Tudo leva a crer que um deles, o Gargamel, tenha participado da ação da qual fui vítima. Esse cara ameaçou invadir a minha casa. Ele era vizinho de um homem que trabalhava comigo, que foi ficando esquisito até que um dia me contou. Falei para ele: “Continua com a sua vida normal. Sai para trabalhar e volta.” Depois de um tempo, os caras começaram a tentar coagi-lo a deixar a porta da minha casa aberta para que pudessem entrar.
Fui até o Luiz Eduardo Soares, à época secretário de Segurança. Os policiais da área de inteligência que passaram a acompanhar o caso levantaram a hipótese de atentado. Do ponto de vista deles, o que eu sofri não foi uma tentativa de assalto. Atentado se dá quando, sem motivo aparente, disparam uns tantos projéteis em uma pessoa. Eles falavam: “Tu não reagiu, não atentou contra os caras. Como é que o cara dispara tanta coisa em você?”
Eu não sei quem fez isso comigo, nem o porquê. Sei de dois irmãos que estão presos e esse Gargamel, que também já esteve na cadeia. Teimo em acreditar que eu só estava na hora errada no lugar errado. Não acho que tenha sido premeditado. Depois, sim, o tal Gargamel quis entrar na minha casa para assaltar. Ladrão é assim: um jornalista fica pensando em pautas; um médico, nos seus pacientes; e o ladrão, em assaltar.
Zaccone sustenta a tese de que o segurança da rua, um policial fazendo um bico, viu os caras parando o carro. Ele estava bem atrás de mim. Eu fiquei no meio, entre ele e os bandidos. Ao perceber que estaria diante de um assalto, atirou. Os caras devem ter pensado que tinha sido eu, do meu carro, e sentaram o dedo. O tal bandido encontrado morto no carro deles deve ter levado um tiro desse segurança. O cara veio para me matar, e o segurança o acertou.
O Hospital do Andaraí, para onde fui levado após os tiros, está localizado quase dentro da favela, que estava em conflito. Ali eles estão habituados a extrair balas, o que foi bom para mim. Mas o fato de eu ser artista mexeu com a vaidade de todo mundo. Eu era ajudado por pessoas que começaram a pensar que poderiam tirar mais de mim. Começaram a querer visibilidade.
Minha psiquiatra à época, Ana Beatriz Silva, pessoa muito bem-humorada e centrada, hoje autora famosa, se desesperou em dado momento porque eles não deixavam que eu fosse embora. Ela falou para a minha família: “Ponham ele num helicóptero e levem para um hospital particular.” A equipe médica gerenciava o que seria feito comigo. Aparentemente havia outros interesses além de simplesmente me ajudar. Minha mãe fechou com a Ana Beatriz, mas meu pai e meu irmão fecharam com a equipe.
Passei uns quatro ou cinco dias ali e fui para a São José. Acho que fiquei uns 20 dias por lá, ou mais um pouco: pareceu uma eternidade. Maíra permanecia comigo dia e noite. Eu dormia, acordava e era a mão dela que tinha para segurar. Meus pais, parentes e amigos fizeram novena, muita gente em volta, e isso foi maravilhoso, mas Maíra era o meu esteio. Meu esteio emocional estava em uma garota de menos de 20 anos. Eu entrei com uma garotinha no hospital e, quando acordei, ela era uma mulher que tomava decisões. Ríspida, firme, séria. Nunca a vi chorar.
A dor no braço se tornava insuportável. Eles foram aumentando a carga de morfina, até que tive uma overdose. Vivi três dias que foram os piores momentos na internação. Perdi a única coisa que vinha funcionando bem: a mente. Aquele estado me tomou por completo – o barulho do ar-condicionado pingando, por exemplo, parecia compor um filme de terror. Até bem pouco tempo, se houvesse um ar-condicionado pingando, eu chorava. A única coisa engraçada nesse período é que você sonha acordado. Eram delírios. Se eu estivesse com alguém, ficava na dúvida se estava mesmo ou se era imaginação. A única coisa real para mim era a Maíra.
À noite, quando o corpo vai entrando em outro estado bioquímico, a morfina e os efeitos colaterais vêm mais à tona. Assim, quando a noite se aproximava, um dragão aparecia e gritava na minha cara. Eu pedia socorro: “O dragão! O dragão!” Tentava controlar meus delírios, mas passava a mão onde estava vendo o dragão e sentia as escamas. Maíra tentava me controlar, mas a visão era muito real. Eu atravessava as noites urrando de dor em meio a pesadelos e delírios.
Num outro momento, vi uma loura sentada do lado de fora da janela. Ela flutuava e me encarava sem parar. Havia também um velho. Foram muitos os personagens que, de alguma forma, habitaram aquele quarto de hospital. Cheguei a achar que tinha sido capturado pelo DJ Memê. Todos aqueles personagens trabalhavam para o Memê. E eles queriam entrar no meu cérebro. “Se ele quer fazer isso comigo, que faça, mas por que pegou a Maíra?”, eu viajava. Encontrei o Memê na livraria Letras & Expressões uns dias antes dos tiros, e ele se tornou protagonista da minha alucinação.
Não saquei na hora, mas depois ficou comprovado que aquilo se deveu a uma overdose de morfina. Eu não tinha força para nada. Minha cabeça, por exemplo, precisava ficar escorada. Esses três dias foram de terror absoluto e deixaram uma sequela dentro de mim. Anos depois, meu pai narrou o que aconteceu, e eu chorei compulsivamente. Aquela sensação de torpor mental jamais vai me deixar. Nem a sensação nem os rostos daquelas pessoas, daqueles enfermeiros. A toda hora eu clamava por médicos e enfermeiros. Seis meses depois, ainda estava com grau dez de dor no braço. É fácil imaginar como me sentia naquele quarto.
O hospital me mandou um psicólogo, uma pessoa que eu nunca tinha visto. Eles não me permitiram ser tratado pela minha própria psiquiatra, a quem adorava. O psicólogo foi logo perguntando: “Por que você tem problemas com o seu pai?” Minha vida derrapava e eu era obrigado a escutar aquilo. Eu não tinha escolha. Minha vontade estava cerceada, e minha integridade de cidadão, cassada: “Eu não quero essa pessoa aqui!” E nem era com eles... Fechavam a porta e ficávamos só eu e o cara – ele perguntando e eu apenas chorando: “Meu Deus, ninguém me ouve.” Uma sensação de solidão absurda. Quando fui para o Sarah Kubitschek, em Brasília, me mandaram uma garota jovem. Eu perguntei tantas coisas para ela, falei tanto de mim que uma hora ela se emocionou e chorou. Não tinha como ser minha terapeuta.