Na Casa de Saúde São José, as pessoas dirigiam minha vida por mim, o que significou mais uma queda. Meu pai planejava vender a minha casa porque entendia que ela não servia para mim. E eu não queria ir para outro lugar. Foda-se que minha casa tinha, e ainda tenha, uma porrada de degraus – eu que me adaptasse a isso. Cada plantinha fui eu que trouxe de um lugar, troquei os azulejos da piscina, fiz a varandinha. Não rolava me mudar. Eu já tinha perdido tudo, não era correto perder também o livre-arbítrio.Tive que lutar para ter as rédeas da minha vida de volta. A luta maior, de qualquer forma, era pela sobrevivência. Seguia apegado à vida, querendo me manter vivo, mas também desejando a morte. Pensava na morte o tempo todo.
Um pouco depois passei a planejar a morte, que é um estágio mais doentio. Você quer, depois planeja e, por fim, executa. Graças a Deus não tive coragem. Em meio aos pensamentos mais sombrios, volta e meia minha mãe chegava para mim e falava: “Tudo bem, meu filho?” E eu respondia: “Tudo.” Ou então a Maíra vinha e me dava um beijo, e eu voltava a mim e abandonava as fantasias de morte.
Por mais que lutasse pela vida, uma coisa básica eu perdia a cada dia: a esperança. Fui para o CTI e por lá fui ficando. Saía do quarto para uma cirurgia e depois voltava. E foram muitas cirurgias. Antes de uma dessas pedi que o meu pai e a Maíra me esperassem no quarto. Queria-os lá na hora que eu saísse. Depois das cirurgias, acordava e só podia beber água pingada na boca por uma gaze. No CTI, ficavam todos os pacientes com aquele negócio que apita no dedinho para medir os batimentos cardíacos. Quando acordava, havia sempre um “piiiiii” prolongado avisando que alguém tinha morrido. E eu ali.
Precisava da tal gotinha de água, mas o enfermeiro estava sempre conversando com outro e não percebia meu chamado, eu com a maior sede do mundo, e me batia a sensação de desamparo. Às seis horas da manhã eu ia sair dali. Estava ansioso para voltar para o quarto, onde, ao menos, me aguardava um som com a coleção completa do Jorge Ben Jor. Meus primos também tinham levado Os Irmãos Marx em DVD. Olhava o relógio e o tempo não passava. Quando chegou a hora, a enfermeira informou: “Seus pais não estão aqui. Não tem ninguém. Você não pode ir para o quarto sem um responsável.”
Fiquei enlouquecido. O tempo passando... e nada. Pensava assim: “Vou fazer uma maldade com esses caras, eles não têm ideia do que estou passando.” Elaborei uma historinha na cabeça: “Eles foram para casa, estão lá na boa e eu aqui fodidaço, se esqueceram de mim! Maíra, filha da puta! Meu pai, desgraçado!” Eles só chegaram às dez horas. Saí do CTI chorando e eles, assustados: “O que houve?” Eu só chorava, até que consegui perguntar: “O que aconteceu que vocês não vieram? Estou esperando há quatro horas.”
Uma greve de táxis havia engarrafado a cidade inteira. Eu jamais me recuperei desse sentimento de abandono. Mas, no exato instante que chegaram, toda a raiva passou. Só queria um abraço e ficar com eles para sempre. Eu já era um grande colecionador de pânicos e agora havia mais uma peça para a coleção: a solidão.
Na São José, o Mará, um amigo maravilhoso, se fez muito presente. Foi um dos primeiros a me ver. Eu me lembro que desandei a chorar logo que ele entrou no quarto. Só consegui falar: “Ainda bem que tu veio.” Ele chegou bem perto de mim, abriu a braguilha, pôs o pau para fora e o colocou na minha mão. E eu, estupefato: “O que é isso, cara?” E ele: “Tu já tá todo fodido, tá morrendo mesmo, dá uma pegadinha no meu pau para eu falar para todo mundo que o Marcelo Yuka, antes de morrer, pegou no meu pau.” Eu quis morrer de rir com a cena! Esse cara depois foi para Brasília e ficou lá comigo no Sarah Kubitschek. Desde a primeira visita, ele sentiu que o que podia me oferecer eram boas risadas.
Quando voltei para casa, meu desejo era ouvir música e ver filmes. Lá me dei conta de que essa cultura da violência está muito enraizada na gente. Eu não queria ver tiro, mas, quando se assiste a uma comédia, a um romance, não importa, há sempre um tiro. O tiro faz parte do cinema, principalmente do norte-americano. Por isso, eu quase não tinha o que ver. Mergulhei na música. Havia uma parede de CDs no quarto, mas não conseguia mais ter acesso a eles. Era ridículo: eu usava um binóculo para ver os títulos.
Passei um mês saindo de casa apenas para fazer exames. Eu, que sempre gostei de ir para a rua, me vi na prisão. As brigas familiares eram muitas, e eu naquela condição. Todo mundo nervoso, preocupado, tenso. O desespero de todas as questões práticas. Toda a grana que eu tinha juntado se foi rapidamente. Em um mês, gastei 170 mil reais. Os médicos me venderam um homecare, mesmo eu tendo direito ao tratamento pelo plano de saúde. Pagamos horrores.
Quando sonho, sonho que estou andando. Inconscientemente, ainda sou um andante. Sigo achando que posso ter a mesma habilidade e agilidade de antes, que posso estar em 20 minutos no Aeroporto Santos Dumont. Não é mais assim. É uma relação de tempo errada.
Nas primeiras semanas na São José, as pessoas que me cercavam mantinham alguma expectativa de que eu pudesse voltar a andar. Eu era sempre mais cético, mas permitindo que a esperança não fosse embora completamente. Até que uma fisioterapeuta chegou para mim e falou chorando: “Não acredita nisso, não. Você nunca mais vai andar.” Foi uma bordoada, mas àquela altura era só mais uma. Fazia parte da queda diária. Todos os dias eram preenchidos por notícias ruins e revelavam uma nova impossibilidade perpétua. É um tombo longo. Fui caindo durante anos.
Antes dos tiros, eu nadava, fazia travessia e corria. Não sei se tinha tanta condição física, mas a condição psicológica era muito grande. E era sempre em reta: vou daqui até lá. Tenho que ter um ponto visual. Na Estrada das Paineiras, me fodia com tanta curva. Eu me desconcentrava, cansava, parava rápido. Esse lugar me lembra o Skunk, vocalista e criador do Planet Hemp. Um dia ele me ligou e fomos correr lá. Começamos, mas ele não conseguia seguir em frente – tossia sem parar. Já estava doente, e eu não sabia: pneumonia em decorrência da aids. Mais tarde, o quadro se agravou e eu fui interná-lo. Tive que dizer que era pneumonia – as pessoas não queriam internar um cara com aids. Ele faleceu logo depois. Eu estava entrando no estúdio para gravar e minha mãe ligou contando. Só depois do que passei me dei conta de que aquele desejo de correr comigo era uma forma de insistir em se manter vivo. A imagem que fazia de mim, mesmo naquele ponto da vida, era a de alguém que corria numa estrada cheia de curvas, tipo a das Paineiras. Não conseguia ver o ponto final, a linha de chegada. Eu estava numa grande corrida desgovernada – ladeira abaixo.