Nesses anos todos, escutei dezenas de médicos e pesquisadores. Um pelo qual passei foi o Dr. Paulo Niemeyer. Ele fez uma bateria de exames e viu que eu tinha como ganhar muito se tivesse uma fisioterapia adequada. O Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, é uma referência. Ele me mandou para lá. Eu estava ainda muito revoltado, desnorteado. Não só com o fato de ter ficado cadeirante, mas também pelo que tinha passado nos hospitais. A equipe médica que me tirou as balas foi muito eficaz nisso, mas não concordei com o fato de terem assumido o controle da minha vida. Além disso, depois colocaram uma placa de platina por cima do nervo que me causava dor grau dez o tempo todo. E eu ficava a maior parte do tempo gritando de dor. Fui para o Sarah e, quando cheguei lá, um piloto da Aeronáutica me reconheceu e disse: “Você está indo para o Sarah? Fiquei lá um tempão e agora estou em pé de novo!” Ele tinha tomado um tiro. Isso me deu ânimo.
Foi uma galera comigo: meu pai, minha mãe e o namorado dela, e também a Janine, uma menina que conheci ainda na época da São José, o Mará e a Ana Beatriz, que foi e voltou no mesmo dia. Cheguei ao hospital e fui recebido por uma junta médica chefiada pelo patrono daquela instituição, o Dr. Campos da Paz. Receberam meus exames e pediram uns cinco minutos para se reunir. Os cinco minutos se passaram, Campos da Paz retornou e me comunicou: “Eu tenho uma boa notícia. Você vai voltar a tocar bateria.” Minha família toda vibrou; eu não levei fé. Inteligência emocional. Falei: “Doutor, você sabe que bateria se toca com as pernas?” E ele, calmamente: “Sei. Vou pedir para o meu corpo de engenharia fazer uma para você tocar só com as mãos.” Meu pai entendeu na hora o que ele queria dizer: “Você quer dizer que ele não vai voltar a andar?” “De um ponto ao outro, o sujeito pode ir de carro, de moto, bicicleta, barco, a pé, ou de cadeira de rodas, que é o caso do seu filho.” Todos ficaram chocados. Ainda tinham aquela esperança. E ele foi mais fundo: “Pode acontecer com ele o efeito Lars Grael.” Eu fiquei curioso. “O Lars Grael trouxe várias medalhas para o Brasil e muitas pessoas não sabiam quem ele era. Quando a lancha passou por cima dele, muita gente passou a conhecer. Eu mesmo nem conhecia você e agora conheço. Você está famoso!”
A maneira de tratar o assunto foi outra bala. Fiquei totalmente desolado. Não tinha expectativa de voltar a andar nem nada, mas quando vieram as histórias da bateria ou da fama provocada pelo que aconteceu comigo e com o Lars Grael...
Depois daquele diagnóstico, achava que não tinha mais nada a fazer em Brasília. Mesmo assim, me convenceram a ficar para melhorar meu braço. Comecei a fisioterapia, e a dor não passava. Foram dias e dias – e nada. Até que chamaram um especialista que propôs a utilização de uma bomba injetora de morfina. Eu, que vinha de uma overdose de morfina, me recusei a embarcar nessa. Começaram a sugerir cortar um pedaço do braço e emendar. Fiquei lá quase um mês. Tom Capone foi me visitar por uns dias. Cheguei a sair à noite, me encontrei com o pessoal do Natiruts num bar.
Fiquei em Brasília fazendo exames, fisioterapia, aprendendo como seria a minha vida como cadeirante. Sofri muito porque queria estar perto da Ana Beatriz. Eu tinha que acreditar que algo ia melhorar. Pegava sol ao lado de um cara que estava esperando para ser amputado. Cheguei e falei: “Será que não tem como você melhorar sem amputar?” E o cara: “Na boa, estou doido para cortar logo e ir embora para minha casa.”
Novamente, havia também a questão da psicologia. Essa coisa de você ser forçado a ter um encontro com o psicólogo não pode funcionar, até porque eu tinha uma psiquiatra com quem fazia isso e que era essencial para mim. Não queria começar o processo com outra pessoa.
No dia em que os caras falaram em cortar o braço, convoquei uma reunião e falei: “Não dá, isso não vai rolar. Pelo menos temos que ouvir outra opinião.” Liguei para a Ana Beatriz: “Foge, larga tudo e vem embora.” Na mesma noite a gente comprou a passagem.
Estava tudo decidido, até que meu pai resolveu ter uma última conversa com os médicos. Mandei o Mará junto, como observador. Como eu previa, meu pai já estava se deixando levar. Eu não podia aceitar aquilo! Tinha que ir embora! Se é para meter o pé, não tem que ouvir mais nada. Chega. Tchau, Sarah!
Nessas situações-limite, você passa a duvidar dos médicos. A sua família fica um pouco perdida, você está perdido e se pergunta onde se segurar. Eu tinha acabado de ficar aleijado, com uma dor do caralho no braço, aprendendo a fazer xixi na mangueirinha. Queria acreditar em tudo, mas comecei a perder as crenças que tinha.
Eu vivia morrendo de dor. Por mais que tentasse buscar um universo diferente daquele do hospital, não conseguia me desvencilhar. Tomava um remédio, alguma coisa para aguentar, e, meia hora depois, estava de novo louco de dor. Lembro que doía sentir o vento batendo nos pelos do meu braço.
Ana Beatriz encontrou um microcirurgião no Rio. Ele disse que teria de abrir meu braço para ver, mas não o cortaria. Ela armou tudo, e ele ainda negociou um preço que eu podia pagar. Ana acha que Deus errou comigo. Por isso decidiu pesquisar células-tronco. Entendo que se trata apenas de uma busca. Não é sequer uma esperança. O estudo desse recurso não é uma coisa para mim, mas para as novas gerações. De todo modo, se não nos oferecermos, se não continuarmos nessa luta, vamos perder o trem da ciência e podemos ficar à margem da história. Temos grandes cientistas, pesquisadores que realmente podem nos colocar na vanguarda desses estudos. E a Ana é dessas que vai fundo mesmo. Continuei fazendo com ela algumas sessões. Ela me deixava pagar quando pudesse. Sempre foi muito carinhosa, mas fui ficando constrangido com a dívida que ia crescendo e me afastei. Ela também. Um tempo atrás, ligou para minha casa, falou com a minha mãe e comigo. Trata-se de uma mulher, uma pessoa, uma profissional maravilhosa!