Vamos dar um jeito

Tive um alívio enorme ao voltar para casa. Queria passear pelo Rio. Fui até Santa Teresa ver a cidade de cima e depois até a Tracks, uma loja de CDs na Gávea. Cheguei lá, encontrei o Heitor, o dono, meu amigo. Falando com ele, foi me dando uma vontade enorme de fazer xixi. Foi a primeira vez que vivi uma experiência que não tinha a ver com meu problema. Eu estava conversando sobre música e discos, não queria sair dali. Fiquei segurando, segurando e acabei fazendo na calça. Mais uma pancada. Voltei para casa mal para cacete.

Eu estava uma caveira, pele e osso. Em casa, era uma multidão de repórteres para botar para correr. Ronaldo, um amigo da época d’O Rappa, ajudava a me dar banho, dirigia para mim. Fiz um acordo para dar uma grana a ele. Eu e o Ronaldo tínhamos um amigo em comum, o Renatinho Chifre de Rato, que havia sofrido um acidente de paraquedas. Na época, o Filé, que tratou também o Ronaldo Fenômeno, deu um jeito nele. Lá fui eu escutar mais um especialista.

Cheguei e o clima era outro, para cima, com um pique de atleta, de superação. E o Filé é uma pessoa especial, um iluminado. Ele pega com vontade e me passou uma energia muito positiva. É um cara duro, não tem chororô, mas tem muito carinho no que faz. Não suaviza, não faz concessões. Sabe como ele se apresentou? “Bem-vindo ao inferno.” Eu respondi: “O inferno eu já vi, amigo. É bem diferente disso aqui.” Era outro clima: mulheres bonitas, Barra da Tijuca e ninguém falava “coitadinho”. O clima era de gerar vida: “Você quer ir à praia? Vamos dar um jeito. Você quer praticar esporte? Vamos dar um jeito.”

Ele colocou a Fernanda e o Nabuco para cuidarem de mim. Nabuco parecia um playboyzinho, tatuado, fortinho. No começo, fui o cara mais aplicado que se pode ser. Eu ia vendo a melhora, mesmo sentindo muita dor. Por quase um ano e meio eu compareci à clínica do Filé todos os dias. Até que houve um momento em que relaxei. Eles iam começar um trabalho bem mais pedreira. Até tive uma discussão com o Filé. Ele falou: “Você está de maricagem.” Fiquei puto: “Você não sabe o que é estar aqui no meu lugar.” E ele: “Não sei o que é estar aí? Meu filho tem distrofia muscular e está morrendo. Eu sou um dos maiores especialistas no mundo e não posso fazer nada. Nada! Meu filho vai à faculdade de cadeira de rodas, sabe que vai morrer e não falta a uma aula.” Vi que o buraco dele também era bem mais embaixo. O Filé me mostrou que é porrada mesmo. E, quando achar que já passou, tem muito mais.

Durante esse período, fiz a cirurgia para abrir e ver o que tinha dentro do meu braço. Estava lá a placa de platina esmagando o nervo. Eles resolveram tirar um nervo da minha canela e fazer o enxerto. Na época, foi um dos maiores transplantes de nervo: 18 centímetros. Quando essa dor diminuiu, vi as coisas com mais clareza, tive um pouco mais de paz interior e passei a pensar de novo no que fazer da vida. Fiquei amigo do Tripa, marido da Kátia Lund. Um negão magro, gigantesco. Ele e um amigo, o Nando, viraram meus brothers. Os dois tornavam quase tudo possível, fosse ir à praia ou subir numa laje na favela. Eles me botaram na vida, no cotidiano. Quando a dor diminuiu, a minha diversão era ir para a Rocinha.