A campanha política teve origem na Marlene Mattos, ex-empresária da Xuxa. Um dia ela me chamou para uma reunião e contou que havia realizado uma pesquisa na qual meu nome aparecia como catalisador de muita mídia espontânea. Ela queria discutir um programa de TV, mas me disse também para pensar numa carreira política. Isso aconteceu em 2008. Eu nunca tinha refletido a respeito, não era do meu interesse. Não sei como esse papo vazou e foi parar nos jornais.
A galera veio botar pilha. Era tanta gente falando que decidi conversar com alguns amigos. Eles sugeriram que, antes de tudo, eu me filiasse a um partido. Optei pelo PSOL, porque já tinha contato com alguns militantes, entre eles o Marcelo Freixo. A gente se conheceu quando ele ainda era professor e ativista de uma ONG de direitos humanos. Eu estava em uma plenária com as mães de Acari, falando das chacinas policiais. Quando ele entrou, pensei: “Quem é esse mauricinho?” Mas, quando começou a falar, era muito consistente, forte. Quando acabou, fui falar com ele: “Não botei fé em você.”
Dali em diante, sabendo quem era, a gente se esbarrou várias vezes nas militâncias. Em 2007, quando houve o massacre do Alemão, em que a polícia matou 19 pessoas, veio um relator da ONU e fiz parte de um grupo que escreveu uma carta para entregar a ele. Muitos da Assembleia Legislativa tentaram frear a gente, mas o Freixo ajudou para que eu pudesse estar na reunião.
Com o tempo, fui ficando mais próximo do Marcelo – não apenas para tratar de temas práticos do front da militância, mas para ver futebol, rangar, bater papo, o que criou uma afinidade muito grande entre nós. Isso a ponto de ele me ligar e falar: “Estou pensando em me candidatar a prefeito. Não sei se por Niterói ou pelo Rio. Eu tenho as duas possibilidades. O que você acha?” Eu me senti orgulhoso, já que ele havia consultado pouquíssimas pessoas. Foi uma puta prova de amizade e respeito. Opinei que deveria vir pelo Rio, até porque daria mais visibilidade à luta dele.
O discurso do Marcelo tem muito apelo, principalmente entre a juventude. Quando se fala de direitos humanos, os mais sensíveis são os jovens, mais na reta dos assassinatos e à margem do emprego. O jovem é a maior vítima, principalmente o da periferia.
Até então, nunca havíamos discutido a possibilidade de que eu também fosse candidato. Quando me filiei, achavam que eu devia disputar uma cadeira de deputado federal. Não aconteceu. Eles lamentaram eu não ter topado, diziam que eu conseguiria. Acho que conseguiria mesmo.
Freixo passou a me procurar. Só não conseguíamos conciliar agendas. Quando foi possível, ele me disse: “Tenho uma proposta: queria que você viesse como meu vice.” Era um puta carinho comigo, mas a primeira coisa que me veio à cabeça foi: “Esse cara não me conhece. Acho que ele não está entendendo que não é isso que eu quero.” O impulso inicial foi me sentir honrado, mas tratei com certo desdém: “Vocês estão malucos!” E ele insistiu: “Me ouve primeiro.” Ele dizia que o PSOL não iria fazer coligação com nenhum partido e que a coligação na qual ele acreditava era com a sociedade civil. Dizia que eu representaria bem a sociedade civil como ativista, músico, poeta. E isso fez sentido para mim.
Sabia que havia exemplos de artistas cuja militância e sensibilidade em sua arte os levaram a seguir esse caminho. Bob Geldof foi um deles. O Gil, no Ministério da Cultura, tinha o seu valor. Não sou um cara confiante na luta partidária, mas percebi que havia ali pessoas admiráveis. Nas duas eleições do Freixo para deputado, eu já tinha panfletado na rua, achava que agregava mais distribuindo santinhos. Ele terminou a conversa me dando uma hora para pensar.
Naquele dia, estiveram comigo o próprio Freixo, o Edu, um amigo em comum – também filiado – e uma senhora que veio com ele. Fui até essa pessoa, a quem nunca tinha visto e com quem não tinha relação de amizade, e perguntei: “O que a senhora acha?” Para minha surpresa, ela não era uma assessora. Era a Dorrit Harazim, jornalista da revista Piauí, cobrindo uma semana na vida do Freixo. O cara me convidou na frente de uma jornalista! Topei, mas antes fiz algumas perguntas: “Posso deixar que ela registre essas perguntas?” Ele falou: “Ela está aqui justamente para isso.” “Então me responde: de onde vem o dinheiro? Vai ter coligação no segundo turno?” Ele respondeu tudo com muita clareza e convicção. Ainda falei: “Está aí tudo registrado. Se mudar, você vai passar por mentiroso, porque está tudo gravado.” Eu, que tinha uma hora para tomar uma decisão, segui a minha intuição e topei.
Olhando em retrospectiva, foi um tiro no pé. Era o ano de voltar ao mercado cultural. Eu estava gravando um disco, fazendo um filme, meu livro de poesia. Mais uma vez, arrisquei tudo pela paixão. Se tivesse sido racional, não teria topado. Financeiramente, foi horrível. Perdi muitos trabalhos, foi uma das épocas mais duras de grana. Na mesma semana, todas as possibilidades de trabalho passaram para o ano seguinte.
A campanha me provocou sentimentos contraditórios. Em alguns momentos, me senti sozinho. Muitos artistas amigos se distanciaram para não perder as boquinhas que tinham e podiam continuar a ter no governo do nosso oponente. Confesso que isso me deixou chateado. Foi muito entre aspas esse “apoio dos artistas” ao Marcelo. Tenho certeza de que muitos não me apoiaram por covardia, por causa das tais “boquinhas”. E eu poucas vezes pedi alguma coisa para alguém. Em contrapartida, havia o povo – a gente conseguiu 30% dos votos, o que é muito. De alguma forma, isso me mostrou que eu estava certo. Freixo representa uma nova maneira de fazer política. Foi impactante constatar o que essa campanha simbolizou. Havia um caráter de movimento, e isso transformou boa parte das minhas utopias em fatos concretos. Cheguei ao final da campanha mais otimista do que quando entrei, especialmente ao me deparar com uma juventude com esperança política, que não está só advogando em causa própria. Foi uma campanha feliz. As pessoas ainda são sensíveis a boas causas.
Também tirei várias conclusões dos bastidores da política – experiências únicas, que só se tem numa situação dessas. Foi emocionante ver o Marcelo. Vê-lo agindo, tomando decisões. Todas as vezes, ele fez as escolhas que eu considerava mais éticas, mais íntegras. Fiquei muito feliz por ter vivido tantos momentos que me pareceram históricos. Ele tem alma de grande estadista. Confio ainda mais no Freixo hoje. Foi emocionante vê-lo se preparar para os debates na TV Globo. Ele dividia tudo: as opiniões, as decisões, a estratégia. O cara tem uma dignidade absoluta. Por outro lado, pude também perceber que o jogo da política muitas vezes faz a pessoa esquecer que aquilo ali é prestação de serviço radical. É doação radical. O candidato do qual fui vice chega a colocar em risco a própria vida. E é muito fácil você se coligar para ter mais possibilidades de chegar ao poder. Mas o PSOL é um partido em que o peso ideológico se faz valer, tem um enorme valor. Não é um partido muito afeito a coligações, e eu gosto disso. Entendi isso melhor. Mas tem um lado da política real que pode inebriar. Não digo ao ponto de corromper, mas é uma armadilha íntima e silenciosa em que todos caem: o desejo de ser amado. Eu constatei que a política, em alguns momentos, é totalmente irracional.
O jogo que se coloca já nasce corrupto. A gente fez um dos encontros na casa do Caetano Veloso, e o que me chamou atenção foi que boa parte daqueles artistas tinha uma posição conservadora em relação a uma possível eleição. Muitos gostavam do que ouviam, mas tinham aquele discurso de que não iríamos ganhar por falta de “relações com empresários”, por exemplo. Não entendiam que é possível fazer uma campanha sem caixa dois, sem se juntar com o inescrupuloso, sem comprometer o governo. E o Freixo, o político, que teoricamente deveria estar em uma posição mais conservadora, estava na vanguarda. Isso me intrigou. Marcelo responde de forma muito simples, apontando para uma nova forma de fazer política. O político sendo mais vanguarda que a classe artística?! Ele já fez assim. Na primeira campanha, vendeu um carro e foi eleito. Na segunda, na qual foi o segundo deputado mais votado, repetiu o procedimento. Sem concessões. Para ele, se não for assim, é melhor não ser. Essa é a nova forma, a nova possibilidade de fazer política. E isso é maravilhoso! Nessa eleição, nenhum outro candidato disputou com um oponente com um poder tão forte quanto o do Paes. E nós tivemos 30% dos votos!
Poucas vezes me senti tão perto da história, e aquilo me fez muito feliz. A campanha, em si, foi mesmo um Davi contra Golias, pela absoluta falta de grana. Ela deixou um legado, e ele ecoa na figura do Marcelo. Com certeza, ele perdeu muitos votos por aceitar o pragmatismo da velha política. Mas o que ganhou é mais forte. Plantou a semente de uma nova forma de se fazer política. O fato de botar mais de 15 mil pessoas na Lapa, em um palco semiescuro, debaixo de uma chuva torrencial, disputando com o sucesso da novela, sem ter muitos artistas nem jogadores de futebol, foi uma grande vitória. A mídia foi promovida basicamente por rede social. Em outro momento, quando abraçamos o Maracanã, por pouco não dávamos três voltas! O número de pessoas que foram ao comício e ao Maracanã deve ser maior do que o total de militantes do PSOL no Brasil todo. Isso me fez acreditar que foi um momento histórico na política da nossa cidade, do estado, do país. E eu estava lá.
Marcelo tem uma indignação legítima, que vai além do fato de ele ter tido um irmão morto pela polícia. E é essa indignação que o tira da cama todos os dias. Quando a gente escreveu aquela carta para entregar ao relator da ONU, a chacina tinha vitimado supostos traficantes, mortos pelas mãos da polícia. Isso que existe é inconstitucional: ser traficante é uma atividade que quase dá à polícia o direito de assassiná-lo. Afora isso, o laudo mostrava que algumas das pessoas tinham sido mortas com tiros na nuca e na falange do dedo. Ou seja, se renderam, estavam com as mãos atrás da cabeça. Se você está perto da mãe desse cara, que não tem culpa da escolha do filho, e você vê que existe um papel com esse laudo e, do outro lado, a polícia dizendo que só se defendeu, isso cria uma revolta.
Sou um homem adulto do século passado, quase chegando aos 50 anos. Sempre tive uma posição pessoal partidária de esquerda, mas, como muitos outros, me decepcionei com a esquerda, com o PT. E sinto uma decepção ainda maior com o mundo, porque os trabalhadores chegaram ao poder na maior parte dele. Entrei nessa porque o Marcelo me pediu, não tinha esse plano. Entrei por admiração e amizade. Continuar na política não faz parte dos meus planos, mas quero estar com o Marcelo aonde ele for. Estar por perto, discutir estratégias, pensamentos.
Sendo esse homem quase das cavernas, acredito que o excesso de informação está produzindo um efeito colateral: estamos perdendo certas referências. Li que o Steve Jobs, por exemplo, ouvia vinil. O cara que inventou o iPod escutava disco de vinil! Já até escrevi poesia sobre isso: não é questão de descartar a tecnologia, mas de usá-la como ferramenta para encontrar sua essência. A contrapartida de tantos avanços tecnológicos tem que ser algo artesanal, essencial. E na política a saída é essa ingenuidade, essa busca utópica, o ideal. Eu me sinto um profissional de utopias na arte e um técnico de ingenuidades na política.
Campanha é algo barra-pesada em termos de energia física. Eu queria ter estado muito mais presente, e teria sido assim se não tivesse tantos problemas de saúde. Em algum momento, também tive receio de que minha presença pudesse atrapalhar – essa coisa de ser artista. Ou, melhor dizendo, essa coisa da minha baixa autoestima. Freixo realizou o ato simbólico de começar por Campo Grande, e eu não consegui ir. Acordei cedo e a pressão fodeu tudo. Isso também aconteceu muitas outras vezes. Fiz o que pude. Quando acabou, senti uma necessidade de dormir, como se tivesse aliviado os ombros. Tive algo como uma estafa. É simbólico que o coração me dissesse que havia um descompasso: foi tudo muito intenso.
Uma conclusão a que chego, depois de ter passado pela campanha, é que o homem vacila. É capaz de ser um anjo e um demônio de um momento para outro ou ao mesmo tempo. Mas esse mesmo homem ainda me enche de esperança e me oferece uma razão para acordar todo dia. Esse mesmo homem que pode vacilar pode também nos mostrar que é bonito acreditar em lideranças.