Não quero ser melhor na rua
do que em casa

Tenho a sensação de que não entendo claramente o tempo que vai passando por mim. É como se eu tivesse menos idade do que tenho. Não tenho muitas coisas que deveria ter com quase 50 anos. É como se ainda houvesse muito tempo pela frente. Vendo os meus pais passando dos 70 e poucos anos, noto que estão muito bem fisicamente. Fico achando que ainda vou fazer coisas para eles no futuro: uma viagem, um fim de semana na praia.

Quando penso em mim mais velho, isso não é suficiente para dizer que tenho pouco tempo. Quando olho os meus amigos mais velhos, percebo que não tenho tanto tempo assim. Acabei optando por viver no risco. A política foi uma atitude ousada, porque o desgaste – físico e emocional – é muito grande. Arrisca-se grana, arrisca-se tudo. Mas é uma parte do meu comprometimento com a vida.

Minha família não entende e diz que não posso ser melhor para os da rua do que para os de casa. Essa é uma frase recorrente. Eles não percebem esse desalinho, que minha proposta é estar em tudo: na ONG, na política, na minha música. Minha entrega é plural. Sempre foi assim.

Tenho pouquíssima privacidade. Por outro lado, gosto que a minha casa sirva a propósitos nos quais acredito. De repente, vai servir ainda para alguém que nem conheço. Tem sempre alguém de fora, uma reunião. Procuro estender o que seria um laço familiar, replicando a forma como fui criado em Campo Grande. Houve um tempo em que moramos na Tijuca e éramos eu, minha mãe, meu irmão, quatro primos e dois amigos, um deles africano. Minha casa, por mais que seja imprópria por ter tantos degraus, possibilita essa integração. Até meu pai, depois de ter se separado, se alojou ali por um tempo. Todos os meus irmãos já moraram comigo, à exceção da minha irmã.

Apesar de toda essa gente, quando aperta, quando estou desesperado pela doença ou de madrugada, sinto que todo mundo, de alguma maneira, está ocupado demais e tem outra coisa para cuidar. E aí, como faço? Na minha família, somos eu e minha mãe de um lado, e meus irmãos, com o meu pai, de outro. Uma besteira... Minha irmã, Carolina, é na realidade irmã do Pedro, meu irmão menor. Meu pai se casou com a mãe dela, que era viúva. Quando comecei a perceber o amor que ela tinha por ele, vi o que o destino tinha feito com a gente: tinha despertado um amor incondicional de irmãos por ela, e a recíproca era verdadeira. Passei a chamá-la de irmã, e ela, a me chamar de irmão.

Se este livro serve de alguma coisa para mim, pessoalmente, ele tem que servir como um pedido de perdão. Eu peço perdão por minhas escolhas terem afetado a minha família. Eu peço perdão pela minha imaturidade, pelo meu senso de humor. Eu peço perdão porque tudo o que proponho para fora só faz sentido se existe dentro. Tudo o que eu proponho para fora, quando não acontece em casa, me agride.

Minha ex-namorada não sabe a falta que eu sinto do filho dela. Quando namoramos, a proposta era que a gente fosse uma família. Sinto muito a distância deles. A Maíra também teve um filho e eu não soube da gravidez. Acabei escrevendo sobre o sentimento pelo filho dela.

Estou sempre questionando as fronteiras, inclusive a familiar. Por que não pode ser ampla, inusitada? O filho que não tive cabe no meu irmão, cabe nos filhos das namoradas, nos filhos dos primos, nos inúmeros afilhados. Acho que sempre quis isso. Confesso que não desisti de tudo, mas, cada vez que um relacionamento não dá certo, isso vai me secando. A necessidade de recomeçar, de ter que acreditar de novo, vai me cansando.

Penso que não tive uma história com uma única mulher. Essa “única mulher” passou a ser uma reunião de todas. Eu me casei com a categoria “mulher”. Talvez não tenha sido pai de um para ser pai de vários, ou cumprir um papel parcial do que vem a ser pai para alguns. Quando alguém me para na rua e fala sobre o bem que o meu trabalho proporcionou, fico querendo que tivesse acontecido na minha família.

Nunca ouvi nada parecido dos meus. Queria ter oferecido alguma coisa realmente boa para diminuir esses rancores de casa, essas impossibilidades. Se falar sobre a minha vida tem uma utilidade para mim, é pedir esse perdão, sobretudo se não consegui provar para a minha família quanto sinto de amor ou se fui negativo a ponto de atrapalhar nossas relações.

Eu deixo todas as minhas fragilidades ou os meus erros evidentes. Sou muito franco. Ter alguém de casa questionando isso não é legal. Tendo a proteger as pessoas que amo, não é uma questão de a minha família ser unida ou não. É uma dor minha de não ter sido claro, de achar que não pude ou não consegui dar o suficiente. Tudo o que dei foi pouco. Porque, se eu posso sair da minha casa e ir para Nova Iguaçu, ficar horas dentro do porão da delegacia, acreditando no que estou fazendo ali, isso tem que ser dez vezes mais em casa. Eles têm que acreditar que também sou capaz da mesma entrega por eles.

É difícil ter uma pessoa como eu em casa, com tantos sentimentos à flor da pele. Estou pedindo desculpas pelos meus excessos, pela minha incapacidade. E pelo meu medo do futuro também. Porque, em se tratando de família, essas pessoas construíram novas famílias ou ainda o farão, como meus irmãos menores. Eles construíram um esteio para se segurarem à medida que o tempo nos for castigando. Eu não consegui fazer isso, é tudo muito inseguro. Tirando a minha mãe, todas as relações que tenho com as pessoas que cuidam de mim são pagas. Como vai ser quando minha mãe não estiver aqui? E se eu não tiver mais como pagar? Cada um dos meus familiares tem a sua vida e, no entanto, eu posso, às três horas da manhã, ter uma subida brusca de pressão ou qualquer coisa assim. Preciso de ajuda! E só tenho um enfermeiro, que não sei de onde veio e que, se eu não pagar no dia certo, posso nem ter mais.

Vivo sob uma sombra pesada do que possa vir a ser meu futuro. Uma solidão incrível. Acho que o homem confunde estar só com a solidão. Eu convivo bem com o estar só. Mas há momentos em que, como todo mundo, estou só com a minha solidão. E a minha solidão é risco de vida. Pela minha dependência, não posso existir assim. Meu irmão tem a família dele, meu pai também. Em casa é como se fosse uma família composta por mim e pela minha mãe.

Esse amor incondicional, só minha mãe tem comigo. Chega até a se perder, a exagerar com seus cuidados. E eu me perco também. Mas, enquanto essa relação confusa existir, estarei muito mais só do que solitário. Estar sozinho não me incomoda. Mas a solidão...

Não sei se algum dia terei que abrir mão da casa. Por outro lado, penso em como a cadeira foi uma curva na minha história, em como ter ido à Baixada e procurar ser músico foi uma curva na história, em como ter vindo para o Rio estudar, fazer faculdade, foi uma curva na história, em como ter saído da Baixada para montar O Rappa foi uma curva na história... Talvez eu não entenda hoje que posso vir a ter força para fazer outras curvas.

Eu me lembro de quando meu pai falou que a gente ia morar em Angra e de quanto chorei naquele dia. Achava que perderia todos os meus amigos, a casa dos meus primos, que era o paraíso para mim. Depois fui ver que não era exatamente assim: são as tais curvas da história. E quanto todas as que fiz foram boas para mim? Quanto me fez uma pessoa diferente ter morado naquela praia? Quanto aquilo me acrescentou, assim como Campo Grande? Agora penso que adoro a rua, adoro a casa, e sei que não poderia ser na Zona Sul. Foi um ato consciente não morar na Zona Sul, pois eu queria manter meus olhos perto da minha identidade.

Achava que tudo isso era só uma culpa, agora vejo como necessidade. Tem culpa católica, cartesiana, mas também é a simples necessidade de quem foi educado dessa maneira.

Agradeço a oportunidade que tenho para pedir perdão. Eu precisava dela. De alguma forma, me parece que é necessário que isto esteja escrito assim. Se eu formulasse diretamente para a minha família este pedido de desculpas, acho que iriam me mandar tomar no cu. Agora, aqui, espero que este perdão possa ter outro eco. Então eu peço: perdoem-me pelo que fiz e pelo que não pude fazer.