Fab ou Chico
Eu já o conhecia quando nos encontramos em São Paulo, no Congresso Nacional de Escritores. Era o começo de 1945. Lá fora, o fim da guerra. Aqui dentro, o fim da ditadura. Chico tinha vindo de Diretrizes. Ali, ao lado do Joel Silveira, ganhou fama como repórter. Suas entrevistas ficaram famosas. Algumas se tornaram documentos históricos.
No Congresso, logo se distinguia. Não era de ficar na sombra. Sua voz sonora ecoava na secretaria. Fazia a chamada e estava sempre lá, visível, atuante. Era o seu jeito de ser. Paulista de velha cepa, de Guaratinguetá, como Brito Broca, fez toda a sua vida no Rio. Bacharel em Direito, o jornal anos a fio consumiu suas energias.
Na faculdade começou a abrir o seu círculo de afeições e admirações. Estava entre os fiéis do Gilberto Amado. Como Odylo Costa, filho. Como Odylo, aproximou-se de Virgílio Alvim de Melo Franco. Por aí também, pelo jornal Política & Letras, nossos caminhos se cruzaram. Não era boêmio, o Chico. Não o era pelo menos nesse tempo, posterior à fase da Lapa de Luiz Martins e R. Magalhães Júnior.
Veio depois a Última Hora, de Samuel Wainer, que eu tinha tido como chefe de redação no O Jornal. O novo jornal nos convocou. Samuel nos deu o título de redatores-principais. Dividíamos tarefas, numa trabalheira que começava cedo. Sempre às sete horas da manhã, sem folga no sábado e às vezes com plantão no domingo. Chico, pontualíssimo, estava sempre disposto.
Já tinha testemunhado antes o seu incansável labor, na Assembleia Constituinte de 1946. Um leão, o Chico. Ninguém lutou mais pela valorização da categoria profissional. Colou no Café Filho e enfrentou uma frente oposicionista de peso. Passional, se encontrava resistência, aí é que se empenhava mesmo. Eu dizia de brincadeira que ele era um colérico, na classificação de Kretschmer.
Assim o classifiquei quando brigamos numa certa manhã. Com o trânsito difícil, cheguei cinco minutos atrasado, ali na Praça Onze. Ele ia entrando no táxi, para me substituir na entrevista política que me cabia a mim. Ao me ver, não se conteve. Dormíamos poucas horas e tínhamos os nervos à flor da pele. Ele bateu a porta com estrondo e me virou as costas.
Cada um para o seu lado, chegamos a um requinte que muito nos divertiria mais tarde, em nossas comuns reminiscências. Como dividíamos a sala, tomei a iniciativa de levantar uma divisória que nos impedia de nos ver um ao outro. Só falávamos o indispensável, matéria profissional. Mas a briga e a divisória não duraram muito. Um domingo o Chico apareceu na minha casa na Gávea, com um dicionário que me deu de presente.
Passamos juntos a tarde e nunca mais deixamos de nos entender. Ele procurador, eu advogado substituto, nos encontramos no serviço público. Ele tinha um sagrado horror ao foro. Trabalhava como sempre, dedicado, sério, exaustivo. Mas nada de defesa oral. Viveu momentos de pânico, que exagerávamos de brincadeira. Sua cultura jurídica, dizia, devia muito aos meus conselhos. E contava que lhe dei a chave da sabedoria, apontando-lhe duas armas para os pareceres: o Carlos Maximiliano e o bom senso.
Pilhéria, claro. Nada podia eu lhe ensinar. Chico se aplicava, competente, fosse no que fosse. Lima Barreto ressuscitou na sua pesquisa. Tomou gosto pela História do Brasil, de que se tornou um especialista. Trabalhou, operoso, em favor das glórias alheias, ilustres ou modestas, obscuras ou brilhantes. Andava meio triste nos últimos anos, o nosso Chico. Boné na cabeça, a farta e bela cabeleira, ainda rimos muito quando nos encontramos pela última vez. Daí a dias, morreu. Em São Paulo, como era de seu desejo.
Otto Lara ResendeI
I RESENDE, Otto Lara. Fab ou Chico. In: Chico Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação da Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 5-6. Catálogo da exposição realizada em setembro de 1992, pela Fundação Cada de Rui Barbosa, em homenagem a Francisco de Assis Barbosa.