Lima Barreto e Chico Barbosa

Esta é a décima primeira edição de A vida de Lima Barreto, publicada 26 anos após a morte do biógrafo pioneiro em 8 de dezembro de 1991.

O corpo da primeira edição (1952) sofreu modificações ao ser preparada a quinta edição (1975), quando as citações passaram a ser remetidas às Obras de Lima Barreto, organizadas por Francisco de Assis Barbosa, em 1956, com a colaboração de Antonio Houaiss e Manuel Cavalcanti Proença. Optamos por manter as referências bibliográficas de origem, apesar de estarem as Obras de Lima Barreto há muito esgotadas. Nem todos os volumes das Obras de Lima Barreto foram ainda republicados.

O esforço e a dedicação de Francisco de Assis Barbosa ao escritor carioca começou pelo resgate dos originais deixados no guarda-comidas da casa em Todos os Santos, após ganhar a confiança da família, especialmente da irmã, D. Evangelina de Lima Barreto, que se tornou importante fonte de informações. Em seguida, veio o deciframento de diversos manuscritos organizados por Lima Barreto em amarrados, como o texto do Diário do hospício e as anotações, espalhadas por várias cadernetas, que formaram o Diário íntimo. Diante de um escritor que dizia de sua própria caligrafia ininteligível – “A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões da minha inteligência”II –, a tarefa não há de ter sido fácil. Como o texto indica, a consulta aos contemporâneos em conversas ou correspondência foi extensa. A consulta a periódicos continuou sendo, muitas vezes – e a leitura da biografia o mostra bem –, um trabalho detetivesco. O resultado de tudo isso foi não só A vida de Lima Barreto, mas também a possibilidade de dar ao público leitor as Obras de Lima Barreto, em 17 volumes.

A verdade é que estamos diante de bem mais do que a biografia do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma; o que temos aqui é um dos mais importantes estudos da vida literária brasileira no período e uma prática inovadora do gênero biografia. A vida de Lima Barreto retrata a história da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX, analisa as relações entre intelectuais e a sociedade, produz um agudo balanço da política no país e passa a influenciar decisivamente os estudos literários.

O interesse de Francisco de Assis Barbosa por tudo que se escrevia, estudava, pesquisava, filmava ou encenava em torno de seu biografado permaneceu por toda sua vida. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 13 de maio de 1971, lembra ao auditório: “Na data de hoje, Lima Barreto completaria noventa anos”. E acrescenta: “Afonso Henriques de Lima Barreto, o grande romancista carioca da Primeira República, tão maltratado pela vida, nem por isso deixou de acreditar nos homens e até na Academia”.

A cada nova edição de A vida de Lima Barreto, procurava indicar o estado da pesquisa sobre a arte do escritor, acompanhando cada dissertação, cada tese, cada tradução realizada. O curioso é que, nesse movimento, Chico Barbosa, como o chamávamos, criou uma espécie de “família”, abrigando, em peculiar fraternidade, todos nós que nos deixamos contaminar por sua paixão. Em torno de Chico Barbosa gravitaram, por muitos anos, gerações de pesquisadores e professores que se ocupavam da obra de Lima Barreto. O agradecimento de Nicolau Sevcenko em Orfeu extático na metrópole expressa bem a orfandade em que ficamos desde que perdemos esse interlocutor atento:

Perda abaladora para mim foi a do querido amigo e conselheiro oportuno, o professor Francisco de Assis Barbosa. Desde o meu trabalho anterior de pesquisa, sobre o Rio de Janeiro, o professor Francisco passou a me apoiar e estimular em todos os sentidos, numa atitude desprendida feita dessa generosidade de erudito devotado aos estudos da cultura brasileira, que lhe era tão típica e fazia dele um modelo e amparo inestimável aos pesquisadores. Ele faleceu no dia em que veio a São Paulo, decidido a lutar contra todas as suas limitações físicas, para examinar este meu trabalho.III

A cada trabalho que finalizo sobre nosso romancista carioca, me lembro do último dia em que vi Chico Barbosa. Depois de mais um encontro estimulante na Casa de Rui Barbosa, da qual era diretor, conversando sobre a correspondência de Lima e o que ainda faltava trazer a público, levei-o de carro à clínica onde faria exames, preparando-se para viajar para São Paulo e participar da banca de defesa de Sevcenko. Já fora do carro, voltou-se e, debruçado à janela, me disse, com o carinho habitual: “Minha filha, ainda vamos fazer muitas coisas juntos”. De algum modo, continuamos fazendo.

A seção de manuscritos da Biblioteca Nacional abriga os originais de Lima Barreto, alguns deles acessíveis ao público através da BN Digital. Os documentos mencionados como pertencentes à “Coleção do Autor” estão hoje no Arquivo Francisco de Assis Barbosa da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, em São Paulo, de que é curadora a sempre atenciosa Cristina Antunes.

Esse ano de 2017 vem sendo tratado como o “ano de Lima Barreto”, com homenagens, reedições e novos estudos sobre o autor, o que indica que Lima Barreto finalmente teve o reconhecimento merecido. A longa demora evidencia, mais uma vez, a importância das leituras e dos estudos de Francisco Barbosa e da pertinência com que se dedicou ao escritor carioca.

Rio de Janeiro, maio de 2017

Beatriz Resende

II BARRETO, Lima. Esta minha letra... In: _____. Toda crônica. Organização de Beatriz Resende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004. v. 1, p. 90.

III SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 13-14.