PRIMEIRA PARTE

Infância

Origens

[...] foi com orgulho que verifiquei nada ter perdido das aquisições de meus avós, desde que se desprenderam de Portugal e da África.

(Gonzaga de Sá, p. 40)

Em 1869, logo depois do aparecimento do manifesto do Centro Liberal, começou a circular A Reforma.1 Porta-voz da oposição democrática, o jornal escolhera para epígrafe uma frase de Tácito – “Resumendae libertati tempus” –, que tão bem lhe simbolizava o programa. “Não se admitem testas de ferro”, avisavam os redatores, no alto do cabeçalho, como que desejando tudo muito claro e muito limpo. Com este pensamento, certa ou erradamente, entendeu a direção, confiada a Francisco Otaviano, que todo artigo político deveria trazer por baixo a assinatura do autor. Opinião livre, mas responsável.

O Jornal do Commercio criticou a inovação, mas Otaviano não tardou em dar resposta adequada. No dia seguinte mesmo, veio a explicação, que encerrava, nas linhas adiante transcritas, uma verdadeira declaração de princípio: “Esse sistema nos pareceu necessário como exemplo e como argumento para afastar de nossas colunas editoriais a calúnia e o insulto. Se assinamos e tomamos a responsabilidade de nossas opiniões e censuras, temos o direito de exigir que todos os artigos enviados à Reforma venham com a força moral da convicção de seus autores”.2

Imprimiram-se os primeiros números na tipografia de Francisco Sabino de Freitas Reis. Comprou-a mais tarde o Centro Liberal, e o jornal passou a ter, por volta de 1870, a sua própria oficina. Não se sabe se antes ou depois disso, já ali trabalhava João Henriques de Lima Barreto. O certo é que, tido e havido como excelente profissional, o jovem tipógrafo passara-se da oficina do Jornal do Commercio para a d’A Reforma, aos 19 anos de idade, pouco mais ou menos.3, IV

Para a folha fundada por Plancher, entrara simples aprendiz, mal saído do Imperial Instituto Artístico, pertencente a Henrique Fleiuss, que imprimia A Semana Ilustrada, de saudosa memória. Aí João Henriques havia aprendido o ofício com Mestre Faulhaber, alemão de nascimento, radicado no Brasil, provavelmente desde o mesmo ano em que o fizeram os irmãos Fleiuss e Carlos Linden, fundadores do Instituto.

São imprecisos os dados sobre o aprendizado técnico de João Henriques, mas do Instituto Artístico é possível e justo que se diga alguma coisa. Estabelecido, a princípio, no Largo de São Francisco de Paula, instalou-se depois com maior comodidade nos terrenos da Chácara da Floresta, próximo ao Convento da Ajuda. Os irmãos Fleiuss, organizaram, então, uma escola de aprendizes tipógrafos, ampliada mais tarde com uma seção de gravuras em madeira (xilografia). O curso era de três anos. Se, no primeiro, o aluno trabalhava sem receber ordenado algum, já no segundo percebia uma gratificação de 120 mil-réis, que no terceiro aumentava para 240.4

O Instituto era bem aparelhado e possuía excelente equipe de profissionais gráficos, compositores, gravadores e impressores de primeira ordem. Basta compulsar a coleção d’A Semana Ilustrada, para se verificar que não há nenhum exagero em tal afirmativa.

Nesse ambiente, que era, por assim dizer, o mais adiantado da época, em matéria de tipografia, João Henriques fez a sua iniciação técnico-profissional. Foi, portanto, com fumaças de operário qualificado que o aprendiz de Mestre Faulhaber começou a trabalhar nas oficinas do Jornal do Commercio, de cuja corporação se desligaria, entretanto, alguns anos depois, por entender que estava sendo vítima de injustiça.

O mundo é muito velho, e casos como este do tipógrafo João Henriques se têm repetido com monótona frequência. A atitude do rapaz, demitindo-se de um jornal de prestígio, para ficar sem emprego, embora com o orgulho satisfeito, revela, desde logo, o seu temperamento inconformado e rebelde.

Com a morte de um colega, vagara-se o posto de chefe da oficina. Convencido de que merecia a promoção, João Henriques pleiteara o lugar. O patrão recusou-se a atendê-lo, alegando uma série de razões: era muito moço, não podia passar à frente dos outros mais antigos na casa. E o rapaz de sangue quente, vencido mas não convencido, preferiu abandonar o emprego a receber ordens de um chefe menos competente do que ele.5

Pediu as contas e foi oferecer-se na oficina d’A Reforma, jornal que defendia a regeneração dos costumes políticos e onde devia existir melhor compreensão da justiça humana. Raciocinara assim, com certeza, ao pensar nas palavras do manifesto publicado diariamente no órgão do Partido Liberal, pugnando pela reforma eleitoral, pela reforma judiciária, pela abolição do recrutamento militar e da guarda nacional e, por fim, pela emancipação dos escravos.

João Henriques era mulato, quase preto. Nascera liberto, é verdade, mas trazia na pele o estigma da cor. Ora, o Partido Liberal defendia a abolição da escravatura e, vindo a liberdade, cairia por terra a barreira intransponível do preconceito de raça. Os homens que assinavam o manifesto tinham autoridade perante a nação. Falavam grosso: “Ou a Reforma ou a Revolução!”.

Com o fim da Guerra do Paraguai, o reinado de D. Pedro II entrava num período de agitação. É que viera a paz externa, sem a solução da política interna. Só os cegos não viam a crise, que o imperador agravara, entregando o poder aos conservadores.

O momento era, de fato, decisivo para a sorte das instituições, como diziam políticos e jornalistas, usando os mesmos “chavões” de sempre. Sucediam-se as questões de toda ordem. Religiosa, com a luta entre bispos e maçons. Social, com o abolicionismo nascente. Política, com a irrupção violenta da propaganda republicana.

João Henriques era liberal, por sentimento e convicção. Trabalhava no jornal do partido e seguia à risca a orientação dos chefes, homens que sinceramente admirava, como Francisco Otaviano, Cesário Alvim e Afonso Celso.

Afeiçoara-se sobretudo ao terceiro, que firmara o próprio prestígio político muito jovem ainda. Com apenas 30 anos, estava à frente do Ministério da Marinha, em plena Guerra do Paraguai, no último gabinete presidido por Zacarias de Góis e Vasconcelos. Por seu turno, o mulato conquistara a estima e confiança não só de Afonso Celso, como dos demais diretores. De simples compositor, passara a chefe da paginação, acompanhando pelos artigos d’A Reforma a marcha liberal para a reconquista do poder, o que se iria verificar alguns anos mais tarde, com a formação do gabinete de 5 de janeiro de 1878, sob a chefia de Cansanção de Sinimbu. Jamais se arrependerá de ter deixado o emprego do Jornal do Commercio pelo d’A Reforma.

Filho de uma antiga escrava, Carlota Maria dos Anjos, e de um português, madeireiro na Rua da Misericórdia, que não reconhecera a paternidade, João Henriques tinha ambição de subir. Frequentara o Instituto Comercial da Corte, antiga Aula do Comércio, onde formou a base dos seus estudos de humanidades. Ali aprendeu francês com o professor José Francisco Halbout. E então, durante o dia, aproveitando as horas de folga, estudava os preparatórios. Queria entrar para a Escola de Medicina, diplomar-se, fazer-se “doutor”, respeitado e admirado por toda a gente. Sonhava, queimando as pestanas nos livros.6

Ambicioso e afetivo ao mesmo tempo, ampliou depois os seus projetos com a ideia do casamento. De há muito frequentava a casa dos Pereiras de Carvalho, na Rua Formosa, e lá conhecera, menina ainda, aquela que lhe havia de ser a esposa e a mãe de seus filhos. Grande era a casa e acolhedora, com numerosos agregados, nascidos de antigos escravos e que, por viverem tratados com mimos, sob a proteção dos Pereiras de Carvalho, “corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa”.7

Chamava-se Amália Augusta – ou simplesmente Amália – a eleita do tipógrafo. Era mulata como ele, e é muito simples a sua história.8

Impossível determinar com exatidão como, quando e por que João Henriques conheceu os Pereiras de Carvalho. Num dos seus romances, Lima Barreto remonta às origens da família ilustre, outrora abastada, descendente de um alferes de milícias, senhor de terras no estado do Rio, lá para as bandas de São Gonçalo:

“Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo.” Venderam grande número e deram carta de alforria aos de estimação. Com ele só vieram os libertos que eram como da família.9

Entre os libertos estava Geraldina Leocádia da Conceição, mãe de Amália Augusta, e que pertencia à segunda geração de escravos da família. Maria da Conceição, de quem era filha, nascera na África e fora transportada para o Brasil num navio negreiro. Essa bisavó africana parece ter sido o modelo do escritor, ao gizar a figura de Mãe Quirina, numa bela página que deixou inacabada: uma preta velha, de mais de 100 anos, com a “cabecinha pequena, empastada de cabelos brancos, tecidos como uma rama de algodão, alvejando tristemente no fundo do rosto, encovado, chupado, inteiriçado, onde dois olhinhos castanhos quase sem brilho passeavam languidamente, dolorosamente”.

Tivera muitos filhos, e de várias cores. Uns morreram. Outros se espalharam pelos quatro cantos do país, ao sabor das vicissitudes do cativeiro. “Era da África, de nação Moçambique”, completa o escritor, denunciando logo em seguida o parentesco; “viera ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo; conhecera D. João VI, e, sobre ele, desconexamente, contava uma ou outra coisa avaramente guardada naquela estragada memória”.10

Mas quem eram afinal esses Pereiras de Carvalho?

De um deles – Manuel Feliciano Pereira de Carvalho – muito há que escrever. Foi um médico notável.11 Cirurgião-mor do Exército, diretor da Faculdade de Medicina, presidente da Academia Imperial de Medicina, conselheiro de S. M., o Imperador. É chamado o Patriarca da Cirurgia Brasileira.

A seu respeito, informa Luís Filipe Vieira Souto, em documentada biografia, que foi o primeiro cirurgião brasileiro a fazer “a aplicação do novo aparelho do célebre Souberain, para assim, por meio do clorofórmio, poupar as dores cruciantes dos operados”. “Empregou com mesmo fito”, conta ainda Vieira Souto, “o éter, de que deixou memória importante, e ensaiou também o querosene, que segundo alguns experimentadores era de valia, sendo que de início disse ele não ser um anestésico”.12

Bateu-se Manuel Feliciano contra os castigos corporais aplicados a praças do Exército, o que era muito comum naquele tempo, e propôs à Academia Imperial de Medicina a organização de uma sociedade de beneficência médico-farmacêutica, que teria por fim, no dizer de Alfredo Nascimento, “formar uma caixa para socorro dos seus membros, que, por idade avançada ou invalidez, carecessem de socorros. A ela pertenciam todos os médicos, cirurgiões e farmacêuticos, nacionais ou estrangeiros, e dela não poderiam fazer parte os que concorrem para o descrédito da medicina e dos que a exercem, nem os que fizessem anúncios de remédios de sua invenção, e quantos por modo grave comprometessem a dignidade profissional”.13

Da bondade do grande cirurgião, contam-se episódios como este: um escravo tentara suicídio, cortando o ventre a faca. Levado à mesa de operações, na Santa Casa, com os intestinos à mostra, fora salvo pela perícia de Manuel Feliciano. No dia seguinte, ao visitar os doentes da sua enfermaria, depara o médico com os olhos tristes do negro fixados na sua fisionomia.

– Então, como vai isso? – teria perguntado, sem contar naturalmente com a reação do escravo, que veio, num desabafo, lá do fundo da alma do infeliz:

– Vou mal, doutor. Muito mal. Se o senhor não me podia dar a liberdade, para que me deu a vida?

– Bem, rapaz! – respondera incontinenti Manuel Feliciano – já que Deus quis que eu te desse a vida, eu te darei também a liberdade.

Dali mesmo, interrompendo a visita, saiu ao encontro do Provedor da Santa Casa, a quem declarou estar pronto a pagar a carta de liberdade do negro operado.14

Como cirurgião-mor do Exército, Manuel Feliciano fez a campanha da Guerra dos Farrapos, de 1842 a 1845, seguindo para o Rio Grande do Sul, com as tropas comandadas por Caxias. Ao tempo da Guerra do Paraguai (1865), foi dos primeiros a marchar para a frente de batalha, deixando a direção da Faculdade de Medicina, para cumprir o seu dever de soldado. De lá só regressaria em agosto de 1867, doente e alquebrado, para morrer poucos meses depois.

Na véspera da partida, havia operado em plena campanha, num hospital de sangue, “sustentado por duas pessoas”. Não queria abandonar a luta em meio, só o fazendo a instâncias de Caxias, que enalteceu em Ordem do Dia os grandes serviços prestados por Manuel Feliciano durante a guerra.

De volta à pátria, não era só a doença, agravada por uma infecção contraída na guerra, o que o afligia. A saúde fora, de resto, sempre precária, pois sofria de uma lesão cardíaca, congênita. Além dos padecimentos físicos, o que mais o atormentava agora era a lembrança do filho único, capitão do 1º Corpo do Exército, que tombara vítima do cholera morbus nos pantanais do Paraguai.15

Velho e só, de que lhe valiam as honras que o imperador lhe concedera? Os elogios de Caxias? As glórias da vida profissional?

Manuel Feliciano Pereira de Carvalho nunca fora, na verdade, um homem feliz. Desquitara-se ao voltar da campanha dos Farrapos. Do casamento, tivera apenas uma compensação: aquele filho, que tinha o seu nome, e que acabava de perder. Cheio de mágoa, o velho cirurgião-mor penou os últimos meses da vida, pensando sempre no ente querido, cuja ausência era permanentemente avivada pelas crianças, agregados da família, filhos daquela mesma Geraldina Leocádia, de quem falamos linhas atrás. Era uma penca de quatro: Amália, Jorge, Carlos e Bernardino. Todos eles tratados como se fossem netos, justificando assim os rumores que corriam de boca em boca e que os apontavam como “filhos dos varões da casa”.16

Através da ficção, Lima Barreto como que procurava explicar o próprio caso, remontando às origens obscuras da sua família. E isso não acontece apenas em Clara dos Anjos. Nas notas que deixou de um romance apenas esboçado, Marco Aurélio e seus irmãos, parece fora de dúvida que ele pensava no pai ao falar do nascimento de um dos personagens, Miguel da Costa, fruto “da mancebia de uma ‘cabrocha’ com um português, minhoto tenaz e paciente, estucador de ofício”.

De fato, Miguel da Costa em muito se assemelha a João Henriques. Aos 14 anos, abandonando a mãe – “estava nos costumes do tempo” – tornara-se operário litógrafo, adquirindo por esforço próprio “pequena instrução, mas segura”. Mais tarde, “protegido por uma influência do tempo”, conseguira empregar-se numa repartição pública, casando-se por volta dos 25 anos.

Das reminiscências familiares, no entanto, foram as recordações da casa dos Pereiras de Carvalho as que calaram mais no fundo da memória do escritor. Em Clara dos Anjos, como em Marco Aurélio e seus irmãos, Lima Barreto descreve o ambiente patriarcal do velho sobradão carioca, onde Amália Augusta nasceu e formou o seu caráter.

Manuel Feliciano – o padrinho – estava no fim. Era como um fantasma, a ruminar suas amarguras “nas sombrias salas do seu casarão da Rua de São Pedro, com a leitura dos clássicos latinos e dos poetas portugueses”. A lembrança do filho – morto na campanha do Paraguai (fora ferido em Ponche Verde, informa com precisão o romancista) – atormentava a velhice do cirurgião-mor, que vivia “cheio de misantropia e professando um amargo nirvanismo desesperador”.17

Amália ia fazer 6 anos, quando Manuel Feliciano morreu. Pouco tempo depois, com o falecimento do cirurgião-mor, os filhos de Geraldina Leocádia são entregues aos cuidados dos irmãos e irmãs do velho Manuel Feliciano.18

Os Pereiras de Carvalho não os deixariam ao desamparo. A verdade é que a nenhum deles faltou carinho. Todos foram educados e encaminhados para a vida, sempre sob a tutela da família que até o nome ilustre emprestara aos bastardinhos. Assim aconteceu, por exemplo, a Amália Augusta Pereira de Carvalho – como se assinava em solteira a mãe de Lima Barreto – que recebeu excelente educação, a melhor que seria possível às mocinhas da sua condição, chegando mesmo a tirar diploma de professora pública, depois de passar pelos bancos do Colégio Santa Cândida, na Rua do Areal.

Segundo a tradição da família, João Henriques conhecera-a muito antes, porém, quando Amália era ainda uma menina. Visitando a casa dos Pereiras de Carvalho, nascera o namoro com o clássico aperto de mão e os não menos clássicos encontros às escondidas. Aos 15 anos, a mocinha foi pedida em casamento.

O noivado, entretanto, sacudiria os nervos à flor da pele de João Henriques, a ponto de perturbar-lhe as faculdades mentais. O compromisso assumido como se lhe afigurava muito acima das suas minguadas possibilidades financeiras, antevendo os embaraços que a nova situação imporia, a ele, simples tipógrafo, sem maiores recursos, tirando a noiva do conforto em que vivia, para uma existência cheia de privações. Ao seu temperamento exaltado, as coisas pareceram subitamente insolúveis, e a vida, um fardo pesado demais.

Com as emoções do pedido de casamento, veio também um estranho sentimento de culpa, que a imaginação do tipógrafo deformava em previsões cruéis de infelicidade, pobreza e desgraça, quem sabe lá! Manifestou-se então a crise nervosa, de modo quase imprevisto, obrigando João Henriques a um longo tratamento.

Afonso Celso compadeceu-se do noivo infeliz, internando-o por conta própria na Casa da Saúde e Convalescença de São Sebastião.19 Foi este, ao que se presume, o primeiro gesto de simpatia do futuro Visconde de Ouro Preto para com o jovem empregado da oficina d’A Reforma.

Após uma temporada de seis meses de hospital, o médico recomendara ao doente uma estação de repouso em Caxambu. Afonso Celso ofereceu-lhe dinheiro para que pudesse completar a cura. Mas João Henriques – valho-me aqui das memórias da família Lima Barreto – não precisou utilizar-se da generosidade do amigo e protetor, por uma circunstância toda fortuita. Um bilhete de loteria fornecer-lhe-ia o suficiente para as despesas da viagem e permanência na estação de águas.

Voltando de Caxambu, João Henriques casou-se logo depois.20 Não podia mais esperar. Com o auxílio de Afonso Celso, seu padrinho de casamento, ou, quem sabe, mesmo sem nenhum auxílio (o bilhete premiado daria para tudo), montou um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa, nas Laranjeiras, onde foi residir com a esposa.

Jamais havia imaginado ser tão feliz! Tinha tudo ou quase tudo o que desejara na vida. Agora, podia continuar a estudar, fazer os exames de preparatórios no Imperial Colégio de D. Pedro II, matricular-se enfim na Escola de Medicina.21 De resto, era Amália a primeira a estimulá-lo nos projetos de fazer-se “doutor”, desejosa de que o marido se elevasse, assim, ao nível dos “nhonhôs” da casa de Manuel Feliciano.

Já que não pudera ascender a posições pelo nascimento ou pela fortuna, havia de conquistá-las certamente pela inteligência e pelo saber.

Notas

1 O primeiro número d’A Reforma é de 12/05/1869. O manifesto saíra publicado em folheto da Tipografia Americana, no Rio de Janeiro, em março do mesmo ano, conta Joaquim Nabuco, no seu livro Um estadista do Império. Era assinado por José Tomás Nabuco de Araújo, Bernardo de Sousa Franco, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Antônio Pinto Chichorro da Gama, Francisco José Furtado, José Pedro Dias de Carvalho, João Lustosa da Cunha Paranaguá, Teófilo Benedito Ottoni e F. Otaviano de Almeida Rosa.

2 A Reforma, n. de 20/05/1869.

3 Segundo informação do próprio Lima Barreto, seu pai nasceu a 19/09/1853. Diário Íntimo, p. 213.

4 Informação de D. Evangelina de Lima Barreto. Nada encontramos a respeito de Mestre Faulhaber. Há no Rio de Janeiro pelo menos dois ramos Faulhaber, distintos um do outro. O primeiro, descendente do antigo bibliotecário da Escola Nacional de Música, filho de Manuel de Araújo Porto Alegre Faulhaber, também musicólogo. O segundo é o da firma Faulhaber & Irmãos, perfumistas estabelecidos na Rua Larga, desde muitos anos. De um e de outro ramo, não conseguimos obter qualquer indicação acerca de Faulhaber, mestre tipógrafo. Quanto ao Instituto Artístico, da firma Fleiuss, Irmão & Linden, sabe-se que foi fundado em 11/01/1860. Em dezembro do mesmo ano, iniciou a publicação da revista A Semana Ilustrada.

5 Foi a tradição que ficou na família, segundo o depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto, que ouvira do próprio pai a história da sua demissão do Jornal do Commercio.

6 O mesmo sentimento de Isaías Caminha: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor...”. (Isaías Caminha, p. 53).

7 “O cochicho”, completa o escritor, “não era destituído de fundamento, naquela família, ainda abastada, composta de irmãs e irmãos que se compraziam, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães” (Clara dos Anjos, p. 88).

8 Às fls. 119 do livro 19 de batizados da paróquia do SS. Sacramento da Antiga Sé do Rio de Janeiro, consta o seguinte assento: “Aos 19 dias do mês de julho de 1862, nesta matriz do Santíssimo Sacramento, o Reverendo Coadjutor Manuel Dias do Couto Guimarães batizou solenemente e pôs os Santos Óleos à inocente Amália, nascida em 21 de abril do corrente ano, filha natural de Geraldina Leocádia da Conceição, e neta materna de Maria da Conceição, natural desta Corte; foi padrinho o Bacharel Tenente Manuel Feliciano Pereira de Carvalho. E para constar lavrei este assento que assino. Pe. Coadjutor Albino Pinto Ferreira”.

9 Clara dos Anjos, p. 87-88.

10 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. “Posso ser rebolo (minha bisavó era)...” “Sobre o football”, artigo de Lima Barreto, em Brás Cubas, Rio de Janeiro, 15/08/1918, reproduzido no volume Vida urbana, p. 147 (o local citado está à p. 149).

11 Manuel Feliciano Pereira de Carvalho, chamado o Larrey e também o Velpeau brasileiro, nascido a 08/06/1806 e falecido a 11/11/1867, no Rio de Janeiro, era de ascendência lusitana, apesar dos traços acentuadamente negroides da sua fisionomia, o que mostra que o sangue africano também se misturou em Portugal, conforme ensinam Leite de Vasconcelos e Gilberto Freyre. É de notar-se, de resto, a parecença entre Lima Barreto e o seu suposto bisavô, comparando as fotografias de ambos; o mesmo talhe de boca, as mesmas ventas grandes e fortes e, sobretudo, os mesmos olhos. (“Português, branquidade e documento”, artigo de Gilberto Freyre, em O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 04/11/1950).

12 Estas e outras citações foram tiradas do livro de Luís Filipe Vieira Souto, Estudo biográfico sobre o Dr. Manuel Feliciano Pereira de Carvalho, trabalho de farta documentação, com o qual o autor conquistou, em 1930, o Prêmio Manuel Feliciano, instituído desde 1883 pela congregação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em homenagem ao Patriarca da Cirurgia no Brasil.

13 “Cerca de 80 anos depois, é, no fundo e na sua essência, o que visa o novo Sindicato Médico e o objetivo da sua Casa do Médico”, acrescentava o autor. Ver “Manuel Feliciano”, por Alfredo Nascimento, em Revista Siniátrica, Rio de Janeiro, ano XXIV, n. 11 e 12, novembro e dezembro de 1931, p. 121-124. Este artigo foi escrito baseado na documentação recolhida por Luís Filipe Vieira Souto, na obra acima citada.

14 Luís Filipe Vieira Souto, Estudo biográfico sobre o Dr. Manuel Feliciano Pereira de Carvalho.

15 Luís Filipe Vieira Souto, Estudo biográfico sobre o Dr. Manuel Feliciano Pereira de Carvalho.

16 Informação de D. Evangelina de Lima Barreto.

17 Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Diário íntimo, p. 54-55.

18 No aviso fúnebre, publicado no Correio Mercantil, de 12/11/1867, mencionam-se os seguintes irmãos e irmãs de Manuel Feliciano: Joaquim José Pereira de Carvalho, Antônio Lourenço Pereira de Carvalho, Inácia Leocádia Pereira de Carvalho, Rosa Joaquina Pereira de Carvalho e Maria Benedita Pereira de Carvalho. Um dos irmãos, segundo Luís Filipe Vieira Souto, atendia pela alcunha de “Bengalão”, e era funcionário da Polícia da Corte.

19 É a atual Casa de Saúde São Sebastião, na Rua Bento Lisboa, que naquele tempo se chamava Rua da Pedreira da Candelária. Era dirigida pelos Drs. Felício dos Santos e Júlio de Moura, e cobrava a seguinte tabela: primeira classe – quartos e sala para um só doente: 5$ a 20$ diários; segunda classe – salas para doentes livres: 3$ a 5$; terceira classe – enfermarias para escravos: 1$6 a 3$. Ver Almanaque Laemmert, 1879. Segundo nos informou o Dr. Simões Correia, diretor da Casa de Saúde São Sebastião, os livros de assentamentos mais antigos desapareceram, por volta de 1905, em consequência de um incêndio, que destruiu os arquivos daquele estabelecimento hospitalar.

20 No livro 7 de termos de casamento da Freguesia de São José, fls. 125, consta o seguinte: “Aos 7 de dezembro de 1878, nesta matriz, com papéis correntes e alvará do Exmo. Juiz de Órfãos, assisti ao sacramento do matrimônio que perante mim e as testemunhas abaixo assinadas celebram, justa Tridentinum e Constituição do Bispado, João Henriques de Lima Barreto, filho natural de Carlota Maria dos Anjos, natural e batizada nesta freguesia, com Amália Augusta, filha natural de Geraldina Leocádia da Conceição, natural e batizada na freguesia do Sacramento desta Corte: de que fiz este assento. O Vigário João Procópio de Natividade e Silva. Afonso Celso de Assis Figueiredo. Antônio Nunes Galvão”.

21 “[...] a conselho de meu pai, que estudou medicina [...]”, escreveu Lima Barreto em carta a Carlos Viana, de 13/02/1904. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondência, I, p. 50.

IV O Diário íntimo, volume publicado nas Obras completas e importante fonte complementar à biografia de Lima Barreto, foi organizado por Francisco de Assis Barbosa a partir de cadernetas esparsas. Em minucioso trabalho, o biógrafo reuniu uma primeira parte, organizada ainda como “diário”, apesar da forma fragmentada, anotações de cadernos diversos contendo esboços de romances e contos, observações, recortes. Algumas anotações pessoais, feitas em folhas soltas, foram incluídas. (N.R.)