Fim de regime
Nasci sem dinheiro, mulato e livre.
(Vida urbana, p. 119)
Essa felicidade dos primeiros tempos de casados não ia durar muito. Seria ilusória e passageira, como tudo que é belo e frágil, no dizer do poeta. Em breve, viriam os aborrecimentos, as dificuldades de dinheiro, a doença. Por fim, a morte desfaria o lar construído por João Henriques.
Desde o casamento, quer dizer, desde dezembro de 1878, residiam os Limas Barretos na Rua Ipiranga, nº 18, na mesma casa em que funcionava o Santa Rosa, o pequeno colégio para meninas, fundado e dirigido por Amália Augusta.
Não seria evidentemente uma escola para gente rica. Nem por sombra poderá ser comparado aos grandes educandários da época, como os de Mme. Gueslin e de Mrs. Williams, que ensinavam não só as matérias básicas do curso de humanidades, mas também “costura, flores de todas as qualidades e toda sorte de trabalhos de agulha”.
Longe disso, o modesto Santa Rosa limitava-se ao cultivo das primeiras letras. Mesmo assim, merecia a honra de figurar entre os noventa e quatro colégios para meninas na lista publicada pelo Almanaque Laemmert, ainda que sem o nome de sua diretora.1 É que Amália Augusta somente recebeu o certificado de habilitação, como professora, em fevereiro de 1880, e isso talvez explique a omissão.2
Já então a desventura havia penetrado naquela casa. Amália quase morrera com o nascimento do primogênito (setembro de 1879), e a criança, batizada às pressas, não durou mais que oito dias. Chamou-se Nicomedes esse primeiro rebento, decerto em lembrança do santo, que tanto sofreu em vida e que, depois de morto, teve o corpo jogado no rio.
Se o nome do primogênito obedecera a esses ditames, o do segundo filho foi escolhido para homenagear o futuro padrinho, o senador Afonso Celso de Assis Figueiredo. À combinação Afonso Henriques ocorre à memória o primeiro rei de Portugal, mas foi bem outra a intenção do tipógrafo. Ligando seu segundo nome ao primeiro do compadre ilustre, João Henriques pretendera simplesmente pagar uma dívida de gratidão.
Por influência de Afonso Celso, fora admitido na Imprensa Nacional, que tinha, na ocasião, título menos pomposo: Tipografia Nacional. Nomeado operário de primeira classe, com o salário de 5 mil-réis por dia, um ano antes do fechamento d’A Reforma (os liberais estavam de novo no poder), nas vésperas do casório, passara a chefe de turma, ganhando mais 1 mil-réis.3 Sem esta ajuda, talvez tivesse que adiar o casamento, cujas testemunhas foram Afonso Celso, que então ocupava o Ministério da Fazenda, e Antônio Nunes Galvão, administrador da Imprensa Nacional.
O dinheiro do emprego público, somado ao salário do jornal, chegava perfeitamente para garantir ao casal uma vida decente, naquele Rio de Janeiro provinciano de pouco mais de 300 mil habitantes, o Rio do tempo da revolta contra o imposto do vintém, onde um par de botinas de verniz do melhor couro da Rússia custava a bagatela de 7 mil-réis, e um maço de cigarros não ia além de 120 réis.4 Além disso, havia o colégio. Contaria João Henriques com o reforço da mulher. O Santa Rosa era pequeno, mas sempre dava para auxiliar nas despesas.
Pouco a pouco, todos esses planos se foram derruindo. Salva, por milagre, do parto do primeiro filho, Amália Augusta sofrera um sério traumatismo, seguido de paralisia das pernas, o que a obrigara a andar de muletas durante meses. Jamais se restabeleceria por completo. Já não era mais a mesma, porém continuava a dirigir o colégio e a dar filhos a João Henriques quase de ano em ano. Depois de Nicomedes, com um ano e pouco apenas de intervalo, vieram mais dois: Afonso (1881) e Evangelina (1882).
Afonso Henriques nasceu numa sexta-feira, 13. Treze de maio de 1881.5 Dia e número aziagos, dirão os supersticiosos, com riso amarelo. E mais seguros ficarão da má sina do menino, ao saberem que veio ao mundo na data em que se comemora Nossa Senhora dos Mártires, embora tivesse como protetora, à hora do batismo, Nossa Senhora da Glória, de quem João Henriques era devoto.6 Não verificamos qual a posição dos astros nesse dia, mas não deveria ser lá muito favorável, pois essa força misteriosa e desconhecida que se chama destino sempre conspirou contra Afonso Henriques de Lima Barreto.
Para enfrentar as dificuldades domésticas, o tipógrafo não media sacrifícios, trabalhando dia e noite. Desistira de estudar Medicina. Compreendera bem depressa que esse era um projeto que jamais poderia ver concretizado. Tinha agora preocupações mais urgentes: os filhos, a esposa. A esposa, principalmente.
A saúde da companheira, saúde que se ia tornando cada vez mais delicada, causava-lhe de fato apreensões. Por ela não pouparia sacrifícios. Como o médico aconselhasse banhos de mar, a família mudou-se mais para perto da praia, indo morar na Rua Dois de Dezembro, no Flamengo. Depois, para a Rua das Marrecas, próximo ao trabalho de João Henriques, pois a Imprensa Nacional ficava a dois passos dali, na Rua da Guarda Velha. De mais a mais, os banhos da Praia de Santa Luzia eram tão bons ou melhores que no Flamengo. Foi na Rua das Marrecas que nasceu o quarto filho do casal, que recebeu o nome de Carlindo (1884).
Amália Augusta já não podia lecionar. O pequeno colégio das Laranjeiras teve de ser fechado. Os filhos e os afazeres domésticos tomavam-lhe todo o tempo. Mesmo assim, ajudava o marido o quanto podia. Certamente lavava, cozinhava, costurava para fora. A figura da mãe jamais sairá da memória do pequeno Afonso, com os seus “tristes vestidos” e aquele olhar, que o mirava sempre, “fosse em que circunstância fosse, onde havia, mesclados, terror, pena, admiração e amor”.7
O certo é que a vida se complicava. Amália já estava de novo grávida, esperando o quinto filho. Combalida, após tantas canseiras, talvez não resistisse por muito tempo. João Henriques, homem extremamente afetuoso, mostrava-se inquieto, sem saber o que fazer. Amigos de ambos lembraram o clima dos subúrbios, onde a vida era mais tranquila e também mais barata.
Boca do Mato tinha “fama de possuir bons ares, para curar moléstias do peito”.8, O tipógrafo não discutiu. Arrumou os seus tarecos e para lá transportou a família. Amália porém não suportou os novos ares mais do que vinte e quatro horas. E João Henriques teve que sair novamente à procura de casa para morar. A primeira que encontrou foi em Catumbi. Alugou-a incontinenti, transferindo-se para ela com a mulher e os filhos. Nessa casinha de Catumbi, nasceu Eliézer, o caçula (1886).
Essas constantes mudanças dão bem uma ideia do estado de espírito de João Henriques, preocupado com a doença da mulher, que se agravava dia após dia. Só pensava numa coisa: salvar Amália, custasse que sacrifício custasse. Deu um balanço no orçamento, cortou as despesas supérfluas, e tratou de arranjar uma casa melhor, em Paula Matos. Tentaria agora o clima da montanha. E instalou-se ali, na Rua Santo Alfredo, num lugar maravilhoso, como o nome bem o indica: Paraíso.
De nada adiantaria o novo sacrifício. A pobre Amália morreu poucos meses depois (dezembro de 1887), vítima de uma tuberculose galopante. Aos 35 anos de idade, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto estava viúvo, com quatro filhos pequenos. O maiorzinho, Afonso, não havia completado 7 anos. E o menor, Eliézer, nem fizera 2.
A morte de Amália há de descer como uma sombra no coração do filho mais velho. Sombra que nunca mais se dissipará.
Morta a sua Amália, João Henriques não quis ficar em Paula Matos, onde tudo recordava a presença da amada. Mudou-se para uma casa na Rua do Riachuelo, esquina de Resende. Colocou os filhos maiores em colégios da vizinhança. Afonso foi para a escola pública de D. Teresa Pimentel do Amaral; Evangelina, para o internato de Mlle. Perret. E a vida foi andando para a frente.
Depois de golpe tão duro, João Henriques ia pouco a pouco repondo as coisas nos lugares. A princípio, tudo era desânimo, desesperança, desalento, mas João Henriques reage, procurando afogar, no trabalho, a sua mágoa e tristeza. Vê-se que são grandes as aperturas de dinheiro, nos meses seguintes à morte da esposa, pelo empréstimo que contraiu na Associação de Auxílios Mútuos dos Empregados da Imprensa Nacional. No mês de julho de 1888, recebeu apenas 18$300, sendo descontado em 157$200 do seu magro salário.9
É dessa época a publicação do Manual do aprendiz compositor, de Jules Claye, que João Henriques traduziu do francês.10
Na verdade, não se trata de uma tradução pura e simples. O tradutor teve o cuidado de adaptar as lições do famoso tipógrafo ao meio em que vivia, enriquecendo-as de notas e exemplos peculiares, como a citação do verso de Machado de Assis: “Bailando no ar gemia inquieto vaga-lume”, para exemplificar a maneira de tipograficamente compor poesias em português. Como este, muitos outros poderiam ser citados, e que demonstram o cuidado da edição brasileira do trabalho de Claye, que, por muitos anos, serviu de orientação profissional aos aprendizes da Imprensa Nacional, a quem é dedicado. Lá estão, no pequeno livro, os mapas de caixa da Imprensa Nacional de Lisboa e do Rio, sem falar num excelente guia de revisão, até hoje adotado oficialmente naquela repartição, é claro que com algumas modificações.
Os acontecimentos políticos do último ano da Monarquia, porém, vieram alterar por completo a vida do tipógrafo João Henriques. Em fins de 1888, organizara-se a resistência liberal. A 23 de novembro, os senadores do partido dirigem uma circular aos diretórios das províncias e do município neutro, convocando-os para um congresso, que se reunirá no Rio de Janeiro, em maio do ano seguinte. Sinimbu, Lafaiete, Otaviano, Afonso Celso estão à frente do movimento. Pensou-se, desde logo, em lançar um jornal para a grande campanha. E, em dezembro, a Tribuna Liberal estava nas ruas.
João Henriques também fora convocado, para tomar conta das oficinas do novo órgão, montadas na Rua Nova do Ouvidor.
Uma vez reunido, o Congresso Liberal reajustou o programa do partido, pedindo agora: o alargamento do voto pelo escrutínio secreto, sendo considerado eleitor todo cidadão que soubesse ler e escrever; reforma da administração provincial; direito de reunião; casamento civil obrigatório; plena liberdade de cultos; temporariedade do Senado e reforma do Conselho de Estado, além de liberdade e melhoramento do ensino.11
Rui Barbosa divergira, em parte, do programa, com o seu famoso voto em separado, pela federação, no que foi secundado por dezoito congressistas, Cesário Alvim inclusive.
Sem deixar o emprego público, João Henriques trabalhava de noite na Tribuna Liberal e, muitas vezes, levou até à oficina do jornal o pequeno Afonso, que ficava na rua, brincando, enquanto o pai ia paginando as crônicas literárias de Valentim Magalhães e os artigos políticos de Carlos de Laet.
“[...] pouco antes de vir a república”, escreveu o romancista, recordando essa fase da primeira infância, “eu brincava, com outros meninos, cujos destinos não sei, de marche aux flambeaux, quando meu pai era paginador da infausta Tribuna Liberal e eu vinha passar a noite ao seu lado”.12
Naquela rua de tantas recordações, Rua Nova do Ouvidor, Lima Barreto viu pela primeira vez o Príncipe Ubá, um dos tipos populares mais interessantes do Rio, e aprendeu cantigas de roda, das que evocaria mais tarde numa série de crônicas de jornal:
Menina, quando tu fores
Escreve-me pelo caminho.
Se não tiveres papel,
Nas asas de um passarinho.
Da boca fazei tinteiro,
Da língua, pena aparada;
Dos dentes, letras miúdas,
Dos olhos, carta fechada.13
Poucos dias após o encerramento do Congresso Liberal, o partido é chamado novamente a governar, ficando o Visconde de Ouro Preto encarregado de organizar o Ministério, que durou no poder cento e sessenta dias.
Na sessão de 11 de junho, Afonso Celso comparece ao parlamento para comunicar à nação o nome dos novos ministros. Lê o seu programa de governo em meio a uma tempestade de apartes. Em dado momento, exclama o deputado Pedro Luís: “É o começo da República”, ao que o presidente do Conselho retruca com energia: “Não; é a inutilização da República”.
O tumulto cresce e se generaliza, passando do recinto às galerias. Respondendo a Ouro Preto, o padre João Manuel termina o seu discurso com um “Viva a República”. O primeiro-ministro ergue-se da cadeira impetuosamente e proclama sob aplausos dos liberais: “Viva a República, não! Não e não! Viva a monarquia brasileira, tão democrática, tão abnegada, tão patriótica, que seria a primeira a conformar-se com os votos da nação e a não lhe opor o menor obstáculo, se ela, pelos seus órgãos competentes manifestasse o desejo de mudar de instituições”.14
Palavras. Palavras. A Monarquia tinha os seus dias contados. Estando os liberais em minoria nas duas câmaras, o Congresso teve que ser dissolvido. Elegeu-se outro, com maioria liberal. E Ouro Preto, aparentemente vitorioso, inicia a execução do seu programa de governo, visando a refrear a onda revolucionária, pela aplicação dos mesmos princípios defendidos pelos adversários do regime.
A tática não daria resultado, pois a agitação já estava nas ruas.
À propaganda republicana, cada vez mais intensa, uniu-se o descontentamento dos militares. Ouro Preto era considerado inimigo das classes armadas, apesar de ter sido ministro da Marinha, num dos momentos mais difíceis da Guerra do Paraguai, e de, quebrando a praxe, entregar a um general e a um almirante as pastas da Guerra e da Marinha, até então tradicionalmente exercidas por civis.
Veio afinal a República. A Tribuna Liberal não fecha as portas. Continua lutando. Preso Ouro Preto, o jornal não se intimida e previne, em artigo de fundo, que “somente se calará pela violência”. A 19 de novembro, divulga que a redação tem recebido inúmeras cartas anônimas, prometendo ataques ao jornal e ameaçando a vida dos que ali trabalham. Essas cartas, diz a notícia, são atiradas na “cesta de papéis inúteis”. E mais adiante: “Nossa vida e propriedade poderão ser destruídas de um momento para outro; enquanto não o forem, saberemos cumprir nosso dever”.
Nesse mesmo dia, Ouro Preto era deportado para a Europa, a bordo do navio alemão Montevidéu.
A Tribuna publica amplo noticiário do embarque. Conta que, pela manhã, Quintino Bocaiúva fora buscar o ex-primeiro-ministro em um coupé no quartel do 1º Regimento de Cavalaria, conduzindo-o até o Arsenal de Guerra, que apresentava “aparato bélico anormal”: baterias Krupp em posição de combate, metralhadoras Nordenfelt, canhões rápidos Hotchkiss. “Apesar de ninguém saber a que horas seguiria o navio”, continua o noticiarista, “de não ter havido participação alguma e do receio de qualquer violência dos ditadores, foi enorme o concurso de amigos” que foram “estreitar em seus braços” o chefe liberal que partia para o exílio.
Entre esses, lá se encontrava João Henriques de Lima Barreto, modesto correligionário do Visconde de Ouro Preto, mas nem por isso menos corajoso ou menos dedicado que os outros. Enfrentava, assim, a perseguição dos republicanos, sem temor de perder o emprego da Imprensa Nacional, onde exercia as funções de mestre de composição, desde a reforma de julho de 1889, decretada por Ouro Preto.
Dia a dia, a Tribuna Liberal aparecia mais agressiva. A 28 de novembro, a direção do jornal informa que a circulação havia triplicado do dia 15 em diante. “Isto prova que a virilidade do povo brasileiro, se porventura entibia-se por momentos, cedo recobra seus meios de ação”, concluía o redator. Noutro local, anuncia-se a implantação do terror, com o fuzilamento dos marinheiros. Um marujo, que se recusara a arriar o pavilhão imperial, a bordo do Parnaíba, fora morto a tiros de revólver por um dos oficiais do navio. A linguagem é sempre dura, um verdadeiro desafio aos homens que estavam no poder, que fizeram a revolução em nome da Ordem e do Progresso.
No seu aniversário, a 1º de dezembro, a Tribuna abre novamente as baterias contra o governo revolucionário. No alto da primeira página, informa que a tiragem da edição atingira a bela soma de 22.500 exemplares. A cidade andava cheia de boatos de que o jornal seria atacado a qualquer momento. Praças de cavalaria e infantaria guardavam a redação.
No dia anterior, Carlos de Laet fora preso em sua residência, conduzido de bonde até a polícia, para dar explicações. Falava-se em conspiração contra o regime, e o órgão monarquista era apontado como o ninho dos agitadores. Segundo ele próprio, relatando a sua prisão, prestou o seguinte depoimento, perante a autoridade:
“Minha vida é regular como um cronômetro. Acordo e, depois do banho frio e do almoço, ocupo-me a lecionar meus filhos, evitando tocar na História do Brasil, que tem coisas muito tristes. Em seguida, entre o meio-dia e as duas horas da tarde, desço a Rua do Ouvidor e vou à Tribuna Liberal escrever um ou mais dos artigos de oposição que você tem lido. Saio às quatro ou cinco horas e ordinariamente volto a jantar com a família, em casa, dali saindo entre as sete e oito da noite, outra vez para a Tribuna, a fim de rever provas e escrever mais algumas notícias. Da Tribuna, às dez ou onze da noite, não raro mais tarde, quando o exige o serviço, torno para casa e durmo como um justo até a manhã seguinte.”15
Mas a verdade é que as coisas não andavam para brincadeiras. Pesavam sobre a Tribuna Liberal sérias ameaças, após a denegação pelo Supremo Tribunal do habeas corpus impetrado a favor de Silveira Martins, do qual fora Carlos de Laet um dos signatários. O líder gaúcho seguira também para o degredo. Além disso, o motim de 18 de dezembro, no 2º Regimento de Artilharia, em São Cristóvão, inspiraria ao governo provisório novas represálias e maior vigilância aos “conspiradores”. Foram presos vários líderes monarquistas. “O Conselheiro Tomás Coelho, ex-ministro da Guerra e senador, passou pela Rua do Ouvidor a pé, sem chapéu, metido dentro de uma escolta de oitenta praças.”16
Tudo isto se passava sem uma palavra de protesto. A própria Tribuna Liberal fora intimada a “não dar notícia que pudesse alvorotar o espírito público”, conforme declaração de um sobrinho do Marechal Deodoro, portador da mensagem do governo, a Carlos de Laet.17 Mas não ficou nisso. A 23 de dezembro, é dada à publicidade a chamada “lei dos suspeitos”, punindo os “que promovem por palavras, escritos ou atos a revolta civil ou a indisciplina militar”.
No mesmo dia, o proprietário da Tribuna, Antônio de Medeiros, era demitido, pelo ministro da Fazenda, Rui Barbosa, do emprego que exercia, desde 1885, na Imprensa Nacional. A 25, a Tribuna suspende a circulação, não sem publicar a entrevista de Carlos de Laet com Quintino Bocaiúva, na qual o ministro do Exterior confirma “que nas disposições do decreto contra os conspiradores a palavra escritos se referia a toda e qualquer publicação pela imprensa”.18
Era a rolha. Já não havia mais liberdade.19
Em certas repartições, como na Imprensa Nacional, a pressão contra os monarquistas foi tremenda. João Henriques era visado, dada a sua condição de compadre do Visconde de Ouro Preto. Dizia-se, à boca pequena, que a reforma da Imprensa fora feita sob medida, para recompensar os que haviam prestado serviços à Tribuna Liberal. João Henriques era um deles. Fora promovido, aumentado em seus vencimentos.
Há um curioso documento no arquivo de Rui Barbosa, que denota a vigilância dos republicanos sobre o humilde funcionário, que servia à causa do Partido Liberal. O documento, embora sem data e sem assinatura, não custa crer constituísse denúncia de algum funcionário da Imprensa, prejudicado em seus interesses, e era dirigido ao jornalista que chefiava a campanha contra Ouro Preto e que seria mais tarde o seu substituto na pasta da Fazenda.
Assim rosnou o delator:
“Exmo Sr. Conselheiro Rui Barbosa. É verdade tudo quanto diz o Sr. Galvão,20 relativamente aos méritos pessoais e técnicos do Sr. Lima Barreto, mas também não é menos verdade que: 1º) o Sr. Lima Barreto foi encarregado de montar as oficinas da Tribuna Liberal, sendo para isso dispensado de horas e até dias de serviço da Imprensa Nacional; e para ocupar o lugar de paginador da mesma oficina, como tem sido até aqui, foi também sempre dispensado nas oficinas do Estado uma hora antes de ali findar o trabalho pelo regimento da casa. 2º) Tanto o Sr. Lima Barreto deveria receber essa recompensa, que dias antes de ser chamado o Sr. Visconde de Ouro Preto para organizar o gabinete de junho, já o Sr. Galvão estudava o projeto de reforma, há menos de um mês publicado,21 que elevava os vencimentos do chefe da composição de 250$ a 300$ mensais. 3º) Que não sendo esse o único que deve ser recompensado pelos serviços prestado à Tribuna Liberal, também a referida reforma elevou de 4:200$000 os vencimentos do ajudante de administrador, com a declaração de que para este lugar só poderia ser nomeado quem tivesse habilitações técnicas provadas, tanto quer dizer quem provar que já ali esteve exercendo quase esse lugar de fato, ou para melhor quem se chamar Antônio de Medeiros, que daí saiu com licença dada pelo Conselheiro João Alfredo, para, contra o expresso no Código Comercial, ser sócio solidário do Sr. Visconde de Ouro Preto na Tribuna Liberal. O Sr. A. J. Cardoso Pereira de Barros, que atualmente exerce o encargo de administrador ajudante suspira há muito tempo pela sua aposentadoria, e esta ser-lhe-á dada; quando estiver para efetuar-se a mutação à vista da retirada do atual gabinete, para então receber a recompensa prometida ao Sr. Medeiros, que logo que se organizou o atual Ministério, pediu demissão do lugar que exercia na Imprensa Nacional (licenciado pelo Sr. João Alfredo), para não ficar sendo subalterno e sócio solidário do Sr. de Ouro Preto. E se assim não fosse como se explicaria a elevação dos vencimentos desses dois lugares e de outros protegidos, e o ter ficado na mesma o chefe da revisão, que é também liberal e muito distinto, de merecimentos literários e reconhecida probidade? – É porque esse não entrou na organização da Tribuna e parece não andar por lá em cheiro de santidade.”22
Com a demissão de Medeiros,23 a sorte de João Henriques estava lançada. Mas não esperou que o demitissem. Ele mesmo se despachou. Um dia, chegando ao trabalho à hora de costume, foi advertido por um colega de que o seu nome estava na “lista negra”. Acabava de vestir o paletó de alpaca e se dispunha a iniciar a tarefa cotidiana. Dando de ombros, perguntou:
– Ora essa, por quê?
– Você não é monarquista? Não foi ao bota-fora de Ouro Preto? Não foi?
– Sim. Sou monarquista. Fui ao embarque de Ouro Preto. E que é que tem isso?
– Tem que você vai ser demitido. O Rui Barbosa vai demiti-lo, talvez hoje mesmo.
João Henriques não vacilou. Tirando o paletó, respondeu ao colega intrigante:
– Pois não terá esse gosto. Eu mesmo peço a minha demissão.
E ali mesmo redigiu o requerimento ao novo ministro da Fazenda, desligando-se definitivamente da Imprensa Nacional, onde havia trabalhado doze anos a fio.24
Notas
1 Almanaque Laemmert, Rio de Janeiro, 1881.
2 Na verdade, somente a 13/06/1883 conseguiria Amália Augusta licença para abrir e dirigir externato de instrução primária, conforme se lê no Título de Capacidade que lhe foi conferido pela Inspetoria-Geral de Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, passado a 01/05/1883. (Documento pertencente ao arquivo do autor.)
3 Ver Relação do Pessoal Amovível da Tipografia Nacional, março e abril de 1878, no Arquivo do Departamento da Imprensa Nacional. O último número d’A Reforma circulou a 31/01/1879.
4 Diz o Almanaque Laemmert, de 1881: o município neutro tem 101.544 km2 e 274.972 habitantes, segundo o recenseamento de 1872, 30.918 casas, sendo 1.873 desabitadas. População escolar, de 6 a 15 anos: 41.514; 22.237 meninos e 19.277 meninas. Não obstante, além das escolas municipais, os colégios de meninos eram em número de 65 e os de meninas, 94. Quanto aos demais dados, foram colhidos na Gazeta de Notícias, números de dezembro de 1879.
5 No livro 9, fls. 71v., de assentamentos de batismo da Matriz de N. S. da Glória, encontra-se o seguinte: “Aos 13 dias do mês de outubro de 1881, nesta Igreja Matriz de N. S. da Glória, o Reverendo Manuel Lourenço Pereira de Magalhães, meu coadjutor, solenemente batizou o inocente Afonso, nascido nesta freguesia no dia 13 de maio do corrente ano, filho legítimo de João Henriques de Lima Barreto e Amália Augusta Barreto, fluminenses. Foi protetora N. S. da Glória e padrinho o Senador Afonso Celso de Assis Figueiredo. De que fiz este assentamento. O vigário, Cônego Manuel da Costa Honorato”.
6 “A Glória, do alto do outeiro”, recordou o romancista, “com o seu séquito de palmeiras pensativas, provocou-me pensar e rememorar minha vida, cujo desenvolvimento – conforme o voto que os meus exprimiram no meu batismo – se devia operar sob a alta e valiosa proteção de Nossa Senhora da Glória” (Gonzaga de Sá, p. 39).
7 Isaías Caminha, p. 80, e p. 57.
8 A referência pertence ao próprio Lima Barreto. Ver “A estação”, trabalho publicado postumamente na Revista Sousa Cruz, Rio de Janeiro, números de dezembro de 1926 e janeiro de 1927. Ver também Feiras e mafuás, p. 145.
9 Ver Relação do Pessoal Amovível da Imprensa Nacional, julho de 1888.
10 Manual do aprendiz compositor, por Jules Claye. Traduzido da língua francesa, por J. H. de Lima Barreto, chefe da turma da Imprensa Nacional. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1888. 139 p.
11 Visconde de Ouro Preto, por Afonso Celso, 1935, p. 46-47.
12 “O meu almoço”. Artigo n’A Notícia, Rio de Janeiro, 03/06/1920 (Feiras e mafuás, p. 285).
13 “[...] estas quadrinhas, que sempre ouvi e recitei em criança [...].” Afora os contos de Perrault, fixou também na memória as “histórias humildes do Compadre Macaco, de Mestre Simão e da Comadre Onça, dos meus pobres 7 anos de idade”, confessou no mesmo artigo “As mágoas e os sonhos do povo”, em Hoje, Rio de Janeiro, 20/03/1919. Todos esses artigos estão reunidos no volume Coisas do Reino do Jambon, p. 241 e segs. Uma dessas histórias, aliás, vem no Policarpo Quaresma, sob o título: “O macaco perante o juiz de Direito”, p. 53-54.
14 Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto, p. 426.
15 Tribuna Liberal, número de 20/12/1889. As demais citações foram tiradas do mesmo jornal.
16 Fastos da ditadura militar no Brasil, por Frederico de S. [Eduardo Prado], 1ª série, 1890, p. 29.
17 V. o trabalho de Carlos de Laet, intitulado “A Imprensa”, no 2º volume d’A década republicana, p. 67-191.
18 Frederico de S. [Eduardo Prado], Fastos da ditadura militar no Brasil, p. 112-113.
19 Contra a supressão da liberdade de imprensa, naquele período, só se registrou um protesto: o do Apostolado Positivista do Brasil, pela voz de seu diretor, Miguel Lemos, na seção livre do Jornal do Commercio, de 26/12/1889.
20 Antônio Nunes Galvão, administrador da Imprensa Nacional, que foi também demitido pelo governo provisório. Esse primeiro período faz presumir que a delação não se resume apenas a esse documento.
21 Ver Regulamento, Instruções e Regimento Interno para a Imprensa Nacional, a que se refere o Decreto nº 10.269, de 20 de junho de 1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, 72 p. O Regimento traz a data de setembro, e possivelmente foi dado à publicidade um mês depois, em plena campanha do Diário de Notícias, dirigida por Rui Barbosa, contra o ministério Ouro Preto.
22 A cópia desse documento foi-nos facultada pelo diretor da Casa Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe, a quem agradecemos.
23 Antônio de Medeiros continuou a luta, depois do fechamento da Tribuna Liberal, tirando um novo jornal, Tribuna, a 01/07/1890, assaltado e empastelado na noite de 29/11/1890, por um grupo de militares à paisana. Do assalto resultou a morte do revisor Romariz. Lima Barreto aproveitou o episódio no conto que intitulou “A sombra do Romariz” (Gonzaga de Sá, p. 213-215).
24 Depoimento de D. Evangelina de Lima Barreto. João Henriques foi exonerado da Imprensa Nacional a 11/02/1890. A tudo isso, acrescente-se o fato da visita do imperador à Imprensa Nacional, um dia antes da proclamação da República. O Diário Oficial, do dia 15, publica a seguinte notícia: “Visita – Sua Majestade o Imperador, acompanhado dos seus semanários, visitou ontem, às 2 1/2 horas, a Imprensa Nacional. Em companhia do Sr. administrador, por quem foi recebido, e do Dr. diretor do Diário Oficial, Sua Majestade percorreu todas as oficinas, examinando os serviços e manifestando-se satisfeito sobre os melhoramentos realizados. Sua Majestade retirou-se às 3 1/2, tendo sido acompanhado até à porta pelo Sr. administrador, todo o pessoal da central e Dr. diretor do Diário Oficial”.