Primeiros anos

Isto foi quando eu tinha seis anos. Meu pai tinha enviuvado e nós morávamos em uma casa muito pobre da Rua do Riachuelo!

(Feiras e mafuás, p. 266)

A mais forte impressão de Lima Barreto, nos primeiros anos da vida, foi sem dúvida a morte da mãe. Sem os carinhos de Amália, o mundo como que se fechou para o menino “taciturno, reservado e tímido” que era, embora com rompantes de alegria, saindo “a correr, a brincar, a cantarolar, pela casa toda, indo do quintal para as salas, satisfeito, contente, sem motivo e sem causa”, tal como o Horácio do conto “O filho da Gabriela”,1 certamente o autorretrato do escritor aos 6 anos de idade. E, sem as carícias e os abraços, maternos, “fechou-se em si e nunca mais teve crises de alegria”.2

A identificação do autor com o personagem não será difícil. A verdade é que Afonso se sentia igualmente abandonado e sem defesa. Tudo como que era dirigido, planejado e feito contra ele. “Aos sete anos”, confessa-se no Diário íntimo, “logo depois da morte de minha mãe, quando fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar”.3

Reagirá sempre assim, com extremada violência, ante as injustiças do mundo e as incompreensões das pessoas que o cercam. Com violência às vezes desmedida e inconsequente.

Guardou para sempre a imagem da mãe morta. Assim descreveu a cena que os seus olhos de menino retiveram na memória, ao mesmo tempo que deplorou as consequências da perda de Amália na sua vida sem carinho e sem amor:

“Só me lembro dela no caixão quando meu pai, chorando, me carregou para aspergir água benta sobre o seu cadáver. Durante toda a minha vida, fez-se muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infância, bem cedo firmou-se o meu caráter; mas, em contrapeso, bem cedo me vieram o desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar mágoas sem comunicá-las a ninguém – o que é um alívio sempre; enfim, muito antes do que era natural, chegaram-me o tédio, o cansaço da vida e uma certa misantropia.”4

Com Amália, Afonso aprendera o á-bê-cê.5 Depois da morte da mãe é que vai para a escola pública de D. Teresa Pimentel do Amaral, na Rua do Resende, nº 143-A. Há de recordar-se sempre, com simpatia, a professora tão boa e a escola tão modesta, “das suas duas salas de aula, daquelas grandes e pesadas carteiras do tempo”.6

Foi aluno aplicado, levava as lições a sério. E ainda, como o Horácio do conto, devia ir para o colégio “calado, taciturno, quase carrancudo”. Não gostava de brincar, conta a sua irmã Evangelina. Horácio também não gostava, e “se, pelo recreio, o contágio obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e sentava-se, vexado, a um canto”.7

Vivia sem agrados, o menino esquisito. Em matéria de beijos, só se lembrava de os ter recebido de uma velha mendiga, que vinha esmolar aos sábados à sua porta. Esperava toda a semana pela velha dos beijos, a quem entregava às escondidas o tostão que o pai lhe dava e que era, para isso, ciosamente guardado.8

Com os de casa, tomava atitudes de gente grande, como se fosse um homenzinho. Certa vez, ao ver a irmã castigada por uma criada, exigiu do pai que a despedisse. O episódio é curioso. Depois do falecimento da esposa, João Henriques contratara os serviços de uma ama, D. Clemência.9

Afonso recebera-a como a uma intrusa. Não admitia que a mãe fosse substituída, e a pobre Clemência, na sua rudeza e na sua ignorância, não soubera vencer a resistência do menino rebelde. Um dia, regressando do colégio, Afonso encontrou a irmã trancada num quarto às escuras. Protestou contra aquilo e abriu a porta, libertando-a do castigo. Quando João Henriques chegou para o jantar, já ninguém se lembrava do incidente, menos Afonso, que se dirigiu ao pai e, todo compenetrado, descreveu o que acontecera, terminando por dizer:

– Meu pai, a Clemência tem que deixar esta casa. É demais aqui.

Aos 7 anos, Afonso assistiu com o pai aos festejos da Abolição. A princesa Isabel assinara a Lei Áurea no dia do seu aniversário. João Henriques levou o filho ao Largo do Paço e à missa do Campo de São Cristóvão, para testemunhar o grande acontecimento. O menino ficou deslumbrado. Mais tarde, reconstituiu todas aquelas impressões que lhe ficaram, confusas e desordenadas, numa página de memória, que vale por um precioso testemunho.

“[...] dias antes da data áurea”, escreveu Lima Barreto, sobre o 13 de Maio, “meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.

“Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo Paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um skyscraper; e de lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

“Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.

“Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenços, vivas...

“Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.

“Houve missa campal, no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a Primeira Missa, de Victor Meirelles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez... Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estradas para bailes populares; houve desfiles de batalhões de escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual prefeitura, cercada dos filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.

“Ela me parecia loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado à traseira.”10

Não só Afonso, mas toda a meninada do colégio da Rua do Resende vibrou com o 13 de Maio!

“Eu tinha então sete anos”, continua o romancista com suas lembranças, “e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

“Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.

“Quando fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos havia tomado. A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da cousa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!

“Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

“Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: ‘Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”11

Ainda a propósito da Abolição, conservou Lima Barreto esta curiosa reminiscência:

Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a José do Patrocínio e outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se “Princesa e Mãe” e ainda tenho de memória um dos versos:

Houve um tempo, senhora, há muito já passado...12

Isto foi com o 13 de Maio. Do 15 de Novembro, quase nada tem que recordar. “Da tal história da proclamação da república”, disse, “só me lembro que as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha”.13

Seria a sua aversão ao regime, ou, mais propriamente, aos homens que o encarnavam, o que tornaria tão pobres as suas recordações da queda da Monarquia? É bem possível.

Eu, há mais de vinte anos”, escrevera noutra oportunidade, “vi a implantação da República. Vi-a com desgosto e creio que tive razão”.14

Ao contrário, há sempre um halo de ternura nas recordações dos últimos anos da Monarquia. É sempre com simpatia que se refere à princesa Isabel ou ao imperador. Dir-se-ia que os sentimentos de João Henriques contaminaram o filho na primeira infância, educado num clima de veneração aos grandes do Império. O pequeno Afonso Henriques, sempre levado pelo pai, assistiria extasiado, não somente aos festejos da assinatura da Lei Áurea, mas também, o que aconteceria pouco depois, à chegada de Pedro II da sua penúltima viagem à Europa.

“Não me lembro bem de tudo”, relembra o escritor, com indisfarçável carinho. “Sei só que ficamos na Rua Primeiro de Março; que havia muita gente; que o Largo do Paço estava coalhado de povo; mas não havia cordão, nem um bandão de policiais e militares de todos os matizes.

“Pedro II não se dava ao luxo de temer atentados e desembarcou numa lancha comum que, se não me falha a memória, naquelas épocas, se chamava ‘bonde marítimo’.”15

Com isso, Lima Barreto procurava atingir, embora indiretamente, a ostentação policial com que na República sempre foi cercado o chefe de Estado, além da dissipação dos dinheiros públicos. O escritor chegou, doutra feita, a fazer uma comparação, que é sem dúvida digna de registro, entre a vida modesta do imperador e o luxo dos hábitos do presidente da República.

“D. Pedro II”, diz ele, “que tinha por avós não sei quantos reis e imperadores, tinha três ridículas casas, no Rio de Janeiro, que eram da coroa ou da nação; e uma em Petrópolis, que era dele. Um nosso presidente qualquer, bacharel qualquer e filho de um coronel qualquer, tem quatro ou mais palácios suntuosos, recebe de vencimentos anualmente quase tanto quanto a antiga dotação imperial; o Estado paga a sua famulagem, enquanto a dele, o imperador pagava e, por muito favor, custeia unicamente o seu feijão com carne-seca, prato de luxo que ele não dispensa porque é hoje iguaria de potestade”.16

De fato, esse saudosismo monárquico era uma das extravagâncias do escritor revolucionário, que tudo recusava ao regime republicano, a ponto de dizer sem rebuços: “[...] o Brasil é uma vasta ‘comilança’.

“Esse aspecto da nossa terra para quem analisa o seu estado atual, com toda a independência de espírito, nasceu-lhe depois da república.

“Foi o novo regímen que lhe deu tão nojenta feição para os seus homens públicos de todos os matizes.

“Parecia que o império reprimia tanta sordidez nas nossas almas.

“Ele tinha a virtude da modéstia e implantou em nós essa mesma virtude; mas, proclamada que foi a república, ali, no Campo de Sant’Ana, por três batalhões, o Brasil perdeu a vergonha e os seus filhos ficaram capachos, para sugar os cofres públicos, desta ou daquela forma.”17

A crítica podia ser menos contundente, porém ainda há mais: “Uma rematada tolice que foi a tal república. No fundo, o que se deu em 15 de novembro foi a queda do partido liberal e a subida do conservador, sobretudo da parte mais retrógrada dele, os escravocratas de quatro costados.

“Isso de Benjamin Constant, Lopes Trovão, Silva Jardim foi uma isca que os matreiros, ‘bois de coice’ e ‘rapa-cocos’ outros de igual jaez, se serviram para ‘forrar’ a opinião da força e se apossarem do poder.”18

São palavras duras, que revelam talvez o ressentimento, vindo de longe, com a derrocada que ocasionou na vida paterna a implantação da República. É bem de imaginar-se a situação de João Henriques, perdendo, ao mesmo tempo, o lugar na Imprensa Nacional e o emprego na Tribuna Liberal. Nessa hora de aflição, o tipógrafo valeu-se dos Pereiras de Carvalho, a cuja casa amiga foi bater. Lá sabia que os filhos podiam ficar, como se fossem pessoas da família. E foi o que sucedeu.

Pouco mais de um mês durou o chômage. Em março de 1890, graças à boa vontade de Cesário Alvim, então no Ministério do Interior, João Henriques conseguira ser nomeado escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, que o governo republicano acabara de criar, ampliando e reformando o Asilo de Mendigos da Ponta do Galeão. Antigo militante do Partido Liberal, o ministro era seu velho conhecido do tempo d’A Reforma, e dispôs-se a consertar o desastre que fora, para o tipógrafo, a queda do regime monárquico.19

Naquele ano, João Henriques não levaria os filhos de mudança para a ilha. Afonso e Evangelina ficaram no Rio, para não interromper os estudos. O menino ia adiantado. Era inteligentíssimo. O pai não escondia o contentamento e, ao fim do ano, recebia com emoção a notícia do prêmio escolar que a professora havia conferido ao pequeno estudante: um belo volume encadernado e com gravuras d’As grandes invenções, de Luís Figuier, com uma transbordante dedicatória de D. Teresa Pimentel do Amaral:

“Afonso, guarda esse livro como uma lembrança de quem se orgulha de ter desenvolvido um pouco tua grande inteligência, da qual muito espera nossa cara Pátria; lendo-o, procurarás imitar as virtudes e a força de vontade dos grandes vultos, que aí se apresentam etc.”20

Já podia, agora, prestar os exames da Instrução Pública, tirar os primeiros preparatórios. O filho não teria a mesma sorte do pai, pensava João Henriques. Seria doutor! E o antigo tipógrafo da Tribuna Liberal procurou o compadre, que regressara havia pouco do primeiro exílio. O Visconde de Ouro Preto recebeu-o com a cordialidade dos velhos tempos, no seu escritório da Rua do Rosário, e concordou em custear a educação do afilhado.21

O menino matriculou-se no Liceu Popular Niteroiense, um dos melhores do tempo, frequentado pela gente rica. Os colegas de Afonso se chamavam Otávio Kelly, Américo Ferraz de Castro, Manuel Ribeiro de Almeida, Ricardo Greenhalgh Barreto, Caio Guimarães, os irmãos Sauerbronns Magalhães, Carlos Pereira Guimarães. Todos vão se destacar, mais tarde, na magistratura, no jornalismo, na carreira das armas, no magistério.

O Liceu ficava no Largo da Memória, num casarão de esquina com a Rua Nova, dando para uma grande chácara e de fachada toda revestida de azulejos. Era dirigido por Mr. William Henry Cunditt,22 que ali vivia com a família. Todos tomavam parte no ensino. Cunditt era viúvo, tinha duas filhas, Annie e Gracie, ambas professoras.

Escocês de origem, era homem dos seus 50 anos bem vividos, com grossas suíças vermelhas emoldurando o rosto largo, onde brilhavam olhos azuis, irrequietos e inteligentes. Viera para o Brasil por volta de 1860. Fora cônsul da Inglaterra no Rio de Janeiro, mas, desde que aqui chegara, esse homem singular, que se dizia sobrinho-neto do Almirante Nelson, entregou-se à lida de fundar e dirigir colégios. Deixou fama de grande educador. Tinha, de fato, uma atividade assombrosa. Não tinha parada. Fiscalizava as aulas, substituía os professores faltosos e ainda lecionava fora. Dirigia o Liceu, com cerca de sessenta alunos, entre internos e externos, aos quais aplicava, quando necessário, cascudos e puxões de orelhas. O regime não era, contudo, dos mais severos. A um ou outro, mais insubordinado, o “velho Cunditt”, como era chamado, deixava de pé, no refeitório, à hora do jantar.

Miss Annie saíra ao pai. Tomava conta do curso primário, dava aulas de inglês prático e, quando, em 1893, Mr. Cunditt morreu, encarregou-se ela própria da direção do colégio. Afonso afeiçoou-se à nova professora com um sentimento verdadeiramente filial.23

Poderia Miss Annie ocupar no seu coração o lugar de Amália? É difícil dizer. Bem podia ter sido, para ele, como a D. Ester, professora de Isaías Caminha, o foi para o seu personagem autobiográfico, a quem este amava com “tanta força d’alma” que teve “ciúmes dela, dos seus olhos azuis e dos seus cabelos castanhos, quando se casou”.24 Miss Annie, registre-se a coincidência, casara-se ao tempo em que Afonso frequentava o colégio. E também tinha olhos azuis e cabelos castanhos.

No Liceu Popular, o menino ficará até 1894, completando o curso secundário e parte do suplementar. Educação completa, como se vê, a que não faltariam rudimentos de música, embora o aluno evitasse as “coisas que tocassem em amor, em arte e emoção”. É que desejava ser “um homem enérgico, inacessível a tudo isso, engenheiro, talvez, a construir pontes, máquinas, cais ou coisas semelhantes”.25

Mas essa energia não passava de um reflexo da vontade paterna. Era, na realidade, um menino contemplativo, vivia metido consigo mesmo, fugindo sempre dos brinquedos, que nunca amou. Enquanto os colegas pulavam sela ou faziam exercício de barra fixa, durante o recreio, ele procurava o “mais afastado dos bancos”, sob uma das mangueiras da chácara, e ia ler o seu Júlio Verne, ou simplesmente devanear, olhando as nuvens, a recordar as aventuras do Capitão Nemo, de Robert Grant, do Dr. Lidenbrock, de Miguel Strogoff.26

Ao entrar para o Liceu, João Henriques lhe dera toda a coleção de Júlio Verne, que Afonso passava aos colegas mais chegados, como Manuel Ribeiro de Almeida, por exemplo, que travou conhecimento com as Cinco semanas em um balão e as Vinte mil léguas submarinas, através do seu esquivo companheiro do colégio.27

Além de Miss Annie, dois professores serão sempre lembrados: Francisco Varela e Frutuoso da Costa. O primeiro, Chico Varela, era um homem impetuoso, palrador, que ensinava História Geral e do Brasil, falando sempre com orgulho no seu parentesco com Fagundes Varela. Andava cheio de canivetes. Tinha a mania de colecionar armas, e um dia, por ocasião da revolta de 1893, apareceu no colégio com uma carabina.

O outro não era menos pitoresco. Frutuoso lecionava Francês e Latim. Esse preto mineiro estudara para padre, mas não chegara a ordenar-se. “Tudo nele”, diz o próprio Lima Barreto, “era desgosto, amargor; e, às vezes, deixávamos de analisar a Seleção, para ouvirmos de sua feia boca histórias polvilhadas dos mais atrozes sarcasmos. Os seus olhos inteligentes luziam debaixo do pince-nez e seu sorriso de remoque mostrava os seus dentes de marfim de um modo que não me atrevo a qualificar”.28

Nas aulas de Francês, Frutuoso aborrecia-se, não raramente, com a leitura arrastada e indiferente dos alunos que não se mostrassem empolgados com as belezas de Athalie. Ficava então desesperado. “[...] Tirava os óculos de aro de ouro, agarrava o Théâtre Classique, chegava bem perto dos olhos esse trecho da tragédia bíblica de Racine e declamava-o com entusiasmo eclesiástico de um patético sermão da Páscoa:

Je jouissois en paix du fruit de ma sagesse;

Mais un trouble importun vient, depuis quelques jours,

De mes prosperités interrompre le cours.

Un songe (me devrois-je inquiéter d’un songe?)29 V

O “padre” Frutuoso não admitia brincadeiras na aula. Quer nas de Francês, quer nas de Latim. Dirigia-se aos alunos com severidade:

– Sente-se aí, menino!

– Estou sentado, professor – dizia o aluno, arregalando os olhos de espanto.

– Está sentado, hein? Os macaquinhos também sentam. Os bichinhos também sentam. Mas não como os meninos bem-educados devem sentar-se. Sente-se direito.

E mandava conjugar o verbo doceo, docere.30

Afonso sofria com a vida do internato. Era dos tais que só a contragosto recitavam o verbo docere. Jamais se conformaria com a disciplina das aulas e dos estudos, com os gritos e as palmatórias dos professores, os horários certos para tudo, controlados pelo apito dos bedéis e pelo olhar policial dos decuriões.

Certa vez em que apertaram as saudades de casa, resolveu fugir do Liceu. Idealizou um plano como os heróis de Júlio Verne, e um belo dia surgiu no sítio da ilha. João Henriques repreende-o severamente. E o menino mais sucumbido ficou com as palavras do pai, em quem tanto confiava, julgando-se irremediavelmente incompreendido. Pensou então no suicídio pela segunda vez, conforme registrou no Diário íntimo, nesta assombrosa confissão:

“Armei um laço numa árvore lá do sítio da ilha, mas não me sobrou coragem para me atirar no vazio com ele ao pescoço.”31

Notas

1 Clara dos Anjos, p. 213.

2 Clara dos Anjos, p. 213.

3 Diário íntimo, p. 135.

4 “O único assassinato do Cazuza”, Gonzaga de Sá, p. 182.

5 Bagatelas, p. 62.

6 Bagatelas, p. 60.

7 Clara dos Anjos, p. 213-214. E mais o seguinte trecho de Isaías Caminha, p. 46: “Fugia aos brinquedos, evitava os grandes grupos, punha-se só com um ou dois, à parte, no recreio do colégio; lá vinha um dia, porém, que brincava doidamente, apaixonadamente. Causava com isso espanto aos camaradas: ‘Oh! o Isaías brincando! Vai chover...’”. Note-se ainda o depoimento de Manuel Ribeiro de Almeida: “Não me lembro de ter visto o Barreto brincando no colégio”.

8 “Todos os sábados, eu pedia a meu pai um tostão para dar a uma pobre velha que me ia esmolar, à porta da minha rótula paterna. Dei-lhe sempre a esmola e ela me beijava. Desses beijos, tenho eu ainda grandes saudades. Ela era velha, esquálida; mas, assim mesmo, ainda e sempre me lembrei dos seus beijos...” (Feiras e mafuás, p. 266).

9 “Em menino, logo após a morte de minha mãe, houve uma senhora idosa, Dona Clemência, que assessorava a mim e a meus irmãos, e ensinou-me um pouco de catecismo, o ‘Padre-Nosso’ a ‘Ave-Maria’ e as ‘Salve-Rainha’, mas, bem depressa nos deixou e eu não sabia mais nada dessas obrigações piedosas, ao fim de alguns meses” (Bagatelas, p. 96-97).

10 “Maio”, artigo de Lima Barreto, em Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 04/05/1911. Ver Feiras e mafuás, p. 255-256. Sobre a princesa Isabel, registra-se ainda o que escreveu o romancista por ocasião do seu falecimento: “[...] li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora” (Marginália, p. 35).

11 Feiras e mafuás, p. 256-257.

12 Feiras e mafuás, p. 256-257.

13 Bagatelas, p. 50.

14 Coisas do Reino do Jambon, p. 80.

15 Coisas do Reino do Jambon, p. 111.

16 Feiras e mafuás, p. 125-126.

17 Marginália, p. 79-80.

18 Coisas do Reino do Jambon, p. 110. Note-se que essas invectivas contra a República são de épocas distintas, conservando entretanto a mesma característica.

19 João Henriques foi nomeado escriturário a 05/03/1890. Ao assumir a direção d’A Reforma, em janeiro de 1872, Ouro Preto escreveu uma carta ao senador Nabuco de Araújo, comunicando-lhe que a redação do jornal se compunha dele, Ouro Preto, “e dos Srs. Drs. Dias da Cruz, Prado Pimentel, Bezerra de Meneses, Teófilo Ottoni, Carlos Afonso, Cesário Alvim e de Joaquim Serra”. (Ver Documento nº 57, lata número 390, do Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro).

20 O exemplar em apreço encontra-se na Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.

21 Na Col. Lima Barreto encontra-se o seguinte bilhete: “Niterói, 4 de março de 1893. Il Sr. Barreto. Em cumprimento de suas ordens, mandarei seg.ª feira o meu filho ao escritório do Exmo. Sr. Visconde de Ouro Preto receber o trimestre de seu filho Afonso, meu aluno. (a) William Cunditt”. Ver Correspondências, I, p. 33.

22 Nasceu em 07/10/1841. Morreu em 24/03/1893. Está sepultado no Cemitério dos Ingleses, no Rio de Janeiro.

23 “Otávio Carneiro”, artigo de Lima Barreto, em O Estado, Niterói, 09/03/1920. Ver Feiras e mafuás, p. 259. Annie Cunditt Guimarães, nascida em 15/02/1866, faleceu em 1936, tendo deixado grande renome na capital fluminense como educadora. Casou-se em 10/10/1891, conforme se lê nos apontamentos da família, conservados em poder da Sra. Vítor Bouças, bisneta de William Cunditt.

24 Isaías Caminha, p. 46-47.

25 Carta a Murilo Araújo, de 26/10/1916, onde há também a revelação: “estudei rudimentos de música, aos nove ou dez anos [...]”. Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional. Ver Correspondências, I, p. 275.

26 Histórias e sonhos, p. 132.

27 Informação do próprio Manuel Ribeiro de Almeida.

28 Bagatelas, p. 60.

29 Coisas do Reino do Jambon, p. 247-248.

30 Depoimento de Carlos Pereira Guimarães.

31 Diário íntimo, p. 135.

V Gozava em paz do fruto de minha prudência; / Mas uma perturbação inoportuna veio há alguns dias, / Da minha prosperidade interromper o curso. / Um sonho (devo me preocupar com um sonho?) (N.E.)