SEGUNDA PARTE
Adolescência
O sarampo positivista
Isto foi nos tempos em que eu era estudante e morava pela Lapa.
(Bagatelas, p. 283)
Terminado o liceu, Afonso tinha que enfrentar, agora, as bancas dos exames de preparatórios, para depois ingressar no curso superior, fazer-se doutor, com pergaminho e anel de grau. João Henriques queria ver o menino formado, realizando no filho o seu próprio sonho da adolescência. Parecia traçado de antemão o destino de Lima Barreto: seria engenheiro. Ele mesmo o confessaria mais tarde. Queria construir pontes, máquinas, cais ou coisas semelhantes.
O fato é que, aos 14 anos, o futuro romancista prestava os primeiros exames no Ginásio Nacional – nome com que os republicanos, nos ardores iniciais do novo regime, decidiram crismar o Imperial Colégio de D. Pedro II. Em janeiro de 1895, fez o de Português. E, logo em agosto, o de Francês.
Enquanto isso, preparava-se para os demais, estudando em casa, com o pai. Em princípios do ano seguinte, antes de matricular-se no Colégio Paula Freitas, presta exames de História Geral e do Brasil.1
Lente da Politécnica, o professor Alfredo de Paula Freitas estabelecera no colégio, de que era diretor e proprietário, um curso anexo para preparar os jovens que se destinavam à escola do Largo de São Francisco. Assim, mais uma vez, foi Lima Barreto para o internato. Se isto, em parte, o aborrecia, deve-lhe ter dado um certo orgulho íntimo, pois caminhava para a frente, ia de encontro aos próprios desejos e à vontade paterna de vê-lo na Escola Politécnica.
“Quando acabei o curso do liceu”, disse Lima Barreto pela boca de Isaías Caminha, “tinha uma boa reputação de estudante, quatro aprovações plenas, uma distinção e muitas sabatinas ótimas”.2 Que era bom estudante no Liceu Popular, atesta-o o boletim de notas, correspondente ao mês de fevereiro de 1895: “Francês – 4 boas; Inglês – 2 ótimas, 2 boas e 1 sofrível; História Geral – 7 boas; Matemática – 1 ótima, 4 boas e 1 sofrível”.3
No Paula Freitas, onde ficou todo o ano de 1896,4 como aluno interno, não teria comportamento diverso que no Liceu Popular. “Apesar da pouca idade”, depõe um dos colegas de então, “Lima Barreto não tinha jeito de menino. Antes parecia um velho. Não gostava de brincar. Enquanto os outros corriam pelo recreio, ele vivia metido nos cantos, com os seus livros e os seus problemas. Raras eram as suas expansões”.5
Outro depoimento interessante desse mesmo período é o de José Oiticica, revelando-nos, ao mesmo tempo, o gosto dos rapazes da época pelo debate dos temas filosóficos. “Um grupo reduzido de estudantes”, conta Oiticica, “cursava os últimos anos do Colégio Paula Freitas, uns externos, outros internos. Havia entre estes um positivista, Carlos Costa, e outro que discutia o positivismo do colega; era Lima Barreto”.6
Frequentaria Lima Barreto, já naquela altura, a capelinha do Apostolado Positivista, na Rua Benjamim Constant? Em 1896, talvez não, dada a sua condição de aluno interno. Mas no ano seguinte, quando começou a morar em pensões, juntamente com os outros estudantes, com certeza frequentou. Foi este ano de 1897, aliás, um verdadeiro marco na história da pregação positivista no Brasil. Concluíra-se o templo, cuja construção havia obedecido fielmente ao plano traçado por Auguste Comte. E Raimundo Teixeira Mendes, misto de filósofo e apóstolo, iniciara o seu famoso ensino enciclopédico, dedicado especialmente aos “adolescentes de 14 a 21 anos”.7
Não será difícil determinar o ano em que Lima Barreto se contagiou do sarampo positivista, tão em moda na época. “[...] aí pelos quinze anos e mesmo antes [...]”, é ele mesmo quem o diz, “[...] não tinha a mínima preocupação literária: havia até abandonado o meu Júlio Verne e todo eu era seduzido para o positivismo e cousas correlatas”.8
Além desta referência direta, em artigo assinado, outras há, embora indiretas, na obra do romancista, onde se fala da iniciação na doutrina comtista dos estudantes Isaías Caminha e Vicente Mascarenhas, este último personagem central do Cemitério dos vivos, livro que Lima Barreto deixou inacabado e no qual, talvez mais do que em qualquer outro, são evidentes as reminiscências autobiográficas.
Isaías recorda com ironia a sua passagem pelo positivismo. Fora conduzido até lá pela mão de um amigo, Abelardo Leiva, entusiasta de Teixeira Mendes, a quem considerava, no fervor da sua admiração, “a primeira cabeça do Brasil, uma inteligência enciclopédica, uma erudição segura, e, sobretudo, um caráter e um coração”.9
Sendo o Recordações do escrivão Isaías Caminha um roman à clef, é o caso de perguntar-se: a quem corresponderá, na vida real, esse Abelardo Leiva, poeta da escola de Castilho, admirador de B. Lopes e Macedo Papança, mas que não faltava às regatas, às quermesses, às tômbolas? Sim, quem será esse Leiva, socialista avançado, secretário do Centro de Resistência dos Varredores de Rua, conservando embora, como homem e como poeta, “sincera admiração pela beleza das meninas e senhoras de Botafogo”?
Em Abelardo Leiva, o escritor retratou possivelmente a Miguel Melo, seu colega da Escola Politécnica, poeta sofrível e que, mais tarde, havia de revelar-se jornalista de mérito. É sabido que, na mocidade, Miguel fora positivista fanático, chegando mesmo a distribuir, na Rua do Ouvidor, os folhetos de Miguel Lemos e Teixeira Mendes contra o privilégio funerário; a favor da liberdade profissional ou contra a vacinação obrigatória, em franca pregação revolucionária pela implantação da ditadura republicana. Em suma, tomava parte ativa em todos os movimentos orientados e dirigidos pelo comtismo brasileiro.
Bem outra seria a atitude de Lima Barreto, em face do positivismo. No Paula Freitas, já vimos como discutia com o colega Carlos Costa, rebatendo os argumentos do jovem iniciado na filosofia comtista. Fora do colégio, de quando em quando, se ia assistir ao culto na igrejinha da Rua Benjamim Constant, em companhia de amigos, era por simples desfastio ou curiosidade de adolescente letrado. Na verdade, achava tudo aquilo sumamente ridículo. E, como Isaías Caminha, não podia reprimir o riso, quando surgia o vice-diretor do Apostolado com a capinha verde aos ombros, “ao som de um tímpano rouco, arrepanhando a batina”, segundo descrição do próprio romancista, numa das melhores páginas do seu primeiro livro.10
De fato, Lima Barreto jamais pôde compreender a exterioridade do culto positivista, muito embora se tivesse deixado impressionar pela figura realmente notável de Teixeira Mendes. Respeitando o homem, repelia o pregador.
“[...] ficava assombrado”, são impressões que nos confiou através de Isaías Caminha, “com a firmeza com que ele anunciava a felicidade contida no positivismo e a simplicidade dos meios necessários para a sua vitória: bastava tal medida, bastava essa outra – e todo aquele rígido sistema de regras, abrangendo todas as manifestações da vida coletiva e individual, passaria a governar, a modificar costumes, hábitos e tradições. Explicava o catecismo. Abria o livro, lia um trecho e procurava o caminho para alusões a questões atuais, repetindo fórmulas para se obter um bom governo que tendesse a preparar a era normal – o advento final da Religião da Humanidade”.11
Não há dúvida de que Lima Barreto reagia tal qual o seu personagem, ao assistir às prédicas dominicais de Teixeira Mendes. Eram dele os olhos irônicos de Isaías Caminha, diante dos sermões intermináveis do apóstolo. Olhos que só viam o lado grotesco. Para autor e personagem, as palavras, proferidas com tanta convicção, morriam ali mesmo, de encontro às paredes do templo, sem impressioná-los, a ponto de ambos duvidarem da sinceridade dos que as ouviam em êxtase quase religioso.
“[...] eu achava”, comenta Isaías, “toda aquela dissertação tão intelectual, tão balda de comunicação, tão incapaz de erguer dentro de mim o devotamento, o altruísmo, ‘o esforço sobre mim mesmo em favor dos outros’, como dizia o apóstolo, que me quedava a indagar até que ponto o auditório respeitoso estava convencido e até que ponto fingia convicção”.12
Por seu turno, o depoimento do segundo personagem, Vicente Mascarenhas, parece-nos ainda mais convincente.
“A minha passagem pelo positivismo”, diz o protagonista do Cemitério dos vivos, “foi breve e ligeira. Frequentei o apostolado cerca de um ano; mas, apesar de me ter convencido de muita cousa da escola, eu, até hoje, nunca pude acreditar que aquele conjunto de doutrinas, capazes de falar e seduzir inteligências, fosse capaz de arrebatar corações com o ardor e o fogo de uma fé religiosa.
“Deu-me, entretanto, a frequência daquela curiosa igreja o gosto pelas leituras de autores antigos, dos mestres que todos nós, em geral, só conhecemos de nome ou por citações de citações.
“Lembro-me bem que lá adquiri uma brochura do Discours de la méthode, de Descartes, em tradução. Li-a com atenção, sem fadiga, antes com prazer. O que me encantou no livrinho do filósofo francês foi preconizar ele a dúvida metódica, senão sistemática, a tábua rasa preliminar, para se chegar à certeza.”13
Nada há de ficção no trecho acima transcrito. Mascarenhas é o próprio Lima Barreto, o mesmo que depois vai investir contra os positivistas brasileiros com uma fúria desmedida e talvez injusta, ao descrever os excessos de Floriano Peixoto, durante a revolta de 1893. É que os comtistas haviam tomado o partido da ditadura. Daí o ódio do escritor que explodiu desta maneira no Policarpo Quaresma:
“Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regímen normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha!...”14
O leitor de Descartes não podia concordar com as violências que se praticavam em nome de uma religião ou de uma filosofia. Mas nem por isso Lima Barreto deixaria de fazer justiça aos seguidores de Teixeira Mendes. Mais tarde, no fim da vida, virá a reparação, não com elogios descabidos, mas em crítica perfeitamente razoável.
“Não se pode dizer muito mal do positivismo”, reconheceu o romancista, num artigo publicado na Gazeta de Notícias, em 1921, um ano antes da morte. “Ele trouxe vantagem à nossa cultura e às nossas instituições políticas.”
“Quanto à cultura, o comtismo republicano, com todos os seus exageros dogmáticos, mostrou bem que toda aquela que não se baseava no estudo da ciência, tendo por princípio a matemática, era inane e não valia nada.”15
Aí está uma opinião sincera sobre o positivismo brasileiro. Apesar do fanatismo que levou a pregação doutrinária e religiosa às proximidades do ridículo, não se pode negar, é claro, a ação até certo ponto benéfica, política e socialmente falando, dos dois apóstolos Miguel Lemos e Teixeira Mendes, figuras sem dúvida de primeira ordem no plano moral e no plano intelectual, e que tão grande influência exerceram em longo período de nossa vida republicana.
1897 fora um ano cheio para o estudante Afonso Henriques de Lima Barreto. Nos meses de janeiro, fevereiro, março e abril conclui todos os preparatórios que lhe faltavam no Ginásio Nacional – Inglês, Física e Química e História Natural: faz também os exames vestibulares para a Escola Politécnica – Desenho Geométrico Elementar, Álgebra, Geometria, Trigonometria Retilínea e Álgebra Superior, matriculando-se, por fim, no curso geral de Engenharia Civil. Foi bem-sucedido em todas as provas, embora não conquistasse notas brilhantes.
Depois da vida dos colégios internos, Lima Barreto vai passar, agora, por uma nova experiência: a vida nas pensões de estudantes. O companheiro de quarto, durante os cinco anos em que frequentou a Escola Politécnica, chama-se Nicolau Ciancio, um rapaz italiano, pobre como ele, com um repertório de aventuras de que tinha participado como soldado na campanha da Etiópia, quando as tropas de elite do rei Umberto I foram espetacularmente derrotadas pelas hordas guerreiras do Negus Menelique.
“Moramos juntos”, escreve o bondoso Ciancio, que por sinal nada tinha de guerreiro, “primeiro, naquele velho casarão da Rua do Carmo, esquina da Rua do Ouvidor, em frente ao Beco das Cancelas... e depois na Rua das Marrecas nº 2, ‘chez Madame Jeanne Parisot’, uma boa velhinha francesa, desesperada com os seus jovens inquilinos, que eram uns quinze ou vinte estudantes.
“Parreche bichas criadas no mato!”16 – vivia a reclamar a pobre senhora.
Que faziam esses rapazes no Rio de Janeiro nos fins do século passado? Poucos atrativos oferecia a cidade, mas aos olhos daqueles “bichas criadas no mato” a Capital Federal era um deslumbramento. Os esportes limitavam-se quase exclusivamente às competições de ciclismo ou de rowing, mas o jovem Lima Barreto, ao contrário de muitos colegas, não gostava de regatas. Era porém nadador exímio. Na Ilha do Governador, com os irmãos, praticava também o remo, mais isso em família. Seria incapaz de aparecer em público, em roupa de meia, com pernas e braços de fora, como tantos dos seus companheiros de colégio ou de faculdade.17
Não deveriam atraí-lo, por igual, nem as corridas de touros, que constituíam, no Rio de Janeiro daquele tempo, um espetáculo excitante, nem as corridas de cavalos. Mas certamente foi espiar – mera curiosidade! – o Cinematógrafo de Edison, exposto na Rua do Ouvidor pelo prestidigitador Moya, apresentando, entre outras coisas maravilhosas, vistas animadas da chegada do trem de Petrópolis. Um sucesso! O cinematógrafo tinha colossal concorrência. A acreditarmos na notícia publicada na Cidade do Rio, a 5 de maio de 1897, cerca de duas mil pessoas visitaram num só dia o “extraordinário invento”.
Apesar do sucesso do cinematógrafo, que o carioca deve ter considerado novidade sem maior importância e talvez passageira, os teatros estavam sempre cheios. O Recreio dava em reprise o Rio Nu, que esgotara lotações um ano atrás. Era o tempo das grandes revistas e do teatro ligeiro, que proliferou, pouco depois, nos cafés-cantantes como o Jardim da Guarda Velha, com exibição de cançonetistas que deram que falar às nossas avós: Jenny Cooke; a salerosa Sofia Camps; Jeanne Cayot, danseuse cosmopolite; Lili de Lídia, gommeuse excentrique e trapezista fin de siècle.
Além das revistas brejeiras e do music-hall, havia também o teatro sério, onde Lucinda Simões brilhava como estrela de primeira grandeza. Em companhia do pai, Lima Barreto assistiu à representação da sua “querida Lucinda”, como a invocou certa vez, nas expansões íntimas do seu Diário.18 Admirou-a certamente em Georgette, na Casa de Bonecas ou em Teresa Raquin, pois tudo isso viveu a atriz famosa, em pleno esplendor, no palco carioca nos últimos anos do século XIX.
O pequeno Rio de então parecia resumir-se na Rua do Ouvidor. Era a chamada sala de visitas da cidade, onde desfilam políticos, literatos e moças elegantes. Os cronistas sociais descreviam os vestidos em francês. Era o chic da época. “Mme Daniel Macedo et sa soeur Mme Herculano Sampaio. La première dame: en foulard gris fantaisie garni de plumes noires. La seconde: en foulard bleu marin à pois. Chapeaux paille entouré de roses. Mlles Adelia et Chiquita Rui Barbosa. Toutes deux: très élégantes et très chics.”19
Também Lima Barreto descreveu a Rua do Ouvidor, entontecido pelo espetáculo mundano: “Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas; eram como grandes e pequenas embarcações movidas por um vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. Se uma roçava por mim, eu ficava entontecido, agradavelmente entontecido dentro da atmosfera de perfumes que exalava. Era um gozo olhá-las, a elas e à rua, com sombra protetora, marginada de altas vitrinas atapetadas de joias e tecidos macios”.20
Mas não era só o desfile das “encantadoras” que dava prestígio à Rua do Ouvidor. Ali havia de tudo, conforme disse, ao descrevê-la, um cronista anônimo, empregando, no seu estilo canhestro, todos os cacoetes da moda: “Aí, discussões políticas há entre pessoas que formam grupos distintos nos quais se examina e se estuda por alto as mais elevadas questões que interessam a direção dos negócios públicos; admira-se a nossa elegância feminina em todo o seu esplendor; travam-se diálogos renhidos sobre a superioridade deste ou daquele animal de corridas; joga-se, às claras, nos bichos; fala-se da vida alheia continuamente; namoricos e casamentos se fazem com a maior facilidade; conversa-se sobre o mérito ou a beleza desta ou daquela artista do nosso teatro; entra-se nas confeitarias e cafés, toma-se qualquer coisa; olha-se para as senhoras e palestra-se com algum amigo, encontrado ao acaso, para matar o tempo; sabe-se das últimas novidades literárias; conversa-se sobre a política exterior; é-se vítima da gatunagem e da impertinência dos vendedores de bilhetes; tem-se o que há de bom, elegante, rico, nos diversos estabelecimentos da moda; às vezes, surge uma ‘bernarda’ – destruição de jornais e correrias, como diversão; quando chove, há lama em quantidade; quando faz sol, há poeira extraordinária; nos domingos, dias santos e feriados, é quase um cemitério; nos outros dias, é o ponto de maior concorrência da nossa bela Sebastianópolis...”.21
Deixou de acrescentar que, a dois passos dali, ficava a Escola Politécnica, no Largo de São Francisco de Paula, com a estátua de José Bonifácio ao centro de um pequeno jardim, rodeado de quiosques. Junto à Rua do Ouvidor, já existia o Café Java. E, no outro canto da praça, a Confeitaria de São Francisco de Paula vendia deliciosas empadinhas, a duas por um tostão. Dois quarteirões adiante, na esquina da Rua Gonçalves Dias, esguiam-se os Hotéis Ravot e Frères Provençaux, ambos de má reputação, pois ali se reuniam as cocottes, polacas e francesas de alto bordo. Havia, por perto, mulheres de outro preço, bem mais baratas, as chamadas “charuteiras”, que ainda não tinha desaparecido de todo da Rua Gonçalves Dias, ou as fêmeas de rótula da Rua do Cano, que pendiam das janelas das casas como “descoradas orquídeas”, para usar de imagem do próprio Lima Barreto.22
No entanto, a vida do estudante Lima Barreto limitava-se às aulas e às longas leituras na Biblioteca Nacional, àquele tempo localizada ainda num velho prédio da Rua do Passeio. As mulheres não lhe entravam nas cogitações. Preocupava-o o estudo da filosofia, agora que estava curado do sarampo positivista. E, na sua curiosidade autodidata, fazia planos, traçava programas, como este que aí vai transcrito letra por letra, tal como foi encontrado nos papéis íntimos do escritor:
“Curso de filosofia feito por Afonso Henriques de Lima Barreto para Afonso Henriques de Lima Barreto, segundo artigos da Grande Encyclopédie Française du Siècle XXème, outros dicionários e livros fáceis de se obter.
“O curso será feito segundo a história do pensamento filosófico, devendo cada época ser representada pela opinião dos seus mais notáveis filósofos. Na passagem de uma época para outra, constituirá o grande objetivo do curso estabelecer a ligação dos dous pensamentos, as suas modificações e o que se eliminou de um e porque essa eliminação foi feita, assim como as reações da ciência e da arte. Dessa maneira, o curso será dividido em quatro partes:
“1ª) Filosofia geral. Modo antigo de entendê-la e modo moderno de encará-la. Definição. Divisões. Lógica. Metafísica. Teodiceia. Filosofias particulares das ciências e das artes. O lugar que lhes compete. Fim da filosofia. Utilidade. (2 lições).
“2ª) Filosofia antiga. a) Filosofia grega (3 lições). b) Filosofia alexandrina (2 lições). c) Filosofia romana (2 lições). d) Pensamento antigo.
“3ª) Filosofia da Idade Média. Filosofia árabe. Escolástica. Pensamento medievo (4 lições).
“4ª) Filosofia moderna. Escolas. Filosofias (5 lições).
“5ª) Filosofia contemporânea. Sociologia. Estudo das raças. Teorias (4 lições). Pensamento atual (1 lição).
“6ª) Filosofia chinesa (1 lição).
“7ª) Filosofia hindu (1 lição).
“8ª) Religiões. Crenças religiosas. Animismo. Fetichismo. Politeísmo e monoteísmo. Panteísmo e materialismo (3 lições).
PROGRAMA
“Objeto da Filosofia (I e II). III – Método. IV – Definição e divisões. Psicologia. Lógica. Teodiceia. Moral. Metafísica e Estética. Modos de encará-la; contribuições diversas do socialismo (estudos sociais), donde modificação de sua significação primitiva.
“O resto se fará pelo programa do antigo colégio Pedro II (está no Paul Janet).”
Encimando o plano de aprendizado filosófico, lia-se a frase de Maine de Biran: “No esforço voluntário, a reflexão interior se apercebe de um ‘eu’ que quer e de um ‘não-eu’ que resiste”.23
Já se conhecia bem o jovem estudante, sequioso de método, com capacidade didática, mas impaciente, cujas leituras, por essa época, nos são reveladas por Vicente Mascarenhas:
“As minhas leituras literárias eram poucas. Em menino, lia os autores nacionais: Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio, Machado de Assis; e também os poetas: Gonçalves Dias, Varela, Castro Alves e Gonzaga, de quem soube de cor várias liras da Marília de Dirceu. Júlio Verne, porém, era o meu encanto, pois me fazia sonhar no concreto de novas terras, novos mares, novos céus e até novos meios diferentes dos possíveis de admitir, mesmo imaginando.
“Depois dos dezesseis anos, pouco procurei literatura, a não ser Paulo e Virginia, o D. Quixote, o Robinson, que são livros geralmente conhecidos e universalmente prezados.”24
Vivia, na verdade, mergulhado nos estudos de filosofia, devorando livros que encontrava na Biblioteca Nacional e, depois, na da Escola Politécnica. Aos sábados, tomava a lancha Esquirol, que o esperava no Cais, e rumava para a Ilha do Governador, onde passava o domingo descansando, por entre as mangueiras e cajueiros do sítio, para voltar ao Rio na segunda-feira, retomando assim a rotina da vida estudantil.
Não teria tempo de pensar noutra coisa, a não ser em livros. Nicolau Ciancio fala vagamente em “namoricos ocasionais”, coisas de rapazes, mas disso nada ficou que pudesse comprovar a veracidade da assertiva, a não ser um soneto publicado n’O Suburbano, o jornalzinho da Ilha do Governador. Péssimo soneto este. Os pobres versos sem métrica e sem inspiração falam de uma “flor”, que tinha “um quê de etérea e de divina”, com voz de “arminho” e cabelos penteados em bandós, a quem o vate bisonho chama “meu norte, a estrela matutina”.
Tudo isso, porém, não passava de exercício literário, embora de mau gosto, pois o soneto é realmente dos piores. Intitula-se “Assim...” e tem como epígrafe o primeiro verso do soneto de Arvers.25
Evidentemente, fora a sua leitura que sugerira ao rapaz a ideia daquela estranha incursão nos arraiais do Parnaso. De resto, é o próprio Lima Barreto quem confessa, a propósito do soneto de Arvers:
“Li-o aos quinze anos, na Ilha do Governador, em uma casa donde se via o mar e mirava uma praia alva, grande ‘como um destino’. Não tinha naquele tempo ninguém que me lesse, pois felizmente ainda não escrevia nada e a minha Beatriz ainda não se cruzara comigo no caminho da vida.”26
Como se vê, a moça dos bandós nunca existiu, não passando de ingênua e pura literatice.
Notas
1 As certidões dos exames de Lima Barreto no Ginásio e na Escola Politécnica encontram-se nos arquivos deste último estabelecimento de ensino, na lata A-19, pasta 30.
2 Isaías Caminha, p. 47.
3 A certidão em apreço consta da Col. Lima Barreto, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
4 Matriculado sob o número 79, no livro competente do Colégio Paula Freitas.
5 Depoimento de Mário Galvão, em conversa com o autor.
6 “Lima Barreto, etc.”, artigo de José Oiticica, em A Rua, Rio de Janeiro, em 25/05/1916.
7 Resumo cronológico da evolução do positivismo no Brasil, por Teixeira Mendes, 1930, p. 33-34.
8 Impressões de leitura, p. 97.
9 Isaías Caminha, p. 141.
10 Isaías Caminha, p. 141.
11 Isaías Caminha, p. 141-142.
12 Isaías Caminha, p. 142.
13 O cemitério dos vivos, p. 132.
14 Policarpo Quaresma, p. 192-193.
15 Feiras e mafuás, p. 22.
16 “A verdade sobre Lima Barreto”, artigo de Nicolau Ciancio, em Vamos Ler!, Rio de Janeiro, n. 213, 29/08/1940. Por sua vez, escreveu Lima Barreto: “O doutor Nicolau Ciancio, a quem me prende uma estima fraternal dos antigos companheiros de quarto quando estudantes...”. (Feiras e mafuás, p. 188).
17 A pudicícia foi traço predominante do seu caráter. Num dos artigos que escreveu sobre o futebol, insurgiu-se contra os “marmanjos que, à falta de outras habilidades superiores para atrair a atenção das damas, se põem por aí seminus a dar pontapés numa bola, a esmurrarem-se e a soltar palavrões” (Feiras e mafuás, p. 111).
18 Diário íntimo, p. 92.
19 Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, 20/08/1898.
20 Isaías Caminha, p. 83.
21 Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro, n. 1, 14/05/1898.
22 Isaías Caminha, p. 144.
23 Diário íntimo, p. 35-36. Devem ser mencionadas, a respeito, as notas publicadas sob o título “Uma página de filosofia” em Autores e livros (suplemento literário de A Manhã). Rio, 23/05/1943, v. IV, p. 259. São exercícios dessa mesma época, cujos originais pertencem hoje ao Sr. Elói Pontes.
24 O cemitério dos vivos, p. 131.
25 O Suburbano, Rio de Janeiro, n. 17, 01/11/1900.
26 “Dois sonetos”, artigo de Lima Barreto, em Brás Cubas, Rio de Janeiro, 18/07/1918.